Seca na Espanha e em toda a região mediterrânea nesta primavera de 2023.
Por Sandrine Morel (Madrid, correspondente)
28.04.2023.
Segundo dados oficiais, 74% do território está em risco de desertificação, com 18% do país em risco alto ou muito alto. A Andaluzia e a Catalunha, em particular, sofrem “processos erosivos de grande escala”.
De leque na mão, elas sufocam em seus vestidos de bolinhas com babados largos. Na memória andaluza, nunca fez tanto calor em Sevilha para a Feria de Abril, a grande festa popular que todos os anos colore as ruas desta cidade do sul de Espanha. Desde terça-feira, os termômetros ultrapassaram os 35°C na sombra e devem se aproximar dos 40°C na sexta-feira, 28 de abril, no Vale do Guadalquivir, segundo previsões da Agência Meteorológica do Estado. Esta onda de calor precoce, inédita desde que há registos meteorológicos, não poupa o resto do país onde, por todo o lado, poderão ser batidos os recordes de temperatura do mês de abril.
“Depois de um mês de março anormalmente quente e seco, esperamos temperaturas 15°C acima do normal para o mês de abril ”, resume o presidente da Associação Espanhola de Climatologia (Aeclim), Alberto Marti Ezpeleta. As curvas parecem indicar que as alterações climáticas estão a acelerar e que a Península Ibérica está particularmente exposta devido à sua posição geográfica. Os anticiclones subtropicais permanecem cada vez mais longos na metade sul e mediterrânea, e os períodos de seca são mais frequentes e intensos.»
Um grupo de pessoas em uma carruagem se protege do sol com um guarda-chuva em Sevilha, em 26 de abril de 2023. CRISTINA QUICLER / AFP
Um termômetro de rua marcando 44 graus Celsius em Sevilha, 26 de abril de 2023. CRISTINA QUICLER / AFP
A Espanha está muito quente, e muito cedo, o que preocupa cidadãos e políticos, cientistas e agricultores. Enquanto já arderam mais de 40 mil hectares desde o início do ano, a Agência Meteorológica lançou assim um alerta de “risco extremo de incêndio” em grande parte do território, onde as três condições que tornam os incêndios quase incontroláveis são largamente atendidas: temperatura superior a 30°C, ventos superiores a 30 quilômetros por hora e taxa de umidade inferior a 30%.
“Erosão maciça”
Na realidade, depois de dois anos e meio de seca sem fim, o teor de umidade do solo não ultrapassa 10% em mais de 90% do território. “O aumento das temperaturas seca a vegetação, o solo perde a sua fertilidade e as plantas mortas tornam-se material altamente combustível. Portanto, devemos nos preparar para enfrentar cada vez mais incêndios”, disse Patricio Garcia-Fayos, diretor do Centro de Pesquisa em Desertificação (CIDE), com sede em Valência. Esse biólogo, que há quarenta anos trabalha com erosão do solo, é pessimista. “A degradação das terras áridas e semiáridas, que constituem grande parte do território espanhol, tem causas climáticas e humanas. Quando os dois se combinam, a erosão se acelera, como quando a agricultura é praticada em terrenos inclinados, ou quando a evapotranspiração se soma à super exploração das águas subterrâneas“, explica. “Até ao final do século, mais ou menos brevemente dependendo da evolução das temperaturas, da violência dos incêndios e da gestão do solo, grande parte tornar-se-á zonas semidesérticas e desérticas…”
Um pedalinho é amarrado a um cais em uma parte seca do reservatório de Sau, ao norte de Barcelona (Espanha), em 18 de abril de 2023. EMILIO MORENATTI/AP
Segundo o Ministério da Transição Ecológica e do Desafio Demográfico (Miteco), 74% da área de Espanha já se encontra em perigo de desertificação, havendo, para 18% do país, risco elevado ou muito elevado. A Andaluzia e a Catalunha, em particular, sofrem com “processos de erosão em larga escala” . Estas duas regiões autónomas são aquelas onde a atual seca é mais severa: as albufeiras de água potável encontram-se em ambos os casos a 26% da sua capacidade – um nível crítico à beira do verão que levou os governos regionais a imporem restrições hídricas, tanto para a rega pública jardins ou enchimento de piscinas e para agricultura. Que consome quase 80% da água doce do país.
“Ser a horta da Europa acabará nos condenando, em pouco tempo, a ser o país mais desertificado “, diz o geólogo Julio Barea, chefe de questões hídricas do Greenpeace Espanha. “Vivemos na loucura da água na Espanha. Temos mais de 1.200 grandes reservatórios de água que estimularam o desenvolvimento da agricultura que secou enormes lagoas e colocou as águas subterrâneas sob estresse hídrico. Em vez de nos adaptarmos à água prontamente disponível, nos acostumamos a extraí-la cada vez mais longe e consumi-la sem medida. Em Múrcia, por exemplo, os agricultores colhem três colheitas por ano. Em Guadalajara, está prevista a criação de uma praia artificial com uma lagoa que consome 32 milhões de litros por ano. Tudo isso é uma irresponsabilidade enorme.»
Beber água com gosto amargo
Confrontada com problemas históricos de falta de água, a Espanha enfrentou eficazmente o problema ao construir, ao longo do século XX, centenas de barragens, depois infraestruturas para a transferência de água dos rios, como a que transporta água do Tejo para o Jucar e o Segura, do centro do país à costa do Mediterrâneo, ou mais de 360 estações de dessalinização de água do mar, incluindo a maior da Europa para abastecimento urbano. Na foz do Llobregat, ao sul de Barcelona, desde o verão de 2009, fornece água potável de sabor amargo para quase 4,5 milhões de habitantes.
Um ano antes, em maio de 2008, o governo da Catalunha, em meio a uma terrível seca, fora obrigado a trazer água potável de Marselha, em vapor, para abastecer Barcelona. No momento, a usina de Llobregat está funcionando a plena capacidade, mas não é suficiente para garantir que não haverá cortes de água no outono em Barcelona, se a seca continuar, como disse o diretor da Agência Catalã de Água, Samuel Reis, recentemente. No início de abril, o presidente do governo regional catalão, Pere Aragonès, prometeu dobrar sua capacidade, construir uma nova usina de dessalinização no sul e quadruplicar as capacidades de reciclagem de água.
Reduzir a área agrícola irrigada, que representa quase 4 milhões de hectares, como defendem ecologistas e alguns especialistas, continua sendo um tabu no país: em vinte anos, ao contrário, aumentou 18%. Porém, aos poucos, são tomadas decisões que vão nessa direção. Pela primeira vez, o novo plano de gestão da bacia hidrográfica, aprovado no início do ano, reduz as dotações de água, nomeadamente ao fixar um “caudal ecológico” mínimo para o Tejo abaixo do qual já não é possível transferir água para sudeste do país. Esta decisão não deixou de irritar os agricultores.
Uma moradora enche garrafas de água potável de um caminhão depois que o reservatório Sierra Boyera secou em Alcaracejos em 27 de abril de 2023. PESSOAL / REUTERS
“É provável, portanto, que em algumas áreas haja necessidade de reduzir a área irrigada, porque já modernizamos 70% das fazendas com sistemas de gotejamento e aspersão, e há pouco espaço para melhorias”, reconhece o Ministério da Transição Ecológica. “Podemos imaginar mais algumas usinas de dessalinização, mas seu crescimento não é infinito. Caso contrário, não queremos criar outro problema ambiental, devido às descargas de salmoura.»
“Precisaremos no futuro encontrar grandes consensos e acordos estatais sobre a questão da água e da agricultura e, sem dúvida, será necessário repensar o modelo”, alerta José Manuel Gutierrez Llorente, coordenador da plataforma interdisciplinar de clima criada em 2021 pelo Conselho Superior de Investigação Científica (CSIC), equivalente aos serviços de pesquisa científica de outros países. “As culturas de sequeiro estão cada vez mais vulneráveis e não é possível aumentar ainda mais a área irrigada se não quisermos secar os poços e matarmos a galinha dos ovos de ouro”, insiste.
Os poços estão vazios
No dia 19 de abril, o Ministério da Agricultura convocou o “conselho da seca” e reuniu as principais organizações agrícolas e do agronegócio do país para tratar do problema. Uma reunião tardia, que resultou para o momento em medidas de ajuda fiscal para os agricultores fazerem face à seca. “As perspectivas não são boas para maio e estamos vendo temperaturas mais próximas das de julho ou agosto”, reconhece o presidente da Associação Agrária de Jovens Agricultores, Pedro Barato.
A realidade apanhou os agricultores: 62% dos cereais de sequeiro não vão poder ser colhidos, a produção das oliveiras, amendoeiras ou vinhedos vai cair e algumas árvores podem não resistir. Na bacia do Guadalquivir, a falta de água pode ameaçar tomate, milho, arroz ou algodão. Os produtores de morango reclamam que os ‘frutos’ estão murchos. Almeria, e suas enormes plantações com estufas, devem resistir bem, já que são amplamente irrigadas com água de usinas de dessalinização.
Terra seca e rachada ao redor do reservatório de Sau, cerca de 100 km ao norte de Barcelona, Espanha, terça-feira, 18 de abril de 2023. EMILIO MORENATTI / AP
Não se trata, porém, de questionar o modelo. “Se conseguimos ser a horta da Europa, porque não podemos continuar a sê-lo? pergunta Barato, que recomenda investir mais em soluções técnicas e otimização da água. “O valor da terra irrigada é muito maior do que a terra não irrigada. Onde há abastecimento de água para as plantações, não há desemprego, não há êxodo rural, mas sim riqueza.»
Campos espanhóis “asfixiados”
O coordenador das Organizações de Agricultores e Pecuaristas Espanhóis (COAG), que reúne pequenos e médios agricultores, publicou um relatório em 13 de abril alertando que a seca “já sufoca 60% dos campos espanhóis e causa perdas irreversíveis em mais de 3,5 milhões de hectares de cereais”. “Nunca vimos uma situação tão crítica para as culturas não irrigadas”, sublinha Javier Fatas, responsável pelos assuntos hídricos e ambientais do COAG, que apela à adaptação das condições da Política Agrícola Comum (PAC) à situação em Espanha :“Não podemos, como exige a PAC, fazer rotação de culturas em terrenos onde a falta de humidade é tanta que as sementes não germinam”. O governo também solicitou a ativação do fundo de reserva para crises da PAC.
Todos, com pressa, agora confiam no céu. O bispo da cidade andaluza de Jaen, capital espanhola da produção de azeite, decidiu pegar o touro pelos chifres. “Sem água não há azeitonas e sem azeitonas a província de Jaen sofre”, disse o bispo Sebastian Chico Martinez, que liderará uma excepcional procissão pela cidade na segunda-feira, 1º de maio, ao lado da estátua de Cristo Nosso Padre Jesus Nazareno, uma figura religiosa particularmente querida pelos paroquianos. “Diante da persistente seca de que sofremos, devemos elevar nossos apelos a Deus para que Ele nos envie a água que regará nossa terra sedenta”, explicou aos fiéis. De Peralada, na Catalunha, a Córdoba, na Andaluzia, várias irmandades tomaram iniciativas semelhantes nos últimos dias.
Tradução livre, parcial, de Luiz Jacques Saldanha, abril de 2023.