“A palavra decrescimento está sendo tomada literalmente. Não se trata de um conceito, mas um slogan”. A advertência é do filósofo e economista Serge Latouche na mesa redonda promovida pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU por ocasião de sua vinda à Unisinos, na semana passada.
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Publicado em novembro 30, 2011
Segundo ele, um dos slogans mais nocivos e perversos do sistema capitalista é o desenvolvimento sustentável. “Para nos opormos a ele, cunhamos o termo decrescimento sustentável”, encarado quase como uma blasfêmia, provoca. A ideia é criar uma sociedade de prosperidade sem crescimento, de abundância frugal. O pensador francês pondera que nossa sociedade individualista está fundada sobre o mercado.
Serge Latouche também esteve em Cuiabá, Foz do Iguaçu e Curitiba. A vinda dele ao Brasil é uma promoção conjunta do Instituto Humanitas Unisinos – IHU em parceria com o Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT, de Curitiba, e Centro Burnier de Fé e Justiça, de Cuiabá.
Serge Latouche, além de economista, é sociólogo, antropólogo, professor emérito de Ciências Econômicas na Universidade de Paris-Sul (1984). É presidente da Associação dos Amigos da Entropia e presidente de honra da Associação Linha do Horizonte. É doutor em Filosofia, pela Universidade de Lille III (1975), e em Ciências Econômicas, pela Universidade de Paris (1966), diplomado em Estudos Superiores em Ciências Políticas pela Universidade de Paris (1963). Latouche é um dos históricos contribuidores da Revista du MAUSS (Movimiento AntiUtilitarista em Ciências Sociais), além de ser professor emérito também da Faculdade de Direito, Economia e Gestão Jean Monnet (Paris-Sul), no Instituto de Estudos do Desenvolvimento Econômico e Social (IEDs) de Paris.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Em que sentido o decrescimento é viável em sociedades em desenvolvimento como o Brasil e a China, por exemplo? O conceito de decrescimento pode ser aplicado a países emergentes?
Serge Latouche – O fato de formular essa pergunta demonstra que o termo decrescimento não foi compreendido. A palavra decrescimento está sendo tomada literalmente. Não se trata de um conceito, mas um slogan. Esse slogan foi necessário porque estamos numa sociedade da comunicação, onde tudo passa por slogans e manipulação midiática. Um dos slogans mais nocivos e perversos do sistema é o desenvolvimento sustentável. Para nos opormos a ele, cunhamos o termo decrescimento sustentável. Esse slogan nasceu na França, numa sociedade muito desenvolvida, com sentido provocador, porque vivemos na religião do crescimento. Sua ideia é romper com a ideologia do crescimento. Assim, quando utilizamos a palavra decrescimento soa como uma blasfêmia. Isso leva as pessoas a se perguntarem como é possível dizer algo desse tipo.
Por trás do decrescimento há um projeto de um outro paradigma, de uma verdadeira sociedade alternativa à sociedade de crescimento. Trata-se de um projeto para romper com uma sociedade e construir outra que não esteja voltada para a religião do crescimento. Se quisermos ser rigorosos, teríamos que falar em acrescimento, assim como falamos em ateísmo. Evidentemente, é preciso falar no projeto de uma outra sociedade que deve crescer com a felicidade, qualidade do ar, da água, da alimentação. Queremos construir uma sociedade que chamo, agora, da abundância frugal, uma sociedade de prosperidade sem crescimento. Retomo, por isso, a ideia de Ivan Illich de sobriedade feliz. O projeto é construir uma sociedade ecossocialista, algo já formulado por André Gorz. Ele próprio aderiu à palavra decrescimento.
Projetos iguais
Se as sociedades hiperdesenvolvidas precisam sair da sociedade do desenvolvimento para reencontrarem o limite, as sociedades não desenvolvidas, que não é o caso do Brasil, têm interesse em não entrar nessa piada.
Isso não quer dizer que não deva crescer uma certa produção para satisfazer as necessidades, mas não devem entrar nessa ideia da produção infinita. O problema do Brasil está exatamente na lógica do crescimento infinito e na fase onde essa fé tem efeitos positivos, e não somente negativos. Na França já não há mais efeitos positivos, mas no Brasil, ainda sim.
Em muitos países a palavra decrescimento não é a mais apropriada. No contexto da África, por exemplo, eu não falaria de decrescimento, mas quando nós encontramos representantes da CONAE do Equador e Bolívia, em Bilbao, na Espanha, num congresso chamado de Decrescimento e bem-viver, imediatamente eles nos falaram que o projeto deve ser o mesmo do que o nosso.
IHU On-Line – É possível haver decrescimento numa época de tamanho crescimento e consumo tecnológico?
Serge Latouche – Esse é o grande desafio. Estamos em uma situação de esquizofrenia total, como dizem os psicólogos. Trata-se de uma dissonância cognitiva. Bastaria ver que ao mesmo tempo os responsáveis do planeta vão a Copenhagen e Cancun dizendo que temos que parar o crescimento. Reúnem-se em Toronto afirmando que a economia deve ser relançada.
IHU On-Line – Como o conceito do decrescimento é recebido pela Europa em crise econômica e sedenta por recuperar-se e continuar consumindo?
Serge Latouche – Mesmo sendo uma ideia importante e fortalecida pelo movimento do decrescimento, frente ao todo essa é uma parte infinetesimal. Mesmo os ecologistas e verdes, que normalmente deveriam aderir, estão muito divididos nesse ponto. Trata-se de uma minoria dentro dos verdes que apoiam com esse projeto do decrescimento. Há iniciativas locais na Itália, sobretudo, que tem obtido êxito e sucesso. Na França isso também pode ser observado, mas somente em nível de algumas cidades e projetos. Há um grande movimento na Europa contra a privatização da água. Não se chama movimento do decrescimento, mas movimento contra o capitalismo e a privatização.
IHU On-Line – Quais os caminhos para “deseconomizar o imaginário” das pessoas no século XXI?
Serge Latouche – As vias do Senhor são impenetráveis. Penso que o trabalho intelectual e de difusão dessas ideias tem um papel. Mas o mais importante para a transformação do imaginário são as vivências. O bom seria ver os exemplos pequenos que temos e que são interessantes, e que quase sempre obedecem à pedagogia das catástrofes. Percebemos que na Europa a vaca louca levou as pessoas a modificar seus hábitos alimentares. Quando eu estava no Japão, ficou claro que o fenômeno do tsunami, que ocasionou a ruptura dos reatores em Fukushima, provocou uma verdadeira efervescência para que as pessoas se interrogassem sobre a energia nuclear. Foi interessante porque a sociedade japonesa é tradicionalmente muito passiva. Como as catástrofes acontecem cada vez mais, infelizmente, vemos estiagem, enchentes, pandemias e doenças novas aparecerem. Tudo isso leva as pessoas a mudarem sua maneira de pensar.
IHU On-Line – A construção de uma sociedade do decrescimento aconteceria, então, através de atitudes individuais e um movimento através de rede? Isso aconteceria institucionalizado ou trata-se de um movimento aberto que depende da atitude individual?
Serge Latouche – Há de tudo. Sou um intelectual e não estou comprometido ou engajado em qualquer partido político. Não tenho nem intenção em criar partido político. Há gente que tentou me “empurrar” para isso, mas não aceitei. É verdade que nos próximos anos pode haver um incremento desse tipo de movimento. Precisamos dizer que os principais movimentos de decrescimento são compostos de jovens. Eles não gostam de que alguém diga-lhes o que deve ser feito. Organizam-se espontaneamente, como os indignados, por exemplo. A primeira ação que fazem é, quase sempre, marchas grandes atravessando países, a fim de sensibilizar as pessoas. Realizam acampamentos durante os encontros (meetings). Na França há dois partidos cujo decrescimento é sua bandeira fundamental, mas sua representatividade é ínfima. Não podemos impedir isso, e irmos contra a criação de tais iniciativas. Haverá, sempre, alguém que se motive a fazer tais ações. Tentamos aprofundar a reflexão sobre o decrescimento através da revista Entropia.
IHU On-Line – Apostando que o decrescimento depende de uma construção de sujeitos diversos, e que o neoliberalismo, o desenvolvimento infinito lembra uma antropologia egoísta, qual seriam as antropologias que dariam base a uma sociedade do decrescimento?
Serge Latouche – O importante da lógica da sociedade do decrescimento é que, efetivamente, saímos da antropologia do homo economicus e vamos cair naturalmente na antropologia com a tradição de Marcel Mauss, na lógica do vínculo social fundado sobre a tripla obrigação de dar, receber e devolver. Nesse ponto de vista, o movimento de decrescimento se encontra em continuidade com o pensamento de Mauss, um movimento antiutilitarista nas ciências sociais, que está bem representado no Brasil no Recife por Paulo Henrique Martins.
IHU On-Line – O que é uma sociedade convivial? A partir de Ivan Illich, qual é a relação entre convivialidade e felicidade?
Serge Latouche – Illich não intitulou seu livro sociedade convivial, mas convivialidade. Começou definindo o que ele chamava de instrumento convivial, oposto à técnica heteronômica que nos expropria de nossa capacidade de gerir nossa vida e que não podemos administrar, como é o caso das usinas atômicas ou da junção de autoestradas, que não são nunca coisas conviviais. Pelo contrário, uma bicicleta é algo convivial porque podemos consertá-la, ela não precisa de combustível, mas só do movimento gerado pelas pessoas. A bicicleta tem autonomia. As técnicas conviviais são inventadas não pela vontade de poder, mas por uma forma de amor para tornar mais fácil a vida dos outros, como a máquina de costurar, por exemplo.
Ivan Illich escolheu o termo de convivialidade porque Aristóteles disse que a sociedade descansa sobre a philia, a amizade. Para os gregos esse é um sentimento muito forte e nós não o conhecemos mais. Esse vínculo de amizade aludido por Aristóteles e também Platão pressupunha que entre amigos tudo é em comum. Ocorre que hoje, entre nossos amigos, as coisas não são mais comuns. Vivemos numa sociedade que, a partir da modernidade, iniciou uma revolução individualista. Damos mais importância à vida privada do que à vida comum. O outro não é tão importante. Ao menos estamos bem conscientes de que o mercado não cria vínculos sociais. Trata-se de uma sociedade individualista fundada sobre o mercado que é quase um oxímoro, um paradoxo.
Ele tenta encontrar o que poderia substituir a philia num contexto moderno. Então ele teve essa ideia de convivialidade. Seria de alguma maneira uma philia de um grão inferior. Poderíamos definir a convivialidade como simpatia no sentido forte do termo, ou a empatia, ou para dizer de outro modo, podemos falar no termo de George Arouel, sociedade decente. Uma sociedade decente é uma sociedade que não humilha seus membros. Especialmente as pessoas do povo têm essa mentalidade, que Arouel chama de decência comum. Espontaneamente há coisas que essas pessoas não fazem. Basta lembrar do período de guerras, quando pessoas comuns tomaram atitudes extraordinárias e que salvaram vidas. Isso é decência comum. Uma sociedade onde isso não existe mais não é uma sociedade, e sim uma selva.
IHU On-Line – Considerando o cenário de crise financeira e econômica, muitos estudiosos falam na crise do capitalismo. O senhor concorda que o capitalismo está em crise e corre o risco de acabar, dando lugar a um sistema alternativo?
Serge Latouche – Sempre se diz que os jesuítas respondem uma pergunta com outra. Então, pergunto: o que é mesmo o capitalismo? A questão fundamental é que o capitalismo, como dizia Max Weber, é primeiro de tudo, um espírito. Sair do capitalismo não se trata de fazer uma revolução e tomar os palácios, mas, antes de tudo, sair do seu espírito. Isso é uma coisa que não se pode decidir assim, tão facilmente. Estou convencido de que o capitalismo sempre esteve em crise. O dia em que entramos no capitalismo, data que é impossível de precisar, começamos também a sair dele. Um dia teremos saído dele e não teremos percebido.
IHU On-Line – Quais suas expectativas para a Rio + 20? Que temas não podem deixar de ser discutidos? Quais as prioridades?
Serge Latouche – Os temas importantes são sempre os mesmos: o desregulamento climático, o fim do uso do petróleo, a destruição da biodiversidade, as enfermidades geradas pela poluição. O decrescimento, contudo, nunca entra na pauta, mas é fundamental, porque impacta em todos os setores da sociedade, como agricultura, indústria, a tecnociência e a ciência.
IHU On-Line – O senhor menciona convergências e divergência em relação ao resgate do conceito de economia civil, principalmente na Itália. Essa economia civil fala, inclusive, em civilizar o mercado, de bens relacionais. Poderia falar um pouco mais sobre essa ideia?
Serge Latouche – Há muitas convergências a partir da crítica à lógica da economia do mercado e da economia tal como ela se configurou. A divergência é, sobretudo, pelo fato que os adeptos dessa economia civil pensam que, de algum jeito, podemos voltar às origens da economia política, e não particularmente a Adam Smith, mas a antes, na Escola do Iluminismo Napolitano. Penso que na época da economia civil napolitana isso era importante, mas evoluiu na economia liberal inglesa. Penso que agora precisamos ultrapassar essa economia e pensar seriamente em sair dela. Isso é a principal divergência na medida em que isso lhes leva a assumir uma posição muito reformista. Eles querem desenvolver uma economia solidária, ética, que são coisas muito boas mas incompatíveis com a lógica do mercado. Nós favorecemos essa ética mas na ótica de não abolir somente, mas de reduzir o espírito do mercado. O que tem que ser abolido é o mercado como um todo. Voltando à escola italiana, menciono Stefano Bartolini, da Universidade de Siena. Ele escreveu um livro muito interessante chamado Manifesto da felicidade que segue totalmente a linha do decrescimento, diferente do que outros autores, como ZamagnI, por exemplo.
IHU On-Line – No Brasil existe o termo economia de baixo carbono. Nesse contexto surgem ideias de Georgescu Roegen. Que convergências e divergências há entre tais ideias e o decrescimento?
Serge Latouche – Não conheço essa ideia. O que se fala é em economia pós-carbono. Então, penso que… não penso. De fato a utilização desse termo provém de Georgescu. Por coincidência, um discípulo seu, Jacques Grinevald, seu assistente, fez conhecer na França seu trabalho e conseguiu publicar lá obras suas como O decrescimento. Creio que a primeira edição é de 1995. Ele não utiliza o termo “decrescimento”, mas “declining”. Contudo, ele disse que o decrescimento correspondia exatamente ao seu pensamento. Porém, é verdade que Georgescu Roegen não considerava a ideia de sair da economia, como eu.
IHU On-Line – Que método de pesquisa utiliza como pesquisador? Que pesquisas têm conduzido agora?
Serge Latouche – Antigamente consagrei-me à epistemologia através de meu primeiro livro, Epistemologia e economia, de 1973, um grosso volume que não se encontra mais. Parti do freudo-marxismo e cheguei a uma posição mais crítica, mais perto do marxismo que do freudismo. Depois lancei O Processo da ciência social e me ocupei bem mais de Habermas e dos conceitos da Escola de Frankfurt, a teoria crítica, além de Umberto Eco com a crítica da linguagem e A estrutura ausente. Minha caminhada foi uma crítica da economia política e de acesso ao real através da crítica do discurso.
IHU On-Line – Tem alguma sugestão de pesquisas que poderiam ser trabalhadas no Brasil?
Serge Latouche – A ideia de construir um futuro sustentável para o Brasil é um tema muito importante a ser trabalhado. Não podemos dissociar os problemas ecológicos dos problemas sociais.