Após assentar 1,2 milhão de famílias em sucessivos programas de reforma agrária, o Brasil agora enfrenta o desafio cada vez maior de segurá-las na terra. A nova realidade agrária do País, com a crescente valorização do preço da terra, ao lado das persistentes dificuldades dos assentados para elevar o seu nível de renda, torna cada vez mais atraente a venda do lote obtido com a reforma.
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A reportagem é de Roldão Arruda e José Maria Tomazela, publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 23-02-2014.
A Fazenda Primavera, em Andradina, na região noroeste de São Paulo, a 630 quilômetros da capital, é um exemplo do que está ocorrendo. No início da década de 1980, aquela propriedade tornou-se um símbolo da luta pela reforma agrária, com intensa mobilização de famílias de trabalhadores rurais, sindicatos e setores da Igreja Católica.
Pertencente ao grupo J.J. Abdalla, ela acabou sendo desapropriada pelo presidente João Baptista Figueiredo. Seus 3.676 hectares foram divididos entre as 346 famílias que viviam na área. Elas também receberam na mesma época o título de propriedade.
Passados 34 anos, resta pouca coisa do assentamento e da proposta original de desconcentrar a terra. Segundo estimativa feita pelo pesquisador Rafael de Oliveira Coelho dos Santos, que está concluindo uma dissertação de mestrado na Unesp sobre aquele projeto, 70% dos lotes originais já foram vendidos às três usinas de cana-de-açúcar que operam na região e disputam palmo a palmo novas áreas de plantio.
Em decorrência dessa pressão, o preço da terra não para de subir. Em dez anos, o valor do alqueire (24,2 mil m²) saltou de R$ 8 mil para R$ 50 mil.
Com esses preços, a pressão é cada vez maior. “Até a esposa, os filhos, os genros caem em cima do dono e ele não resiste à pressão do dinheiro”, diz o assentado Valdeci Rodrigues Oliveira, de 67 anos, do grupo dos que ainda não venderam o lote em Andradina.
Na semana passada, ao rodar pelas estradas de terra vermelha que cortam a área, a reportagem do Estado só viu canaviais. Entre os que ainda não negociaram a terra, é comum a prática de arrendá-la, integral ou parcialmente, para as usinas.
O caso de Andradina chama a atenção de estudiosos da reforma agrária, movimentos sociais e órgãos do governo. Teme-se que o ocorrido ali se repita em outros assentamentos, numa escala capaz de comprometer toda a reforma.
O temor é inflado por causa do envelhecimento das áreas de reforma e do aumento da concessão de títulos de propriedade. De acordo com normas legais, quando chega ao lote, o beneficiário da reforma agrária tem apenas uma concessão de uso. Após um período de dez anos, porém, passa a ter direito ao título de propriedade, podendo então negociar a terra.
O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) diz não ter números sobre esse tipo de negócio. Sabe-se, no entanto, que 640 assentamentos já estão emancipados ou em fase de emancipação. A área emancipada é aquela em que mais da metade dos ocupantes do lote já tem o título de propriedade.
O número não é alto, considerando a existência de quase 9 mil assentamentos. O que preocupa é que deve aumentar rapidamente a partir de agora, uma vez que grande parte dos assentamentos do País nasceu nos últimos 15 anos. Outro fator preocupante é que a renda dos assentados continua baixa. Na avaliação de Santos, o pesquisador da Unesp, esse fator é decisivo.
Legislação
Foi por causa disso que líderes do Movimento dos Sem Terra (MST) foram pedir à presidente Dilma Rousseff a mudança da lei. No encontro que mantiveram com ela, dias atrás, no Planalto, sugeriram que o assentado tenha apenas a cessão de uso da terra.
Pode repassá-la para os filhos, mas nunca vender. “Sem isso haverá certamente uma reconcentração da propriedade”, diz Alexandre Conceição, da direção do MST.
Dilma mostrou interesse, mas não há movimento no governo para mudar a lei.
A fórmula sugerida pelo MST já é usada em São Paulo, em assentamentos em áreas de terras devolutas, nos quais os assentados recebem apenas a permissão de uso. A pressão para a mudança dessa lei, porém, aumenta. No ano passado, durante um seminário sobre o tema, promovido pelo Instituto de Terras de São Paulo (Itesp), parte dos participantes defendeu a concessão do título de propriedade.
O presidente do Itesp, Marco Pilla, é contrário à mudança. “É preciso dar garantia jurídica às famílias, mas sem repetir o erro da Fazenda Primavera.”
Segundo o MST, um dos principais focos de pressão para a venda de terras está na Amazônia, que concentra metade das famílias da reforma. Isso ocorre, na avaliação de Conceição, por causa da questão ambiental. Sem espaço para desmatar, empresas voltam a atenção para assentamentos emancipados.