Foram muitos os sinais que antecederam o golpe contra o presidente Fernando Lugo: a maneira como ocorreu o conflito em Curuguaty que deixou 17 mortos, a presença de franco-atiradores entre os camponeses, a campanha via jornal ABC Color contra os funcionários do governo que se opunham à liberação das sementes de algodão transgênico da Monsanto, a convocação de um tratoraço nacional com bloqueio de estradas para o dia 25. O jornalista paraguaio Idilio Méndez Grimaldi conta essa história e adverte: “os mortos de Curugaty carregam uma mensagem para a região, especialmente para o Brasil”. O artigo foi reproduzido pela Carta Maior, 23-06-2012.
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/510780-os-mortos-de-curuguaty-e-o-julgamento-politico-de-lugo
A tradução é de Marco Aurélio Weissheimer.
O artigo de Idilio Méndez Grimaldi foi escrito dias antes da aprovação, no Senado paraguaio, da abertura do processo de impeachment de Fernando Lugo.
Eis o artigo.
Quem está por trás desta trama tão sinistra? Os impulsionadores de uma ideologia que promove o lucro máximo a qualquer preço e quanto mais, melhor, agora e no futuro. No dia 15 de junho de 2012, um grupo de policiais que ia cumprir uma ordem de despejo no departamento de Canindeyú, na fronteira com o Brasil, foi emboscado por franco-atiradores, misturados com camponeses que pediam terras para sobreviver. A ordem de despejo foi dada por um juiz e uma promotora para proteger um latifundiário. Resultado da ação: 17 mortos, 6 policiais e 11 camponeses, além de dezenas de feridos graves. As consequências: o governo frouxo e tímido de Fernando Lugo caiu com debilidade ascendente e extrema, cada vez mais à direita, a ponto de ser levado a julgamento político por um Congresso dominado pela direita.
Trata-se de um duro revés para a esquerda e para as organizações sociais e campesinas, acusadas pela oligarquia latifundiária de instigar os camponeses. Representa ainda um avanço do agronegócio extrativista nas mãos de multinacionais como a Monsanto, mediante a perseguição dos camponeses e a tomada de suas terras. Finalmente, implica a instalação de um cômodo palco para as oligarquias e os partidos de direita para seu retorno triunfal nas eleições de 2013 ao poder Executivo.
No dia 21 de outubro de 2011, o Ministério da Agricultura e Pecuária, dirigido pelo liberal Enzo Cardozo, liberou ilegalmente a semente de algodão transgênico Bollgard BT, da companhia norteamericana de biotecnologia Monsanto, para seu plantio comercial no Paraguai. Os protestos de organizações camponesas e ambientalistas foram imediatos. O gene deste algodão está misturado com o gene do Bacillus thurigensis, uma bactéria tóxica que mata algumas pragas do algodão, como as larvas do bicudo, um coleóptero que deposita seus ovos no botão da flor do algodão.
O Serviço Nacional de Qualidade e Saúde Vegetal e de Sementes (Senave), instituição do Estado paraguaio dirigida por Miguel Lovera, não inscreveu essa semente nos registros de cultivares pela falta de parecer do Ministério da Saúde e da Secretaria do Ambiente, como exige a legislação.
Campanha midiática
Nos meses posteriores, a Monsanto, por meio da União de Grêmios de Produção (UGP), estreitamente ligada ao grupo Zuccolillo, que publica o jornal ABC Color, lançou uma campanha contra o Senave e seu presidente por não liberar o uso comercial em todo o país da semente de algodão transgênico da Monsanto. A contagem regressiva decisiva parece ter iniciado com uma nova denúncia por parte de uma pseudosindicalista do Senave, chamada Silvia Martínez, que, no dia 7 de junho, acusou Lovera de corrupção e nepotismo na instituição que dirige, nas páginas do ABC Color. Martínez é esposa de Roberto Cáceres, representante técnico de várias empresas agrícolas, entre elas a Agrosan, recentemente adquirida por 120 milhões de dólares pela Syngenta, outra transnacional, todas sócias da UGP.
No dia seguinte, 8 de junho, a UGP publicou no ABC uma nota em seis colunas: “Os 12 argumentos para destituir Lovera”. Estes supostos argumentos foram apresentados ao vice-presidente da República, correligionário do ministro da Agricultura, o liberal Federico Franco, que naquele momento era o presidente interino do Paraguai, em função de uma viagem de Lugo pela Ásia.
No dia 15, por ocasião de uma exposição anual organizada pelo Ministério da Agricultura e Pecuária, o ministro Enzo Cardoso deixou escapar um comentário diante da imprensa que um suposto grupo de investidores da Índia, do setor de agroquímicos, cancelou um projeto de investimento no Paraguai por causa da suposta corrupção no Senave. Ele nunca esclareceu que grupo era esse. Aproximadamente na mesma hora daquele dia, ocorriam os trágicos eventos de Curuguaty.
No marco desta exposição preparada pelo citado Ministério, a Monsanto apresentou outra variedade de algodão, duplamente transgênica: BT e RR, ou Resistente ao Roundup, um herbicida fabricado e patenteado pela transnacional. A pretensão da Monsanto é a liberação desta semente transgênica no Paraguai, tal como ocorreu na Argentina e em outros países do mundo.
Antes desses fatos, o diário ABC Color denunciou sistematicamente, por supostos atos de corrupção, a ministra da Saúde, Esperanza Martínez, e o ministro do Ambiente, Oscar Rivas, dois funcionários do governo que não deram parecer favorável a Monsanto.
Em 2001, a Monsanto faturou 30 milhões de dólares, livre de impostos (porque não declara essa parte de sua renda), somente na cobrança de royalties pelo uso de sementes de soja transgênica no Paraguai. Toda a soja cultivada no país é transgênica, numa extensão de aproximadamente 3 milhões de hectares, com uma produção em torno de 7 milhões de toneladas em 2010.
Por outro lado, na Câmara de Deputados já se aprovou o projeto de Lei de Biossegurança, que cria um departamento de biossegurança dentro do Ministério da Agricultura, com amplos poderes para a aprovação para cultivo comercial de todas as sementes transgênicas, sejam de soja, de milho, de arroz, algodão e mesmo algumas hortaliças. O projeto prevê ainda a eliminação da Comissão de Biossegurança atual, que é um ente colegiado forma por funcionários técnicos do Estado paraguaio.
Enquanto transcorriam todos esses acontecimentos, a UGP preparava um ato de protesto nacional contra o governo de Fernando Lugo para o dia 25 de junho. Seria uma manifestação com máquinas agrícolas fechando estradas em distintos pontos do país. Uma das reivindicações do chamado “tratoraço” era a destituição de Miguel Lovera do Senave, assim como a liberalização de todas as sementes transgênicas para cultivo comercial.
As conexões
A UGP é dirigida por Héctor Cristaldo, apoiado por outros apóstolos como Ramón Sánchez – que tem negócios com o setor dos agroquímicos -, entre outros agentes das transnacionais do agronegócio. Cristaldo integra o staff de várias empresas do Grupo Zuccolillo, cujo principal acionista é Aldo Zuccolillo, diretor proprietário do diário ABC Color, desde sua função sob o regime de Stroessner, em 1967. Zuccolillo é dirigente da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP).
O grupo Zuccolillo é sócio principal no Paraguai da Cargill, uma das maiores transnacionais do agronegócio no mundo. A sociedade entre os dois grupos construiu um dos portos graneleiros mais importantes do Paraguai, denominado Porto União, a 500 metros da área de captação de água da empresa de abastecimento do Estado paraguaio, no Rio Paraguai, sem nenhuma restrição.
As transnacionais do agronegócio no Paraguai praticamente não pagam impostos, mediante a férrea proteção que tem no Congresso, dominado pela direita. A carga tributária no Paraguai é apenas de 13% sobre o PIB. Cerca de 60% do imposto arrecadado pelo Estado paraguaio é via Imposto sobre Valor Agregado (IVA). Os latifundiários não pagam impostos. O imposto imobiliário representa apenas 0,04% da carga tributária, cerca de 5 milhões de dólares, segundo estudo do Banco Mundial, embora a renda do agronegócio seja de aproximadamente 30% do PIB, o que representa cerca de 6 bilhões de dólares anuais.
O Paraguai é um dos países mais desiguais do mundo. Cerca de 85% das terras, aproximadamente 30 milhões de hectares, estão nas mãos de 2% de proprietários, que se dedicam à produção meramente para exportação ou, no pior dos casos, à especulação sobre a terra. A maioria desses oligarcas possui mansões em Punta del Este ou em Miami e mantém estreitas relações com transnacionais do setor financeiro, que guardam seus bens mal havidos nos paraísos fiscais ou tem investimentos facilitados no exterior. Todos eles, de uma ou outra maneira, estão ligados ao agronegócio e dominam o espectro político nacional, com amplas influências nos três poderes do Estado. Ali reina a UGP, apoiada pelas transnacionais do setor financeiro e do agronegócio.
Os fatos de Curugaty
Curuguaty é uma cidade na região oriental do Paraguai, a cerca de 200 quilômetros de Assunção, capital do país. A alguns quilômetros de Curuguaty encontra-se a fazenda Morombi, de propriedade do latifundiário Blas Riquelme, com mais de 70 mil hectares nesse lugar. Riquelme provém das entranhas da ditadura de Stroessner (1954-1989), sob cujo regime acumulou uma intensa fortuna. Depois, aliou-se ao general Andrés Rodríguez, que executou o golpe de Estado que derrubou o ditador Stroessner. Riquelme, que foi presidente do Partido Colorado por muitos anos e senador da República, dono de vários supermercados e estabelecimentos pecuários, apropriou-se mediante subterfúgios legais de aproximadamente 2 mil hectares que pertencem ao Estado paraguaio.
Esta parcela foi ocupada pelos camponeses sem terra que vinham solicitando ao governo de Fernando Lugo sua distribuição. Um juiz e uma promotora ordenaram o despejo dos camponeses, por meio do Grupo Especial de Operações (GEO), da Polícia Nacional, cujos membros de elite, em sua maioria, foram treinados na Colômbia, sob o governo de Uribe, para a luta contra as guerrilhas.
Só uma sabotagem interna dentro dos quadros de inteligência da polícia, com a cumplicidade da promotoria, explica a emboscada, na qual morreram seis policiais. Não se compreende como policiais altamente treinados, no marco do Plano Colômbia, puderam cair facilmente em uma suposta armadilha montada pelos camponeses, como quer fazer crer a imprensa dominada pela oligarquia. Seus camaradas reagiram e dispararam contra os camponeses, matando 11 e deixando uns 50 feridos. Entre os policiais mortos estava o chefe do GEO, comissário Erven Lovera, irmão do tenente coronel Alcides Lovera, chefe de segurança do presidente Lugo.
O plano consiste em criminalizar, levar até ao ódio extremo todas as organizações campesinas, para fazer os camponeses abandonarem o campo, deixando-o para uso exclusivo do agronegócio. É um processo doloroso, “descampesinização” do campo paraguaio, que atenta diretamente contra a soberania alimentar, a cultura alimentar do povo paraguaio, por serem os camponeses produtores e recriadores ancestrais de toda a cultura guarani.
Tanto o Ministério Público, como o Poder Judiciário e a Polícia Nacional, assim como diversos organismos do Estado paraguaio estão controlados mediante convênios de cooperação com a USAID, agência de cooperação dos Estados Unidos.
O assassinato do irmão do chefe de segurança do presidente da República obviamente foi uma mensagem direta a Fernando Lugo, cuja cabeça seria o próximo objetivo, provavelmente por meio de um julgamento político, mesmo que ele tenha levado seu governo mais para a direita, tratando de acalmar as oligarquias. O ocorrido em Curuguaty derrubou Carlos Filizzola do Ministério do Interior. Em seu lugar, foi nomeado Rubén Candia Amarilla, proveniente do opositor Partido Colorado, o qual Lugo derrotou nas urnas em 2008, após 60 anos de ditadura colorada, incluindo a tirania de Alfredo Stroessner.
Candia foi ministro da Justiça do governo colorado de Nicanor Duarte (2003-2008) e atuou como procurador geral do Estado por um período, até o ano passado, quando foi substituído por outro colorado, Javier Díaz Verón, por iniciativa do próprio Lugo. Candia é acusado de ter promovido a repressão contra dirigentes de organizações campesinas e de movimentos populares. Sua indicação como procurador geral do Estado em 2005 foi aprovada pelo então embaixador dos Estados Unidos, John F. Keen. Candia foi responsável por um maior controle do Ministério Público por parte da USAID e foi acusado por Lugo no início do governo de conspirar para tirá-lo do poder.
Após assumir como ministro político de Lugo, a primeira coisa que Candia fez foi anunciar o fim do protocolo de diálogo com os campesinos que ocupam propriedades. A mensagem foi clara: não haverá conversação, mas simplesmente a aplicação da lei, o que significa empregar a força policial repressiva sem contemplação. Dois dias depois de Candia assumir, os membros do UGP, encabeçados por Héctor Cristaldo, foram visitar o flamante ministro do Interior, a quem solicitaram garantias para a realização do tratoraço no dia 25. No entanto, Cristaldo disse que a medida de força poderia ser suspensa, em caso de sinais favoráveis para a UGP (leia-se: liberação das sementes transgênicas da Monsanto, destituição de Lovera e de outros ministros, entre outras vantagens para o grande capital e os oligarcas), levando o governo ainda mais para a direita.
Cristaldo é pré-candidato a deputado para as eleições de 2013 por um movimento interno do Partido Colorado, liderado por Horacio Cartes, um empresário investigado em passado recente nos Estados Unidos por lavagem de dinheiro e narcotráfico, segundo o próprio ABC Color, que foi ecoado por várias mensagens do Departamento de Estado dos EUA, conforme divulgado por Wikileaks. Entre elas, uma se referia diretamente a Cartes, no dia 15 de novembro de 2011.
Julgamento político de Lugo
Enquanto escrevia esse artigo, a UGP (4), alguns integrantes do Partido Colorado e os próprios integrantes do Partido Liberal Radical Autêntico (PLRA), dirigido pelo senador Blas Llano e aliado do governo até então, começaram a ameaçar com a abertura de um processo de impeachment de Fernando Lugo para destituí-lo do cargo de presidente da República. Lugo passou a depender do humor dos colorados para seguir como presidente do país, assim como do de seus aliados liberais, que passaram a ameaçá-lo com um julgamento político, seguramente buscando mais espaços de poder (dinheiro) como condição para a paz. O Partido Colorado, aliado a outros partidos minoritários de oposição tinha a maioria necessária para destituir o presidente de suas funções.
Talvez esperassem “os sinais favoráveis” de Lugo que a UGP – em nome da Monsanto, da pátria financeira e dos oligarcas – estava exigindo do governo. Caso contrário se passaria à fase seguinte, de interrupção deste governo que nasceu como progressista e lentamente foi terminando como conservador, controlado pelos poderes da oposição.
Entre outras coisas, Lugo é responsável pela aprovação da Lei Antiterrorista, patrocinada pelos EUA em todo o mundo depois do 11 de setembro. Em 2010, ele autorizou a implementação da Iniciativa Zona Norte, que consiste na instalação e deslocamento de tropas e civis norteamericanos no norte da região oriental – no nariz do Brasil – supostamente para desenvolver atividades a favor das comunidades campesinas.
A Frente Guazú, coalizão das esquerdas que apoia Lugo, não conseguiu unificar seu discurso e seus integrantes acabaram perdendo a perspectiva na análise do poder real, ficando presos nos jogos eleitorais imediatistas. Infiltrados pelo USAID, muitos integrantes da Frente Guazú, que participavam da administração do Estado, sucumbiram ao canto de sereia do consumismo galopante do neoliberalismo. Se corromperam até os ossos, convertendo-se em cópias vaidosas de novos ricos que integravam os recentes governos do direitista Partido Colorado.
Curuguaty também engloba uma mensagem para a região, especialmente para o Brasil, em cuja fronteira se produziram esses fatos sangrentos, claramente dirigidos pelos senhores da guerra, cujos teatros de operações estão montados no Iraque, Líbia, Afeganistão e, agora, Síria. O Brasil está construindo um processo de hegemonia mundial junto com a Rússia, Índia e China, denominado BRIC. No entanto, os EUA não recuam na tentativa de manter seu poder de influência na região. Já está em marcha o novo eixo comercial integrado por México, Panamá, Colômbia, Peru e Chile. É um muro de contenção aos desejos expansionistas do Brasil na direção do Pacífico.
Enquanto isso, Washington segue sua ofensiva diplomática em Brasília, tratando de convencer o governo de Dilma Rousseff a estreitar vínculos comerciais, tecnológicos e militares. Além disso, a IV Frota dos EUA, reativada há alguns anos após estar fora de serviço desde o fim da Segunda Guerra Mundial, vigia todo o Atlântico Sul, caracterizando um outro cerco ao Brasil, caso a persuasão diplomática não funcione.
E o Paraguai é um país em disputa entre ambos países hegemônicos, sendo ainda amplamente dominado pelos EUA. Por isso, os eventos de Curuguaty representam também um pequeno sinal para o Brasil, no sentido de que o Paraguai pode se converter em um obstáculo para o desenvolvimento do sudoeste do Brasil.
Mas, acima de tudo, os mortos de Curuguaty representam um sinal do grande capital, do extrativismo explorador que assola o planeta e aplasta a vida em todos os rincões da Terra em nome da civilização e do desenvolvimento. Felizmente, os povos do mundo também vêm dando respostas a estes sinais da morte, com sinais de resistência, de dignidade e de respeito a todas as formas de vida no planeta.
Os bastidores da queda do presidente paraguaio, segundo o chanceler da Argentina
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/510800-os-bastidores-da-queda-do-presidente-paraguaio
A oposição a Lugo se recusou a prorrogar o processo e a fazer qualquer acordo. Mandou os chanceleres da Unasul irem embora e disse que, caso não viesse o “impeachment”, a violência começaria no dia seguinte.
“No fim, eu e o Patriota saímos, dizendo por fim que o Paraguai estava prestes a concretizar um golpe de Estado”, afirma Héctor Timerman, chanceler argentino, em entrevista publicada pelo jornal Página/12, 24-06-2012 e traduzida pelo blog de Rudá Ricci. A entrevista é de Martín Granovsky.
Eis a entrevista.
Como a Argentina caracteriza a mudança de governo no Paraguai?
O governo argentino caracteriza que estamos frente a uma quebra da ordem democrática.
Por que, se a destituição de Fernando Lugo se baseou em juízo político?
No Paraguai, foi utilizado um mecanismo previsto na Constituição, mas que foi aplicado de tal forma que feriu não só o espírito desta mesma constituição como de toda a prática constitucional do mundo democrático.
Qual foi a violação?
Praticar uma execução sumária. Dar horas de defesa a um presidente democraticamente eleito. Um tempo menor a um motorista que atravessa um sinal vermelho. É triste ver o que aconteceu no Paraguai. Foi triste ver Lugo despachando em sua mesa, sem papéis, no momento em que o Congresso o destituía.
Os chanceleres da Unasul estavam com ele naquele momento?
Sim. E isso depois de termos buscado todas as alternativas. Mas não encontramos interesse algum na oposição em dialogar conosco e em buscar alternativas à execução sumária de um presidente. O que dizíamos era claro: estávamos ali para respeitar ao mesmo tempo a soberania do Paraguai e os acordos internacionais que todos nós firmamos.
Os textos da Unasul e do Mercosul?
Ambos. E dissemos isso tanto à oposição quanto a Lugo. Não só o Paraguai, mas todos nós estamos obrigados a cumprir os acordos que assinamos.
Em algum momento, os chanceleres da Unasul enxergaram a possibilidade de acordo?
Quando chegamos e falamos com Lugo ainda havia esperança. Mas depois fomos trombando com a realidade. Primeiro, nos reunimos com dirigentes do Partido Colorado, que nos disseram que o governo Lugo era inviável e tinha que partir. Depois, com membros do Partido Liberal e um dos seus líderes nos disse: “O melhor que os chanceleres da Unasul podem fazer é partir”.
Qual foi a resposta?
Esta: “Senhor, são 11 da manhã e o juízo começa em uma hora. O que podemos fazer para impedir que a situação não se agrave?” Ele respondeu: “A Constituição define formas de fazer um juízo, não prazos”. E eu insisti que se tratava de um chefe de Estado que assumiu com representação popular. (…) Depois insistimos com o argumento de que viriam tempos duros para o Paraguai, porque teríamos que aplicar a cláusula democrática. Mas nada os comovia. Ali se decidiu que eu e Antônio Patriota, o chanceler brasileiro, falaríamos com Federico Franco.
Ele ainda era vice.
Sim. Eu disse: “Falta pouco tempo. O senhor acredita que é justo o que estão fazendo? Pensa que o mundo vai reconhecer a destituição desta maneira como um procedimento correto?” Eu me lembro da sua resposta: “No Paraguai, um vice-presidente tem três tarefas: participar das reuniões de gabinete, fazer a relação com o Congresso e assumir em caso de morte, enfermidade ou destituição do presidente. Vou cumprir a constituição paraguaia.” Um de seus assessores lembrou o caso do ex-presidente brasileiro Fernando Collor, que teve licença de seis meses. Perguntamos se dariam esse tempo a Lugo. E eles nos disseram que se não houvesse a mudança a violência começaria no dia seguinte.
Pelo visto, Franco estava muito decidido.
Ele afirmou: “Sou médico e estou acostumado a tomar decisões”. Respondi que um médico tenta causar o menor dano possível ao paciente e que ele estava causando o maior prejuízo ao Paraguai e à democracia. No fim, eu e o Patriota nos despedimos calmamente, não sem antes dizer que ele estava concretizando um golpe de Estado.
O Mercosul vai castigar o Paraguai?
O Mercosul vai aplicar todos os tratados que assinamos. A Unasul também.
Os interesses convergentes que derrubaram o Lugo
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/510846-os-interesses-convergentes-que-derrubaram-o-lugo
“Três interesses convergiram para a derrocada de Fernando Lugo: os interesses das transnacionais do agronegócio e do setor financeiro; os da oligarquia fazendeira, aliada ao capital transnacional, e os dos partidos políticos de direita. Todos apadrinhados pelos Estados Unidos”, escreve Idilio Méndez Grimaldi, jornalista e pesquisador, em artigo publicado no jornal mexicano La Jornada, 25-06-2012. A tradução é do Cepat.
Idilio Méndez Grimaldi é autor do livro Los Herederos de Stroessner e membro da Sociedade de Economia Política do Paraguai, SEPPY.
Eis o artigo.
Três interesses convergiram para a derrocada de Fernando Lugo: os interesses das transnacionais do agronegócio e do setor financeiro; os da oligarquia fazendeira, aliada ao capital transnacional, e os dos partidos políticos de direita. Todos apadrinhados pelos Estados Unidos.
Os objetivos estratégicos são: a reinstalação de uma democratura sob a regência exclusivamente da direita, com o apoio dos Estados Unidos e alguns países europeus como nos tempos da guerra fria; a marginalização e a criminalização da esquerda e dos movimentos sociais; o avanço da produção meramente extrativista agroexportadora, com a postergação indefinida da industrialização do país; a consolidação violenta do processo de descampesinização do campo.
No campo geoestratégico, o Paraguai se converte aceleradamente em um problema cada vez mais grave para o Brasil e as possibilidades da União das Nações Sul-Americanas (Unasul), e tende a se consolidar como uma importante base de operações dos Estados Unidos no processo de disputa pelo controle da América do Sul.
A União de Grêmios de Produção (UGP), formada pelos produtores mecanizados do país, mas que na prática serve de refúgio para os fazendeiros, especuladores e rentistas da terra, armou toda esta trama contra Lugo. Quando a transnacional Monsanto teve inconvenientes para impor sua semente transgênica de algodão e de milho por descumprimento de normas legais, começou a aumentar a pressão da UGP. A Monsanto faturou – sem pagar impostos – cerca de 30 milhões de dólares, apenas em 2011, em regalias por sua soja transgênica, sem contar o faturamento pela venda de sementes. Parte dessa quantia é distribuída anualmente entre os tecnocratas da UGP.
Este grêmio pressionou primeiro pela destituição de Miguel Lovera, um técnico que dirigia a instituição de controle e uso de sementes e agroquímicos no país. Depois ameaçou com um protesto nacional, denominado de tratoraço, consistente no fechamento de rodovias com máquinas agrícolas, e por último pressionou pelo julgamento político de Lugo.
A UGP é dirigida por Héctor Cristaldo, empresário estreitamente ligado ao grupo empresarial dos Zuccolillo.
Este grupo é sócio da Cargill, outra transnacional do agronegócio. O grupo Zuccolillo também tem a seu favor o jornal ABC Color, dirigido pelo proprietário Aldo Zuccolillo. A linha editorial deste jornal está esfestada de incitações e provocações às Forças Armadas e aos partidos políticos para derrubar Lugo desde o começo de seu governo.
Em janeiro deste ano, Aldo Zuccolillo se reuniu com o político do Partido Colorado, o também agroempresário Horacio Cartes. O senador colorado Juan Carlos Galaverna manifestou que Cartes saiu deslumbrado da conversa com Zuccolillo. Segundo os documentos do Wikileaks, publicados pelo próprio Zuccolillo no ano passado, Cartes foi envolvido pela DEA, a agência antidrogas dos Estados Unidos, no narcotráfico e na lavagem de dinheiro. O Departamento de Estado o branqueou.
Chamativamente, no último estágio do governo de Lugo, Cartes foi o principal propulsor dentro de seu partido para o julgamento político de Lugo, apoiado pelo jornal ABC de Zuccolillo. Finalmente, Cartes arrastou o seu partido – que havia sido derrotado por Lugo em 2008, depois de 60 anos no poder – para efetuar a destituição do presidente.
Isto aconteceu após os sangrentos acontecimentos de Curuguaty, no dia 15 de junho passado, onde morreram seis policiais e 11 camponeses, numa desocupação de um latifúndio de propriedade do ex-presidente do Partido Colorado, Blas Riquelme. Estas mortes serviram de principal desculpa para acelerar a queda de Lugo.
Num giro de 180 graus, o Partido Liberal Radical Autêntico (PLRA) abandonou o cogoverno com Lugo e por meio de seu presidente, Blas Llano, também aderiu ao julgamento político impulsionado pelo Partido Colorado, pelo jornal ABC Color e pela UGT.
Atualmente, restam ao PLRA, no poder depois de 70 anos de planura, com Federico Franco como presidente do Paraguai, pouco mais de 13 meses para governar e deverá fazer o trabalho sujo de reprimir os seus ex-aliados no governo: a esquerda e os movimentos sociais, que iniciarão uma sistemática resistência ao governo liberal, destruindo qualquer possibilidade de vencer as eleições do próximo ano. Horacio Cartes, pré-candidato pelo Partido Colorado, sorri e vê melhorar suas chances com o apoio do ABC Color, da Embaixada dos Estados Unidos e da UGP.
Finalmente, nestes dias, Lugo e seus assessores deverão reconhecer que cometeram um grave erro: pensaram que podiam cogovernar com o imperialismo, com a oligarquia feudal e com os partidos de direita, tributários dos poderes de fato e traidores da pátria. Como disse Atilio Borón, é um erro crer que um governo timidamente progressista, como foi o de Lugo, pudesse prosperar transigindo com os interesses oligárquicos e imperiais, sem articular os movimentos sociais e os partidos de esquerda.
“Latifundiários brasiguaios querem derrubar Lugo”
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/510602-qlatifundiarios-brasiguaios-querem-derrubar-lugoq
Martín Almada, o mais importante representante do movimento dos direitos humanos paraguaio, afirma que grandes produtores de soja estão interessados em desestabilizar o governo de Fernando Lugo. “Eles querem que Lugo caia. O latifúndio e os grandes produtores de soja brasileiros estão muito interessados em que Lugo não possa chegar a 2013, quando deve acabar seu mandato”, disse Almada por telefone à Carta Maior, falando desde Assunção.
A reportagem é de Dario Pignotti e publicada por Carta Maior, 18-06-2012.
“Esta matança de campesinos aconteceu como resultado de um processo de violência policial instigado pelos latifundiários descontentes com o presidente Lugo, ele não é querido pela direita e pelos grandes produtores brasileiros. Latifundiários brasileiros como Tranquilo Favero, o produtor de soja mais rico de Paraguai, estão interessados em desestabilizar o governo, eles querem que Lugo caia” declarou Martín Almada, o mais importante representante do movimento dos direitos humanos paraguaio.
Onze campesinos sem terra foram assassinados na sexta-feira passada em uma fazenda próxima à fronteira com o Brasil, onde está aumentando a tensão em paralelo às reivindicações e ações diretas pela reforma agrária. O enfrentamento entre policiais e lavradores deixou sete agentes mortos, entre eles os chefes do Grupo de Operações Especiais, uma espécie de BOPE paraguaio, só que sua tarefa não é reprimir favelados como no Rio de Janeiro, mas os peões rurais que, depois que Lugo chegou ao governo, em 2008, aumentaram seu nível de organização e decisão de luta, depois de décadas de submissão diante do jugo da ditadura de Alfredo Stroessner.
“Nós sabemos por nossa longa experiência sobre como se descarrega a violência do Estado contra a população, que estes fatos nunca estão isolados de uma intencionalidade política maior. Quais são os fatores em jogo agora? O que está mais evidente é cooptar os sem terra para que deixem de desafiar o poder estabelecido no campo e, além disto, vemos uma manobra para desestabilizar o presidente Lugo. O latifúndio e os grandes produtores de soja brasileiros estão muito interessados em que Lugo não possa chegar a 2013, quando deve acabar seu mandato”, disse Almada por telefone à Carta Maior, desde Assunção.
Almada, prêmio Nobel da Paz alternativo, é uma figura chave na luta pelos direitos humanos. Foi ele quem, na década de 90, descobriu os Arquivos do Terror, a partir dos quais pode ser reconstruída a rede terrorista que a ditadura de Stroessner e os regimes de fato sul-americanos formaram nos anos 70, quando surgiu a Operação Condor.
“Nunca vai se saber, porque temos uma justiça cúmplice dos poderes estabelecidos, quem esteve inspirando este massacre, o que nós sabemos sim é que tem gente beneficiada com este clima de instabilidade política e violência. O empresário do agronegócio Tranquilo Favero, um brasiguaio que fez fortuna graças aos favores que recebeu de Stroessner, é um personagem que todos suspeitam que joga forte pela desestabilização”, observa Almada.
“O que está claro é que esta barbárie leva água ao moinho da direita, justifica a mão de ferro da polícia e torna mais viável o golpe de estado branco que seria um possível julgamento político de Lugo, para que se veja obrigado a renunciar e, em seu lugar, assuma o vice-presidente Federico Franco, um político muito reacionário”.
Na história paraguaia ditadura e latifúndio, correspondem ao verso e reverso da mesma moeda.
Segundo um relatório da Comissão de Verdade e Justiça do Paraguai, centenas de milhares de hectares de terras fiscais foram distribuídas pelo regime de Stroessner entre militares e membros da alta burguesia, uma anomalia que foi objeto de revisão por parte das autoridades desde 2008, o que incentivou as reivindicações das organizações de sem terra, como os que ocupavam a fazenda da localidade onde aconteceu o massacre da semana passada.
A Coordenação Nacional das Terras Irregulares conta com documentação sobre os fazendeiros cujas propriedades são irregulares por terem sido originadas na entrega de terrenos fiscais.
Um dos acusados de ter se apropriado de milhares de hectares que eram públicos é precisamente o brasileiro nacionalizado paraguaio Tranquilo Favero, que não oculta sua simpatia pela repressão de campesinos “ignorantes”, como ficou comprovado em declarações formuladas neste ano e que provocaram um escândalo.
“Diplomacia você pode usar com pessoas cultas… só que… você sabe o dito popular que diz: a mulher do malandro obedece só com pau… tamos lidando com pessoas de tamanha ignorância que com diplomacia você não soluciona” disse o maior produtor de soja do Paraguai, nascido em Santa Catarina.
Quando Favero recomenda deixar de lado a “diplomacia” está falando, na verdade, de arquivar o chamado “protocolo da polícia” que consistia em uma série de negociações que os agentes deviam realizar com os sem terra antes de desalojá-los de um latifúndio ocupado.
Precisamente o novo ministro do Interior Rubem Candia Amarilla, designado por Lugo depois da matança, um político pertencente ao Partido Colorado, está tão identificado com o tema que pouco depois de assumir o cargo anunciou o fim do “protocolo” que obrigava a polícia a dialogar com os campesinos para evitar a violência.
O clima de hostilidade com os sem terra se intensificou nos últimos dias, quando a justiça ordenou a detenção de dezenas de sem terra e prendeu uma trabalhadora rural, disse hoje a campesina Magui Balbuena à Carta Maior.
“Temos relatórios de nossos representantes que estão no lugar do massacre informando que vários campesinos já foram levados à penitenciária de Coronel Oviedo ontem, onde tem uma mulher ferida com um filho de três meses que amamenta e a policia lhe tirou o bebê, ou seja, foi trasladada à prisão sem seu bebê de peito” denunciou Magui, da Coordenadora Nacional das Terras Irregulares.
Magui, assim como a Liga Campesina do Paraguai, denunciaram irregularidades nas investigações dos fatos que deixaram 11 lavradores mortos.
“Estamos longe de começar uma verdadeira investigação para o esclarecimento do acontecido, há indícios fortes de que a direita está metida em tudo isto para gerar uma crise política e truncar o desenvolvimento do processo que levamos adiante no Paraguai” afirma a militante.