Sem querer, voto de Kassio expõe um problema lógico do marco temporal

Maior genocídio da Humanidade foi feito por europeus nas Américas: 70 milhões morreram. O quanto os euro-descendentes vêm cumprimento esse mandato nos últimos 5 séculos? E o que estamos todos fazendo, no aqui e agora, com nossos irmãos dos ?

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Rubens Valente

15/09/2021

Em seu voto no julgamento retomado e logo suspenso de novo no STF nesta quarta-feira (15) sobre a tese jurídica do marco temporal, o ministro Kassio Nunes Marques acabou expondo, involuntariamente, um dos problemas lógicos da teoria. Ele reconheceu que indígenas foram massacrados e tiveram suas terras roubadas, mas logo adiante alegou segurança jurídica para a aplicação do marco. Sem querer, ele resumiu um desatino na ideia central da tese: impor aos indígenas que esqueçam a morte dos seus e o direito de lutar por suas terras, enquanto os não indígenas e o Estado brasileiro entram com a supressão de qualquer direito indígena sobre as mesmas terras.

Kassio votou a favor da tese do “marco”, ou seja, contrário ao voto do relator, Edson Fachin. A votação está empatada. O terceiro ministro na fila do voto, Alexandre de Moraes, pediu vista do processo – ele não explicou quando pretende devolvê-lo. Não se sabe por qual motivo – talvez um verniz intelectual -, já que a conclusão foi oposta à introdução, Kassio iniciou seu voto fazendo uma curta porém correta explicação sobre o massacre dos indígenas Xokleng em Santa Catarina.

Os Xokleng estão no centro do julgamento porque o recurso extraordinário ajuizado pela Funai sobre terras reivindicadas por essa etnia ganhou repercussão geral a partir da iniciativa do relator, Edson Fachin, que foi aprovada por unanimidade no plenário do STF.

Citando um livro clássico do educador, senador e antropólogo Darcy Ribeiro (1922-1997), quem diria, um dos ministros derrubados nesta mesma Brasília pelo golpe militar de 1964 louvado por Jair Bolsonaro, “Os índios e a civilização”, Kassio explicou que o “extermínio dos índios” era, no início do século 20, “um remédio reclamado” por colonos que haviam avançado sobre terras indígenas inclusive patrocinados por programas de incentivo do próprio governo federal.

Kassio reconheceu que os Xokleng tiveram “terras esbulhadas nas primeiras décadas de 20”, já que a chegada, ao Brasil, de 3,5 milhões de europeus de 1880 a 1920 “produziu enorme pressão sobre os territórios indígenas, terras que foram prometidas, inclusive pelo governo brasileiro”. “Nesse contexto ocorrem os esbulhos de terras indígenas”, disse o ministro do STF.

O ministro também recuperou a genocida e racista manifestação do então diretor do Museu Paulista, Hermann von Ihering (1850-1930), um cientista alemão radicado em São Paulo que pregou, num artigo, o extermínio puro e simples dos indígenas que vinham resistindo à invasão de suas terras no interior de São Paulo.

A proposta gerou uma forte reação contrária da sociedade civil brasileira, encorpada pela figura de um militar, o marechal Cândido Rondon – essa parte, estranhamente, Kassio pulou -, o que redundou na criação do SPI (Serviço de Proteção ao Índio), em 1910, o antecessor da Funai. Toda essa parte introdutória do voto de Kassio, contudo, sofre uma guinada espetacular quando, na sequência, ele passa a defender o marco temporal. E como fica a história das terras roubadas dos Xokleng? Não fica, nada mais se ouve sobre isso.

Se indígenas foram chacinados e expulsos de suas terras, como de fato foram, e como o próprio ministro reconheceu que foram, a aplicação de um marco em 5 de outubro de 1988 soa, no mínimo, como um escárnio. Acompanhando o raciocínio de ministro, só pode ser um marco para o apagamento das atrocidades.

Em diversos trechos do seu voto, Kassio mencionou a necessidade de superação de conflitos, pacificação, segurança jurídica. Pelo voto do ministro confirmamos que os índios foram pilhados e massacrados.

Mas o que o Estado brasileiro oferece a eles para supostamente chegar à paz é uma data no calendário a partir da qual eles não terão mais direitos sobre as terras que afirmam ser suas – e que laudos antropológicos do próprio governo brasileiro confirmam que são suas. É uma imposição.

Eu roubo, você fica quieto, nós entramos em acordo.

Não tem como parecer justo nem racional.