Plural, denso e provocador. Embora as reduções não combinem com o conteúdo e a dimensão física do livro O mundo rural no Brasil do século 21 – A formação de um novo padrão agrário e agrícola, que tem os professores Antônio Márcio Buainain (foto) e José Maria da Silveira, ambos do Instituto de Economia (IA) da Unicamp, entre os seus editores, os três termos oferecem uma boa pista da proposta da obra.
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/534675-novas-visoes-sobre-o-mundo-rural
A reportagem é de Manuel Alves Filho e publicado porJornal da Unicamp, 25 de agosto de 2014 a 31 de agosto de 2014.
Composto por 1.200 páginas, 37 capítulos e 51 autores, o volume traz um conjunto de artigos que pretende contribuir para uma
reflexão atualizada e “menos romântica” sobre o universo rural brasileiro, que sofreu profundas transformações nas últimas décadas. Entre as teses defendidas, e que devem gerar polêmica, está a de que o momento de se fazer uma ampla reforma agrária no país já passou. “Vivemos uma nova realidade, que não pode ser analisada com a mesma lupa dos anos 50 ou de 30 anos atrás”, afirma Buainain. Também são editores do livro os pesquisadores Eliseu Alves, fundador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e até hoje reverenciado como o principal responsável pelo sucesso da empresa, e Zander Navarro, igualmente da Embrapa.
O livro, editado pela Embrapa e pela Unicamp, com patrocínio do Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (IICA), é o resultado do esforço de um grupo de cientistas ligados a cerca de 20 instituições brasileiras e estrangeiras. Nenhum dos autores, como faz questão de registrar Buainain, recebeu qualquer honorário para escrever os artigos. “A obra nasceu do compromisso acadêmico desses pesquisadores”, diz. A gênese do trabalho está ligada a um artigo que os quatro editores produziram em conjunto e que foi publicado em 2013 pela Revista de Economia Agrícola.
O texto recebeu o título de Sete teses sobre o mundo rural brasileiro, numa homenagem ao sociólogo mexicanoRodolfo Stavenhagen e ao economista brasileiro Antonio Carlos Barros Castro, que na década de 60 e 70 publicaram, respectivamente, “Siete tesis equivocadas sobre América Latina” e “Sete ensaios sobre a economia brasileira”. “Esses trabalhos confrontaram os pensamentos dominantes da época, por meio de propostas analíticas muito criativas que buscavam atualizar as interpretações sobre a realidade de então”, explica Buainain.
Por causa da grande repercussão do artigo, os autores tiveram a ideia de produzir um livro e convidar outros autores para discutirem as 7 teses sobre variados aspectos do mundo rural no Brasil neste século. Segundo Buainain, a única exigência imposta aos autores foi que eles discutissem sobre uma das teses ou acerca de algum ponto a elas relacionado. “Deixamos os colegas à vontade no que se refere ao conteúdo das abordagens. Essa liberdade de expressão certamente vai ser identificada pelos leitores. O livro é bastante plural. Ao mesmo tempo em que temos um artigo assinado pelo professor Bastiaan Philip Reydon [IE-Unicamp] defendendo a tese de que, a despeito da nossa conturbada herança agrária, o momento de se fazer uma ampla reforma agrária no país já passou, o professor Pedro Ramos (IE-Unicamp)oferece uma reflexão diferente, afirmando que ainda há espaço e é fundamental que a reforma agrária ainda seja executada. Em outras palavras, o livro não é permeado por um pensamento único”, reforça o editor.
O professor Bastiaan Reydon explica que procurou demonstrar em seu artigo que existe, sim, uma clara relação entre desenvolvimento e distribuição de terra. Segundo ele, o Brasil tem a pior distribuição de terra do mundo. “Entretanto, eu também tento demonstrar que o momento histórico para promover uma reforma agrária, nos moldes daquela defendida ao longo de algumas décadas, já passou. Não concordo com a tese de que nunca houve uma reforma agrária no Brasil, como postulam os autores das 7 teses. Atualmente, 13% dos estabelecimentos rurais brasileiros são oriundos de reforma agrária, que certamente não alcançou a dimensão que o país precisava. Entretanto, a questão atual é de outra ordem. Hoje, o ponto central é que a agricultura moderna não tem limites de terra. Você anda por Campo Novo de Parecis, no Mato Grosso, e encontra propriedades com 20 mil, 30 mil hectares. Isso não gera eficiência. A grande parte dos ganhos desses proprietários rurais vem da especulação da terra. Isso é que tem que ser mudado. O desmatamento na Amazônia, por exemplo, não é para a implantação de pastos, mas para especulação. O Estado brasileiro precisa assumir a missão de exercer governança sobre a propriedade da terra”, defende Reydon.
A tese central em torno da qual se organizam as demais, aponta o professor José Maria da Silveira, é de que o Brasil vive uma nova fase de desenvolvimento agrário e agrícola. “Esta nova fase envolve profundas mudanças no modo como as coisas são feitas, na utilização da tecnologia, na relação entre o mundo rural e o urbano. Trata-se, portanto, de uma fase muito distinta das anteriores. A agricultura que tinha uma produção extensiva, baseada na ocupação de terra e no uso de mão de obra barata e abundante, passou a ser uma agricultura intensiva, baseada principalmente na inovação tecnológica. O crescimento da fronteira agrícola se mantém, mas num padrão completamente diferente. Antes, a ocupação era feita por pequenos produtores. Hoje, é protagonizada pelos grandes empreendimentos”, explica.
Desconsiderar transformações tão radicais, adverte o editor do livro, pode levar o pesquisador a interpretações que falseiem a realidade. Outro exemplo das mudanças ocorridas no mundo rural, e que ainda não são bem compreendidas por determinadas correntes de pensamento, diz respeito à disponibilidade de mão de obra no campo, tema apenas mencionado logo acima. No artigo assinado pelo professor Alexandre Gori Maia [IE-Unicamp] e Camila Sakamoto, estudante do IE que acabou de receber o prêmio de Melhor Dissertação em Economia Agrícola, concedido pela Sociedade Brasileira de Economia e Sociologia Rural (Sober), o assunto é esmiuçado. Nele, os autores chamam a atenção para o equívoco de um expressivo número de pesquisadores, que continuam tratando a agricultura como um segmento no qual a mão de obra é abundante. “Em muitos lugares, há uma expressiva falta de força de trabalho, inclusive na agricultura familiar”, sustenta Gori.
O economista destaca que muitos jovens não querem mais ficar no campo, por diferentes razões. Muitas vezes eles preferem aceitar um emprego precário na cidade que trabalhar na propriedade da família. “É difícil falar em tendência, pois o território brasileiro é grande e marcado por diferenças. Entretanto, quando comparamos o retrato do país em 2010 com o de dez anos antes, verificamos que nas áreas rurais o número médio de integrantes das famílias caiu de quatro para três pessoas. Além disso, aquele filho que ficava no campo, e que tinha baixo nível de escolaridade, passou a ter maior acesso à escola e começou a sair em busca de oportunidades nas áreas urbanas. Ou seja, a ideia de mão de obra abundante transformou-se num mito”.
Em termos simplificados, o que O mundo rural no Brasil do século 21 – A formação de um novo padrão agrário e agrícola pretende mostrar é que a agricultura brasileira tem uma história de sucesso, mas que este êxito é permeado por contradições e problemas. “O que está dito no livro é que as condições que determinaram o sucesso da agricultura brasileira não garantem a manutenção desse status. Quando olhamos os elementos que explicam o boom e a importância dessa atividade, como a disponibilidade de terra, mão de obra e tecnologia que permitiu a ocupação dos cerrados, vemos que eles não estão mais presentes e já não são suficientes para sustentar o crescimento,” diz Buainain. “Ademais, nosso modelo enfrenta atualmente uma acirrada concorrência externa. Não dá para continuar falando que o Brasil é o celeiro do mundo e que ninguém tem condições de produzir alimentos como o país. Hoje, a China está investindo em agricultura tropical na África e a Croácia está produzindo frangos com a nossa tecnologia e nossos técnicos, mas com mão de obra local”, assinala o professor José Maria da Silveira.
O mundo rural no Brasil do século 21 – A formação de um novo padrão agrário e agrícola deveria ter sido lançado oficialmente no último dia 7 de agosto, em evento marcado para a USP. Na oportunidade, o ex-ministro Delfim Netoministraria uma palestra aos cerca de 250 inscritos. “Infelizmente, tivemos que cancelar o evento porque um grupo de grevistas bloqueou todos os acessos à universidade. É mais um exemplo de predação da Universidade, em nome de uma pretensa defesa da instituição, e da falta de respeito aos direitos dos que querem trabalhar, mesmo sem ter tido os salários reajustados. Vamos tentar remarcar essa atividade para o começo de setembro, também em São Paulo. Em Campinas, o lançamento está marcado para o dia 25 de setembro, durante um seminário que realizaremos no Instituto de Economia. Na oportunidade, vamos trazer alguns dos autores do livro para debater com outros convidados. Esse evento é financiado pelo Fundo de Apoio ao Ensino, à Pesquisa e Extensão [Faepex] da Unicamp”, adianta Buainain, que admitiu ter a expectativa de que a obra tenha boa repercussão junto aos gestores públicos.