13/02/2021
Ricardo Abramovay
A natureza não pode ser tratada como um mero bem econômico à disposição de nosso poder, de nossa inteligência e de nossa capacidade de transformá-la em produtos e serviços que nos são úteis. Este tratamento traz questões éticas incontornáveis, referentes à responsabilidade das sociedades humanas sobre o conjunto da vida, de cuja evolução somos o produto.
Uma das mais importantes bases filosóficas da acelerada extinção de espécies das últimas sete décadas reside na ideia de que a humanidade, por seu conhecimento, por suas técnicas e sua capacidade de intervenção é exterior à natureza — e pode fazer dela o uso de que necessitar. Mas este ideal de emancipação, além de eticamente inaceitável, é economicamente desastroso. É ele que conduz à ideia de que ciência e tecnologia abrem o caminho à supressão de qualquer limite para que nossos desejos sejam infinitamente satisfeitos.
Nosso lugar na natureza, enquanto cidadãos, exige que estes conceitos sejam seriamente colocados em questão. Quem o diz é Sir Partha Dasgupta, um dos mais respeitados economistas contemporâneos. Na semana passada, ele lançou um poderoso relatório sobre a economia da biodiversidade, atendendo a um pedido de Her Majesty’s Treasure, que, na Grã-Bretanha, responde pelas finanças públicas e pela política econômica.
Coautor de ganhadores do prêmio Nobel do calibre de Kenneth Arrow, Amartya Sen e Joseph Stiglitz, entre outros, Dasgupta inicia seu relatório com um diagnóstico severo: a ciência econômica contemporânea não incorpora a natureza aos modelos com base nos quais analisa e interpreta o mundo.
É verdade que a disciplina avançou muito no esforço de estabelecer as bases para os mercados de carbono, capazes de indicar para os agentes econômicos os prejuízos decorrentes das mudanças climáticas e, portanto, de incentivar as mudanças tecnológicas necessárias a que as emissões de gases de efeito estufa sejam reduzidas. Mas quando se trata da erosão da biodiversidade, as coisas mudam de figura. Entram em jogo aí três características da natureza que tornam impossível sinalizar, por meio do sistema de preços, a abundância e a escassez de seus serviços.
A natureza, mostra Dasgupta, é móvel, silenciosa e invisível. A maior parte dos processos naturais não é passível de observação pelos nossos sentidos imediatos, o que turva nossa percepção quanto aos danos que lhes causamos.
Estes danos, então, não se incorporam às informações que os mercados transmitem aos atores econômicos. Contrariamente às emissões de gases de efeito estufa, a destruição natural associada à riqueza de que desfrutamos não é e não tem como ser sintetizada num indicador único — como o da emissão de gases de efeito estufa, por exemplo. Estas três características (mobilidade, silêncio e invisibilidade) contribuem para que consideremos a natureza como infindável provedora daquilo que dela queremos extrair.
Foram inúmeras as ocasiões em que esta extração provocou colapso em civilizações ao longo da história. Apesar disso, desde o final da Segunda Guerra Mundial, a humanidade, está usando e destruindo a natureza com intensidade que supera sua recomposição. Os preços dos bens e serviços da natureza são sistematicamente inferiores à contribuição que ela dá para a vida e para a riqueza social.
Uma das mais claras expressões deste contraste é o fato de que uma terra coberta por biodiversidade florestal vale muito menos que a terra nua. Os ganhos que um proprietário privado retira do uso de uma terra nua exprimem-se nos mercados agropecuários, ao contrário das perdas decorrentes da destruição florestal, que não entram no sistema de preços.
Este uso da natureza trouxe benefícios materiais impressionantes. A esmagadora maioria dos indicadores sociais globais mostram essa realidade com clareza. Quase metade da espécie humana passava fome em 1950, proporção que, hoje, chega a 10% — uma proporção ainda vergonhosa, mas que revela avanço inegável. Os indicadores de aumento da longevidade, de declínio da mortalidade infantil, de acesso à energia elétrica, entre outros, vão na mesma direção.
Mas estes avanços ignoram o que há de mais importante na ideia de economia da biodiversidade. Em primeiro lugar, o relatório Dasgupta mostra que o Produto Interno Bruto mede de maneira inadequada a própria riqueza social, uma vez que não incorpora os custos ligados à destruição da natureza.
Além disso, o trabalho se contrapõe à ideia de que a solução dos desafios socioambientais contemporâneos se encontra no crescimento econômico, que segundo o ponto de vista econômico convencional, ofereceria os meios técnicos para que possamos substituir o que destruímos por aquilo que o engenho humano é capaz de criar.
Contrariamente à ideia tão frequente nos dias de hoje de que somente as soluções ganha-ganha são adequadas (ou seja, continuar crescendo, mas com técnicas regenerativas), Dasgupta traz ao centro da discussão sobre o desenvolvimento sustentável a necessidade de as sociedades contemporâneas não só repensarem o sentido de seu crescimento econômico, mas também de cultivarem a autocontenção.
Isso passa, por exemplo, por alterações fundamentais nas dietas contemporâneas. Quando se somam as áreas de pastagem às de lavouras destinadas à alimentação animal, percebe-se que 80% dos solos agrícolas voltam-se à produção de carnes. A dieta baseada em plantas emite de 10 a 50 vezes menos gases de efeito estufa que aquela onde as carnes predominam. E a agropecuária contemporânea é o mais importante vetor de destruição da biodiversidade.
Não há como enfrentar a destruição da biodiversidade se o conjunto da espécie humana almejar um padrão de consumo semelhante ao existente, por exemplo, na sociedade norte-americana. Neste sentido, preservar e fortalecer a biodiversidade, supõe a redução das desigualdades. Mais que isso, na conclusão de seu trabalho, Dasgupta mostra que a luta contra a devastação não pode estar apoiada apenas em tecnologia e engenho humano: é necessário mudar nossos padrões de produção e consumo.
Ciência e tecnologia são fundamentais, mas a preservação e a regeneração da biodiversidade serão alcançadas pela afeição dos cidadãos à natureza e por sua consciência de que destruí-la é o caminho da nossa própria destruição. Esta é a mensagem principal do trabalho de um dos mais respeitados economistas contemporâneos.
Ricardo Abramovay é professor Sênior do Programa de Ciência Ambiental do IEE/USP. Foi Autor de “Amazônia: Por uma Economia do Conhecimento da Natureza” (Ed. Elefante/Terceira Via, São Paulo).