Filtros e sistema de abastecimento são tecnologias sociais que permitem a apropriação das tecnologias de tratamento pelas famílias – Foto: Reprodução / Leonardo Andrade
16/08/2024
[NOTA DO WEBSITE: A definição de paradoxo sobre esta contradição entre existir água subterrânea e as populações da região Amazônica estarem usando a água disponível, pouca, mas contaminada, esclarece tudo. As populações sempre viveram com a fartura das águas sempre se renovando na região que agora sofre uma das maiores seca jamais imaginadas naquele que parecia ser uma mundo aquático eterno. Mas a devastação da floresta e as mudanças climáticas, ambas provocadas pelos seres humanos, roubam esta riqueza que agora virou pobreza, torna-se, por ironia, a água como a fonte de enfermidades, principalmente dos mais sensíveis. Como isto não é visto e nem sentido por aqueles que ‘prestigiam’, ‘vangloriam’ e ‘incensam’ o desvairado ‘agronegócio’, em todas as suas facetas? A cegueira do capitalismo indigno e cruel, sustentado pela doutrina da colonialidade, com sua obsessão pelas ‘commodities’ de exportação, vem sendo praticado pelos supremacistas antropocêntrico, e traz a devastação que vai além dos ecossistemas porque atinge todos os seres vivos, incluindo os humanos].
Falta de acesso à água potável é causa de muitas ocorrências hospitalares na Região Amazônica.
Já pensou em morar na maior reserva de água doce do mundo e não ter água potável para beber? Esse paradoxo socioambiental é uma realidade em diversas comunidades ribeirinhas em cima do Sistema Aquífero Grande Amazônia (Saga), de acordo com recente estudo realizado pelo Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, em parceria com a USP e outras universidades. A pesquisa avaliou a potabilidade da água após tratamentos caseiros em três comunidades de duas Reservas de Desenvolvimento Sustentável (RDS) no médio Solimões no Estado do Amazonas, RDS Amanã e RDS Mamirauá.
O Saga tem sido comparado a um oceano subterrâneo devido ao seu volume total de 162 mil quilômetros cúbicos. Para efeito de comparação, ele é quatro vezes maior que o Aquífero Guarani. Localizado abaixo da maior floresta tropical do mundo, o sistema, que também não possui potabilidade na cidade de Tefé, a mais próxima das reservas, não é utilizado pela comunidade devido à complexidade da estrutura necessária e maior acessibilidade de águas da chuva e dos rios.
Mais de 15 mil pessoas e 300 comunidades e sítios ficam nessas reservas, mas foram selecionadas três localidades representativas, duas em Mamirauá e uma em Amanã. Nelas, foram analisadas as águas tratadas coletadas das chuvas e dos rios, e, em ambas, a contaminação por coliformes fecais (Escherichia coli) foi significativa, o que leva a um risco de incidência de diarreia nas comunidades. A adoção de meios de tratamento de água sofre diversos desafios relacionados a logística, acesso a materiais, requisitos técnicos, adesão correta aos procedimentos, renda e energia.
“Queremos tratar a água e vêm perguntas como ‘mas por que não usar uma tal tecnologia?’, ‘ porque é muito caro’; ‘por que não usar essa outra?’, ‘porque essa é muito complexa’; ‘e por que então não usar essa outra?’, ‘porque não tem energia’. Então as coisas podem parecer muito simples para pesquisadores de outras regiões do País”, conta Leonardo Capeleto de Andrade, pós-doutorando no Instituto de Geociências (IGc) da USP que está entre os autores do estudo.
Impeditivos para o tratamento adequado
Você gasta energia para ferver e bombear a água, seja energia elétrica, seja energia de carvão, seja gás, lenha. Tudo é energia do ponto de vista físico. Então é um gasto financeiro ou de tempo”, detalha o pesquisador.
Quando se pensa em sistemas mais robustos que atendam várias comunidades, o engenheiro ambiental lembra que “não tem como estender um cano por um quilômetro, ou um cabo, porque vai cair uma árvore e vai cortar ou quebrar”. Já o gerador de energia a partir de diesel – para quem tem um -, por exemplo, é ligado por limitadas horas devido ao barulho e difícil acesso ao combustível.
Por causa dessa dificuldade no acesso à energia, mulheres e crianças são os principais responsáveis pelo abastecimento e tratamento da água. Esse último é feito em três etapas diferentes: sedimentação, filtração com pano e cloração com hipoclorito de sódio. O estudo analisou a presença de Escherichia coli, turbidez, cor e cloro livre após cada etapa e também a combinação delas.
“Às vezes, durante o tratamento, [a qualidade da água] não mudava, ou seja, o processo tinha zero eficiência, ou uma eficiência muito ruim, ou até piorava a contaminação, como é o caso do uso do filtro de pano”, detalha Andrade.
A técnica de filtração é tradicionalmente utilizada pelas famílias, porém pela dificuldade de acesso a energia, a limpeza do pano é realizada muitas vezes no rio em que a água está contaminada, logo, não é esterilizado corretamente antes do uso. Isso se repete para baldes e outros utensílios utilizados.
O uso do cloro, que foi o método mais eficiente de tratamento nas análises quando combinado com a filtração com pano adequado e é distribuído gratuitamente pelos Agentes Comunitários de Saúde (ACS), enfrenta resistência das famílias por efeito do gosto residual e, quando utilizado, usam-se doses menores que a recomendada. Ainda assim, é uma das tecnologias mais adequadas. “Não adianta fornecer uma tecnologia que instale um superequipamento lá. Se as pessoas não se apropriarem da tecnologia, elas também não vão usar”, alerta o pesquisador.
Solucionar ao invés de remediar
Conforme relatório de 2014 da ONU, a cada US$ 1 investido em saneamento, são economizados US$ 4,3 em saúde pública. Apesar disso, no Brasil, mais de 34 milhões de pessoas não têm acesso à rede de água, quase 5 milhões não têm água encanada e 76 milhões não têm coleta de esgoto adequada, conforme dados do censo do IBGE de 2022. “Encaramos saneamento apenas como meio ambiente, mas quando falamos em saneamento, estamos querendo que doenças sejam evitadas“, argumenta Leonardo Andrade.
O Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, com financiamento da Fundação Banco do Brasil, realizou a montagem de equipamentos para bombeamento de água com uso de energia solar, além de os pesquisadores também distribuírem filtros de vela (tecnologia antes incomum na região), que, junto com a cloração adequada, tem resultados efetivos. Ainda assim, é necessário investimento público para levar para mais comunidades das reservas essas melhorias.
Embora haja essa necessidade de investimento público, Maria Cecilia Rosinski Lima Gomes, pesquisadora do instituto e autora de tese de doutorado produzida no Departamento de Engenharia Civil e Ambiental da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) que resultou no artigo, ressalta que “algumas práticas são da gestão de cada família. Essas mudanças de comportamento devem vir a partir da educação e saúde, que é uma atividade que fazemos permanentemente”.