Por Roberto Salvio, no Others News | Tradução: Rôney Rodrigues| Imagens: Manifestações dos Fridays for Future, em cidades do mundo
Em 15 de março, uma poderosa marcha com centenas de milhares de estudantes espalhou-se por 1.000 cidades do mundo, contra as mudanças climáticas. Desde então, insinua-se uma inesperada campanha de deslegitimação, “desmitificação” contra Greta Thunberg, a adolescente sueca que iniciou o movimento. Nos meios de comunicação, nas mídias sociais e em sites, essa campanha é movida por quatro grupos diferentes.
O primeiro poderia ser chamado de estúpido. Uma escritora aponta fotos de Greta comendo uma banana, afirmando que isso prova um duplo padrão. Quer reduzir as emissões de gases, mas come bananas que vêm de longe. Por que não come uma maçã, que se produz localmente na Suécia? Outro comentarista observa que Greta tem dois lindos cachorros grandes, mas esses cachorros devem estar comendo carne, e as vacas são a maior fonte de emissão de metano (muito mais danoso que o CO²) e uma vaca usa até 15 mil litros de água antes de alcançar a idade do abate. Logo, um terceiro observa que Greta pode não pegar aviões, mas com o uso dos trens está, claramente, utilizando energia elétrica, que em muitos países segue sendo gerada basicamente por carvão. Depois, outra leitora protesta fortemente porque ela comprou um sanduíche no trem, que vem envolto em plástico, e assim está contribuindo para os danos causados pelo plástico aos mares.
Estamos claramente no reino da estupidez, porque é impossível que alguém faça algo no mundo sem contribuir para sua degradação. Isso só mudará quando o sistema político corrigir nosso estilo de vida (lembremos que, pelo que parece, isso é improváve!). Se Greta pedisse a seus pais que se livrasse dos dois cachorros, se fosse assegurado que eles não se mudariam de Estocolmo e comeriam só maças locais, isso faria uma contribuição importante para um clima melhor? Ou é mais construtivo fazer campanha e mobilizar centenas de milhares de pessoas?
O segundo grupo pode se chamar de ciumento. São cientistas do clima que escreveram, em todos os lugares, que começaram a lutar contra as mudanças climáticas antes mesmo de Greta nascer (ela agora tem 16 anos). Como é possível que todos tenham sido ignorados e que agora uma menina despreparada seja capaz de mobilizar gente de todo o mundo? Não há uma autocrítica sobre o fato de que não foram capazes de inspirar e se comunicar com os estudantes. Além disso, Greta não faz uma campanha como especialista. Sua mensagem em todas as partes, foi: por favor, escutem os cientistas. Um velho proverbio chinês diz: nunca brigue com teus aliados.
O terceiro grupo são os puristas. Eles têm redistribuído em todo canto relatórios de jornalistas suecos que se aprofundam nos antecedentes de Greta, descobrindo que seus pais são ecologistas ativos, que seu pai sempre a apoiou e que ela foi influenciada por uma famosa ativista que esteve por trás de cada passo seu. Afirmam que para acreditar em Greta seria necessário que seus pais tivessem se mostrado indiferentes às questões climáticas e que ela deveria ter sido totalmente alheia aos círculos ecológicos. Esta campanha continua, ainda que todos os jornalistas suecos tenham unanimemente declarado que Greta não foi um instrumento de ninguém, e que só está cumprindo com o que julga serem seus compromissos.
Também ocorre que, graças aos deuses, ela tem uma condição mental chamada Síndrome de Asperger, o que a converte em uma pessoa indiferente a agradecimentos, elogios e compromissos. Assim, na carta ao Le Figaro, um dos puristas pergunta se é lógico colocar centenas de milhares de estudantes em todo o mundo “sob o comando de um zumbi”. Essa categoria também inclui muitos que se queixam de Greta não denunciar o fato de que a Suécia ganha dinheiro com a venda de armas. Greta não denunciou a ninguém, então os governantes estão felizes. Greta não iniciou nenhuma campanha contra as finanças, porque não entende que só submetendo as finanças se pode mudar o clima. E assim sucessivamente, de acordo com as lentes através das quais seus críticos a olham.
E, é claro, está o grupos mais legítimo, os paternalistas. Trata-se de um grupo fisiológico que inclui aqueles que pensam que os jovens não têm nenhuma ideia da vida real, e que nada sério sairá do movimento dos estudantes, a menos que escutem aos mais velhos. Seu lugar é na escola, não na rua, eles não têm maturidade para entender assuntos que exigem uma preparação cientifica. Um exemplo é a carta publicada no Corriere della Sera, em que alguém observa que os jovens já quase não leem livros, usam smartphones todo o dia e ignoram música clássica ou teatro: carecem de uma seriedade necessária para um mudança real. Um exemplo extremo de como o paternalismo é gêmeo do patriarcalismo foi um comentário feito por um adulto bem vestido em um grupo que observava os estudantes marchando pela mudança climática: “Me pergunto quantas dessas meninas ainda são virgem”. Quando foi indagado sobre a relação entre virgindade e mudança climática, sua resposta foi: “Bom, até que uma menina seja virgem, pode ter ilusões, mas depois não”.
Essas diversas reações contra uma jovem que simplesmente pede para crescer em um mundo sustentável são, claramente, representativas do quanto mudou a sociedade na última década. Percorremos um longo caminho. O período posterior à Segunda Guerra Mundia caracterizou-se pela necessidade de reconstruir, de fazer sacrifícios, de fazer da Europa uma ilha de paz, de acreditar que a política era uma ferramenta participativa para mudar a sociedade para melhor. A certeza dos jovens de que seriam melhores que seus pais era a crença de todos. Os comícios políticos viram milhões de pessoas nas ruas, com esperanças e compromissos.
Todos sabemos como foi derrubado esse mundo de idealismo. Com a destruição do Muro de Berlim, as ideologias foram as primeiras a desaparecer. A palavra-chave era pragmatismo. Mas era um pragmatismo prisioneiro da filosofia neoliberal, que era intocável. Como disse Margaret Thatcher, não existe alternativa (TINA). Os gastos sociais eram vistos como improdutivos e as finanças ganharam vida própria, sem estarem vinculadas à palavra produção. O Estado foi reduzido ao mínimo. Deveríamos recordar que Ronald Reagan propôs a abolição do ministério da Educação e a privatização total da saúde. As Nações Unidas foram consideradas obsoletas: comércio, não ajuda. Durante três décadas, desde Reagan (1981) até a grande crise financeira de 2008, o lema foi: competir, ficar rico, no plano nacional ou individual.
A política converte-se em uma mera atividade administrativa, desprovida de visão a longo prazo. O declínio da internet mudou a sociedade, de uma rede interativa e conectado de relações baseadas em plataformas para compartilhar para uma rede de mundo virtuais paralelos, onde se busca refugio e se foge da ação pública. Os meios de comunicação, seguidos de uma degradação da complexidade da informação, estão concentrando-se em eventos e ignorando os processos. A televisão passou basicamente para o campo do entretenimento com programas que moldam a cultura popular, como o Big Brother e a Ilha dos Famosos.
A ganância era considerada boa para a sociedade e Hollywood a elogiava. Todos vivíamos em uma bolha financeira que estourou em 2008. Estava claro, então, que a política já não controlava as finanças, mas o contrário. Segundo a Bloomberg, para salvar o sistema bancário os Estados Unidos tiveram que gastar 12,8 trilhões de dólares, a Europa 5 triilhões de dólares. A China gastou 156 bilhões milhões e o Japão mais de 110 bilhões. Ninguém sabe com segurança quanto custou ao mundo salvar seu sistema bancário, que estava (e está) sem nenhum controle nem organismo regulador. Se o valor pago para resgatar os bancos tivesse sido distribuído para as 7,5 bilhões de pessoas no mundo, cada uma deles teria recebido 2.571 dólares. O suficiente para iniciar um frenesi de aquisições, especialmente no sul do mundo, com um enorme salto na produção. Teria resolvido praticamente todos os problemas sociais do mundo, apontados como Objetivos do Milênio pelas Nações Unidas em um acordo assinado por todos os países.
Mas até então, os bancos eram mais importantes que as pessoas… e por suas atividades ilícitas, os ingratos bancos pagaram multas de mais de 800 bilhões de dólares desde seu resgate. Recordemos que a ganância já estava sendo elogiada em Hollywood em 1987 por Gordon Gekko no famoso filme Wall Street. Gekko diz: “A ganância, na falta de uma palavra melhor, é boa”. Não é coincidência que, durante a crise financeira de 2008, o primeiro ministro australiano, Kevin Rudd, tenha dito: “Talvez seja hora de admitir que não aprendemos que toda a lição da ideologia da ganância é boa”. E, no ano seguinte, em um discurso diante do Senado italiano, o cardeal Tarcisio Bertone afirmou: “Passamos do livre mercado para a ganância livre”. E muitas manifestações da sociedade civil mundial, como o Fórum Social Mundial, denunciaram a submissão da política à financeirização.
Mas depois dos trinta anos de elogio à ganância, veio a grande crise financeira de 2008, devido à irresponsabilidade do sistema financeiro. Essa crise trouxe um impacto social negativo adicional que foi o medo: medo do desemprego, o medo do futuro, o medo do terrorismo. Ficou claro que o elevador social que funcionava desde o final da Segunda Guerra Mundial havia parado, com milhões de jovens de todo o mundo presos. O próprio sonho americano estava em crise. E chegou uma nova década, uma de medo.
Como é habitual nos casos de medo, surge uma nova narrativa. O neoliberalismo, TINA, perdeu credibilidade. Todos os partidos políticos traíram as esperanças de seu eleitorado. As pessoas foram deixadas de fora pelas elites, por todos do sistema. Assim, desde 2008, os partidos populistas nacionalistas floresceram em toda a Europa, onde antes da crise eram praticamente inexistentes (exceto Le Pen na França). Seguem florescendo. Nas últimas eleições holandesas, um novo partido populista, o Fórum Pela Democracia, obteve 16 cadeiras no Senado. Seu líder, Thierry Baudet, descartou a “invenção assombrada” da mudança climática — para ele, a idolatria do doutrinamento sustentável da esquerda. Esta é uma posição comum a todos os partidos populistas. Seu sucesso foi dirigir o medo contra o diferente: o diferente religioso, os diferentes costumes, as diferentes culturas… em outras palavras, os imigrantes. A xenofobia se uniu ao nacionalismo e ao populismo.
A cada ano tem havido uma diminuição na renda real, de postos de trabalhos dignos. Os partidos políticos tradicionais perderam a credibilidade e os eleitores optaram por novos políticos, que não formam parte da elite, que não falam em nome do povo e consideram o “glorioso passado” como base do futuro, ignorando qualquer desenvolvimento tecnológico. A divisão social, tomada como base para uma nova cultura política, entrou em plena velocidade destrutiva: em apenas 10 anos, 28 pessoas concentraram em suas mãos a mesma riqueza que 2,3 bilhões de pessoas. Isto é dinheiro que é tirado da economia geral; significa que para cada milionário existem milhares de pessoas empobrecidas. Só no último ano, os 42,2 milhões de pessoas no mundo com mais de um milhão de dólares em ativos financeiros cresceram em 2,3 milhões. É por isso que o Papa Francisco diz que atrás de cada propriedade há uma hipoteca social.
Foi necessário um longo caminho para abandonar o mundo que saiu da Segunda Guerra Mundial e chegar ao atual: um mundo em que os fenômenos anormais, como a guerra e a pobreza, são agora considerados normais para a maioria dos jovens. A corrupção, que, claro, sempre existiu, converteu-se em outro fato natural. A democracia, que se considerava o fundamento central da sociedade, é vista agora como uma possibilidade discutível, como Viktor Orban, Matteo Salvini e a empresa que promove a democracia de baixíssima intensidade.
O medo e a cobiça mudaram nossa sociedade. Estamos no meio de uma transição, e ninguém sabe para onde. O que está claro é que o sistema atual já não funciona e requer correções muito sérias. A maré do nacionalismo, o populismo e a xenofobia estão nos levando de volta às misérias que havíamos esquecido, ao invés de nos levar adiante. As campanhas eleitorais não se baseiam em programas, mas em desacreditar os opositores. Quando o primeiro ministro canadense Justin Trudeau não concordou com Trump, o secretário de Comércio desse último disse que deve haver um lugar especial no inferno para o primeiro ministro canadense. Os debates televisivos se converteram em uma escola de incivilidade. A pergunta é: estamos entrando em uma nova era baseada na incivilidade? Pela primeira vez na história do parlamento britânico, os diferentes opositores são incapazes de encontrar uma saída a um referendo baseado em mentiras.
Vivemos em um mundo onde as coisas positivas são poucas e estão distantes. Um clima político, cultural e social onde nada é aceito como legítimo, ocultando a verdade e manipulado pelo inimigo. Uma era de transição, que deveria chamar-se “a era do mau pensamento”.
A reação contra Greta Thunberg e sua mobilização é um bom exemplo de “mau pensamento”. Ao invés de despertar simpatia e apoio, essa jovem está sendo submetida a esta nova cultura do “mau pensamento”. E, no entanto, ela está fazendo uma campanha pela sobrevivência do planeta, o único que temos, e onde todos devemos viver juntos, independentemente de nossos mitos, religiões, partidos e nacionalidades. Ela diz: não peça que minha geração resolva o problema da mudança climática, porque quando crescermos já será tarde demais. Quando eu fizer 50 anos, haverá 10 bilhões de pessoas, quase todas morando nas cidades. Mas só em dez anos, quando fizer 26 anos, a humanidade necessitará 50% mais de energia e alimentos e 30% mais de água, um elemento que já é escasso em grande parte do mundo e que é uma fonte de renda para as empresas privadas. Não é de se admirar que ela esteja tentando motivar para a ação!
Salvar o mundo agora é uma mensagem que foi capaz de mobilizar estudantes de todo o mundo. Na era do “mau pensamento”, ao invés de apoiá-la, há quem olhe o que ela come, o que comem seus cachorros, e o que há atrás dela, porque supostamente a manipulam. Em outras palavras, estamos em uma era em que não somos capazes de pensar positivamente. É mais do que certo que, se Greta tivesse vendido roupas esportivas, teria sido aceita como um fenômeno normal, e ninguém notaria se ela estivesse comendo bananas ou maçãs. Este é um bom indicador de como perdemos a capacidade de sonhar e seguir em frente.G