Belo Monte já é uma realidade. Luta de décadas, desde a época da ditadura quando não havia o embuste das ‘público/privadas’, perdida pelo mesmo poder de sempre!
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/550545-qbelo-monte-ja-e-uma-realidade-lutamos-por-decadas-contra-esse-projeto-e-nao-conseguimos-evitar-a-sua-realizacao-entrevista-com-d-erwin-kraeutler
Nunca pensei que entrevistar D. Erwin Kräutler fosse uma tarefa tão fácil. Liguei para a Diocese, querendo saber onde o encontraria, e fui informado de que estava visitando comunidades. A sugestão da secretária foi que enviasse um e-mail. O que poderia parecer um balde de água fria em meu propósito, rapidamente se transformou numa grande surpresa. Duas horas depois, D. Erwin já havia lido a mensagem e se colocava à disposição. Responderia as perguntas por escrito, porque, onde estava, nem sempre se consegue falar bem no celular. Quando leu que sua renúncia gerou um grande fato jornalístico, se assustou e desejou saber “quais as razões”. Seria apenas uma rotina administrativa, prevista no artigo 401, parágrafo 1, do Código Canônico, se o renunciante em questão não se chamasse Erwin Kräutler. Ele possui histórico de vida tão raro quanto precioso, no campo social, entre os homens que se dispuseram a entregar (literalmente) a própria vida, seguindo a melhor tradição – da qual se fez digno herdeiro – dos apóstolos de Jesus, pela causa dos menos favorecidos.
E quando a notícia é a de que se afasta, oficialmente, de uma missão tão importante, surge outra interrogação tão grande, quanto a que se formou com o afastamento do cardeal Paulo Evaristo Arns da arquidiocese de São Paulo: o que vai ser daqueles cuja voz era ouvida apenas pelas palavras de seu Bispo? A comparação não é desmedida. D. Paulo e d. Erwin, assim como outros grandes Bispos brasileiros, como Hélder Câmara e Pedro Casaldáliga, por exemplo, passaram a vida lutando, corajosamente, pelas causas que abraçaram, sem jamais haverem perdido a dimensão da fé.
A reportagem e a entrevista são de João Carlos Pereira, publicadas no jornal O Liberal, 30-12-2015, sob o título “D. Erwin Kräutler: minha grande família que escolhi é o povo do Xingu”.
Eis a entrevista.
O Papa aceitou sua renúncia um ano e meio depois do envio oficial do pedido. Nesse tempo, o senhor esperava que a Santa Sé – o próprio Francisco – solicitassem que permanecesse no cargo? Isso aconteceu com os cardeais Ratzinger e Bergoglio, que apresentaram renúncia aos homens que vieram a suceder, no trono de Pedro.
Apresentei minha renúncia em carta ao Papa Francisco no dia 8 de julho de 2014 como o Direito da Igreja recomenda a um bispo que está completando 75 anos de idade. Poucas semanas depois veio a resposta. O Papa pediu-me que continuasse no cargo “nunc por tunc” (= “por enquanto”) até que fosse nomeado o meu sucessor. Passou um ano e meio até que isso acontecesse.
Nesse período, o senhor continuou a trabalhar sem pensar no desligamento ou fez planos para quando chegasse o documento do papa, aceitando seu pedido?
Continuei com minha agenda repleta de visitas programadas às comunidades e compromissos dentro e fora da Prelazia.
O que pretende fazer agora. D. Erwin? Ficará no Xingu, com Bispo Emérito, auxiliando seu sucessor, um franciscano que é professor de Teologia? Quais os seus planos?
Terei o privilégio de ser o consagrante principal na ordenação episcopal de Frei João Muniz Alves que será meu sucessor como Bispo-Prelado do Xingu. Ele precisará de um bom tempo para conhecer essa maior circunscrição eclesiástica do Brasil e assumir a sua missão de bispo numa realidade complexa e em parte também conflitiva. Não vou passar o cargo para ele e sumir do mapa. Um novo bispo não entra pela porta da frente e o seu antecessor sai na mesma hora pela porta dos fundos. Seria um absurdo. Se ele me escolheu como consagrante principal certamente conta ainda com minha ajuda de irmão até conhecer de perto as regiões, paróquias e áreas de pastoral, as diversas dimensões da Prelazia e também os desafios da Igreja do Xingu. Sem dúvida, haverá um tempo razoável de transição, mas sem transtornos. Estarei simplesmente à disposição de meu sucessor. Aliás, fiquei muito feliz com a nomeação desse frade franciscano que nasceu em nosso estado vizinho, no Maranhão. Laudato Sí – Que Deus seja louvado!
Não faço planos. Sou secretário da Comissão Episcopal para a Amazônia presidida pelo Cardeal Dom Cláudio Hummes e assumi a função de coordenador da REPAM (Rede Eclesial Pan-Amazônica) no Brasil. Esses cargos continuam independentes da sucessão no Xingu. Além do mais recebi e recebo muitos convites para orientar retiros para Padres e Religiosas/os. Não me faltará trabalho e oportunidade de engajar-me nas diversas frentes de nossa Igreja. Aliás, nem consigo atender a todos os convites dentro e fora do país para falar sobre a Causa Indígena e a questão da Amazônia em diversos fóruns, seminários em nível nacional e internacional. Certamente não vou morrer de tédio, sem saber o que fazer. Deus me livre!
O Pará é sua terra adotiva, como Belém foi a terra que adotou, até o fim, D. Vicente Joaquim Zico, seu irmão no episcopado. Um homem com duas pátrias (ainda que naturalizado), como se sente agora, quando está, pelo menos oficialmente, dispensado da missão de dirigir uma Diocese?
Completei cinquenta anos de Xingu. Quando fui nomeado bispo, já vivia há quinze anos no Xingu. Sempre digo que sou “brasileiro nascido na Áustria”. Não fui mandado para o Xingu. A escolha e decisão foi minha. Quando à meia noite de 24 a 25 de novembro de 1965 cheguei em Belém a bordo de num navio cargueiro, sabia que ia ficar.
Em 21 de dezembro de 1965 já estive em Altamira. Nunca me arrependi. Ninguém nega as raízes. Seria um absurdo, mas entendo-me hoje como xinguara. Identifico-me com essa região em que vivo há meio século e com seu povo. A maioria dos municípios do Xingu me outorgou o título de cidadão honorífico. Sou Doutor honoris causa pela Universidade Federal do Pará.
E tem mais: Aposto que exista alguém que conhece o Xingu e o seu povo tão bem como eu. Visitei as comunidades em toda parte, fui até as cabeceiras dos igarapés e os fundos das vicinais da Transamazônica. Andei pelo Alto e Baixo Xingu. Visitei aldeias indígenas e as comunidades mais distantes. 50 anos não são 50 dias! Com tudo isso, quem ainda ousaria duvidar que sou do Xingu.
Nunca me apresentei como “austríaco”. Sempre digo que sou do Xingu. Nasci na Áustria, sim, mas vivi e vivo a minha vida aqui. Não tenho planos de voltar definitivamente à Áustria. É perigoso transplantar uma árvore velha. Se o fizer, ela vai murchar, perder as folhas e lentamente morrer.
Onde mora sua família? Seus amigos estão todos no Pará? A gente do Xingu, os índios, eles são sua família? Penso que o senhor pode dizer como Jesus: “minha mãe e meus irmãos são os que fazem a vontade de Deus”. Onde estão os “seus”, D. Erwin?
Tenho minha família em dois níveis. A biológica, é claro, e a família que escolhi. Meus pais, Deus já os recebeu nos prados eternos. Morreram idosos, ambos no mesmo ano. Mamãe foi primeiro aos 91 anos em janeiro de 2004, papai seguiu aos 94 anos em maio daquele ano. Tenho irmãos e irmãs, sobrinhas, sobrinhos, cunhadas, cunhados e muitos primos e primas, inclusive no Brasil, já que meu tio, irmão da minha mãe, casou aqui. Somos uma família tradicional com muitas ramificações. A primeira informação sobre um antepassado com meu sobrenome e no lugar em que eu nasci, é do início do século XV.
Mas minha grande família que escolhi é o povo do Xingu. É minha gente. Esse povo me acolheu com muito carinho quando cheguei, com a idade de apenas 26 anos, Padre recém-ordenado, cheio de entusiasmo. Em todos esses anos senti sempre o carinho do povo do Xingu.
Quando fui ameaçado de morte por alguns mafiosos que não aceitaram o meu empenho intransigente em favor dos pobres, dos índios, os atingidos pela barragem, ou queriam vingar-se porque denunciei injustiças e violências e apontei ainda os criminosos que abusaram de meninas do colégio, o povo reagiu imediatamente e tomou partido em meu favor. Havia faixas dizendo: “Dom Erwin, nós te amamos!” Quantas “declarações de amor” recebi e continuo recebendo. Onde chego em visita a uma comunidade, o povo me abraça, beija, quer pousar comigo para fotos. A turma jovem bate “selfies”.
E no final da visita, sempre a mesma pergunta: “Quando vem de novo?”. Quantas despedias com lágrimas! Alguém ainda dúvida, quem é minha família?
Sabe-se que o senhor é um homem de hábitos simples, que deu a vida pela causa que abraçou. É padre no melhor sentido do termo. O que não pode fazer, enquanto Bispo, que pretenda fazer agora?
Continuo bispo, só deixo de ser o titular da Prelazia do Xingu. Há coisas que há muito tempo queria fazer e não tive condições de fazê-lo. O arquivo da Prelazia precisa urgentemente de uma atenção especial. Acumularam-se muitos documentos e cartas. Sempre gostei de escrever, mas na maioria das vezes foi quase que “sob pressão”. Queria ter tempo para contar tantas histórias vividas ao longo desse meio século.
Belo monte foi a causa em que, recentemente, mais se engajou. O mundo inteiro ouviu sua voz, protestando contra a construção da usina. Menos, ao que parece, o ex-presidente Lula e a presidente Dilma. Belo Monte é agenda proibida com a Presidente? Quando soube que não poderia tratar desse tema, o senhor desistiu do encontro. O que vale a pena conversar com ela?
Belo Monte já é uma realidade. Lutamos por décadas contra esse projeto e não conseguimos evitar a sua realização. Estive duas vezes com Lula, em 19 de março e 22 de julho de 2009. Naquelas audiências tive ainda esperança de poder reverter o quadro. Na segunda audiência éramos dez pessoas: indígenas, ribeirinhos, procuradores da República, Dr. Célio Berman da USP e a mulher mais empenhada na luta em favor da Amazônia e de seus povos que conheci em minha vida, a minha comadre Antônia Melo. Foi naquela oportunidade que o Lula me segurou no braço e falou aquela frase que virou até manchete: “Não vamos empurrar esse projeto goela abaixo de quem quer que seja!”.
Falou ainda que Belo Monte, se for realizado seria totalmente diferente de outros empreendimentos deste tipo. Ele não pretendia repetir Balbina que chamou de “monumento à insanidade”. Lembrou ainda a grande dívida que o Brasil tem com os atingidos de outras barragens e finalizou dizendo que Belo Monte só será feito “se for do agrado de todos”. Naquela hora fiquei eufórico. Acreditei na sinceridade do presidente. Só mais tarde dei-me conta de que todas as palavras do presidente foram mera encenação. Falou o que o bispo queria ouvir.
Quando descobri que fui traído, fiquei com nojo! Como presidente do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) tentei ainda um contato com a Dilma. Mas soube que, se Belo Monte constasse da pauta de assuntos a serem tratados com a presidente, ela mandaria cortar imediatamente, pois Belo Monte é fato consumado. Quem se prontificou a receber-me em audiência foi o Ministro da Secretaria-geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho. Foi agendada a audiência. Mas poucos dias antes da data marcada, em um evento promovido pela Pastoral Social da CNBB, Gilberto Carvalho foi categórico em anunciar em alto e bom som que a construção de Belo Monte está decidida e essa decisão é irreversível. O que eu iria ainda fazer lá no gabinete desse homem? Pousar para uma foto ao lado de um sorridente ministro como prova do “diálogo” entre o governo e o bispo do Xingu? Não fui! Fui eu quem cancelou a audiência.
O ex-presidente Lula prometeu diálogo, respeito às pessoas e que a usina só sairia do papel se fosse do agrado de todos. Isso não aconteceu. Parece que tudo que ele prometeu foi para ser agradável ao senhor. Deve ter ficado uma grande mágoa por haver ser sido iludido por um presidente da República…
Soube depois da segunda audiência em 22 de julho de 2009 que a equipe que cerca o presidente já havia questionado a concessão de uma audiência ao bispo do Xingu, alegando tratar-se de “agenda negativa”. Mas Lula manteve o que prometeu em 19 de março. Garantiu efusivamente a continuação daquilo que ele chamou de diálogo.
Foi marcado um outro encontro para outubro do mesmo ano. Passei no final de outubro de 2009 uma semana em Brasília aguardando ser chamado para um novo “diálogo”. Cada dia recebi um telefonema do planalto dizendo que “hoje não dá, talvez amanhã”.
Na sexta-feira Gilberto Carvalho me telefonou às 21:30 avisando que “lamentavelmente” não daria desta feita eu ser recebido pelo presidente pois ele partiria para Venezuela para encontrar-se com Hugo Chávez. Na minha ingenuidade ainda acreditei no “diálogo” até que finalmente descobri que fui gentilmente convidado a cair fora.
Belo Monte já é uma luta perdida. Como o senhor se sente, depois de haver alertado o planeta para os desastres ambientais que a construção da usina provocaria e, sobretudo, para os dramas humanos? Como o senhor vê o quadro, agora irreversível, das pessoas que vivem na região da usina? As casas, pelo menos, oferecem condições dignas de moradia?
Muitas vezes me perguntam, se eu não estava tremendamente frustrado e decidido de pendurar as chuteiras de uma vez, já que não fui, ou melhor, já que não fomos vitoriosos em nossa luta. Primeiro não me entendo como derrotado, de jeito nenhum. Como bispo cumpri minha missão. Quem se deixa orientar pelo Evangelho não faz depender o seu engajamento em favor dos irmãos e irmãs da certeza da vitória, já previamente garantida. Aliás, a execução de Jesus na forma mais cruel que a antiguidade conhecia é aparentemente um atestado insofismável do fracasso total e absoluto de sua missão. De fato, os sumos sacerdotes e anciãos acharam que com a morte de Jesus toda a sua mensagem fosse varrida de uma vez da face da terra. No entanto, da cruz saiu a maior revolução de todos os tempos, a revolução do amor. É bem interessante também a palavra de Mahatma Gandhi: “A satisfação está no empenho, não no sucesso. Empenho total é sucesso total”
As casas construídas para as famílias compulsoriamente desalojadas e arrancadas de sua terra são bonitinhas por fora e apertadas por dentro. São planejadas nos gabinetes de Brasília e não levam em conta a índole do povo paraense e amazônida e as peculiaridades climáticas da região. Mesmo que têm mais uns poucos metros quadrados inserem-se no estilo das gaiolas denominadas “Minha Casa – Minha Vida”. São uma agressão à cultura habitacional do paraense, do amazônida, pois não levam em conta os costumes do povo que vive aqui. A tradicional hospitalidade amazônida que sempre acha mais um lugar em casa para atar a rede para um familiar, parente ou amigo, é brutalmente massacrada. Imagine-se só um casal com talvez dois filhos diante do pai ou da mãe que vivem no interior e vem a Altamira para se tratar e logicamente se dirigem à casa de seu filho ou filha para hospedar-se. O filho, a filha terá que repetir a sentença do dono da pensão em Belém quando Maria e José procuraram abrigo: “Aqui não tem lugar!”.
O senhor consegue dimensionar o tamanho do prejuízo que os povos indígenas tiveram, histórica e continuamente, na Amazônia, desde que aqui chegou, em 1965, como padre recém-ordenado?
Lamento que os povos indígenas que até agora viviam na Volta Grande do Xingu não têm condições de sobreviver em suas terras. Não sei se vão sobreviver fisicamente. Culturalmente sei que não! Os grandes projetos governamentais são todos anti-indígenas. Não levam em conta a presença, desde tempos imemoriais, destes povos. O sujeito da história é o projeto, não um povo.
Mas vivi nas décadas passadas também uma experiência muito positiva e gratificante. Desde que cheguei à Amazônia nutri uma afeição especial pelos povos indígenas. Nunca me esqueço da ducha fria que levei quando como padre recém-chegado perguntei pelos Kayapó e um cidadão me respondeu que deveria “largar de mão esses caboclos” e ainda acrescentou: “Se Deus quiser, daqui a vinte anos não sobrará um deles!”
Naquela hora jurei comigo mesmo que no que depender de mim lutaria sem trégua em favor dos povos indígenas, pela sua sobrevivência, sua cultura e pelo direito às suas terras ancestrais.
Já em 1983 fui pela primeira vez eleito presidente nacional do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Exerci essa função por quatro mandatos. Uma das maiores vitórias que registro em minha vida foi a inscrição dos direitos indígenas na Constituição Federal de 1988. Foi fruto do empenho do Cimi e da Igreja Católica junto com os povos indígenas. Através de inúmeros encontros com os deputados constituintes, conversas e palestras, inclusive no Congresso, conseguimos finalmente uma votação favorável ao capítulo “Dos Índios” (Art. 231 e Art. 232). No dia 1º de junho de 1988, o plenário da Assembleia Nacional Constituinte aprovou a redação do capítulo específico sobre os direitos indígenas. No segundo e último turno de votação plenária, na sessão de 30 de agosto de 1988, de 453 votos, o capítulo sobre os índios obteve 437 votos favoráveis, 8 abstenções e 8 votos contrários.
Lastimo agora ter que constatar que através da PEC 215/2000 a poderosa bancada ruralista no Congresso declarou guerra às conquistas de 1988, querendo alterar os parâmetros constitucionais.
Quando aqui chegou, há exatos meio século, a Igreja era governado pelo, agora, beato Paulo VI, que cuidava de dar vida às decisões do concílio convocado por seu predecessor, o agora São João XXIII. O Concílio não mudaria apenas o rito da missa, mas muita coisa deveria ser alterada. O que, se dependesse de sua forma de ver a vida, poderia ser mudado nas relações da Igreja com o mundo e da Igreja com seus padres e freiras? A manutenção do celibato é tema proibido ou deve ser revisto pelo papa?
Não considero o tema “celibato” um tema proibido. É um fato que muitos bispos falam sobre o assunto e não apenas “à boca pequena”. Concordo que se trata de um tema delicado que dá margem para muitas interpretações, às vezes até bastante equivocadas. Quero, porém, colocar os pingos nos is. A decisão por uma vida celibatária é decisão de um homem ou de uma mulher que opta livremente por esse estado de vida. Ninguém tem direito de forçar alguém a tomar essa decisão como ninguém pode obrigar um homem ou uma mulher a se casar. O celibato tem um valor imenso quando é assumido voluntariamente “por causa do Reino” (Mt 19,12).
Pessoalmente não poderia imaginar-me fazer o que fiz ou expor-me do jeito como tive que me expor, enfrentar circunstâncias adversas como tive que enfrentar e suportar até ameaças à minha vida se tivesse mulher e filhos. Pelo menos na hora das ameaças teria que tomar a decisão de sair da conjuntura hostil e lembrar-me da primeira responsabilidade como esposo e pai de família. A família sempre teria que ser a prioridade número um.
O celibato se torna “problema” quando é acoplado à Eucaristia que, segundo as atuais leis e normas da Igreja, pode só e exclusivamente ser presidida por um homem celibatário. O Vaticano II (1962-65) afirmou que “nenhuma comunidade cristã se edifica sem ter a sua raiz e o seu centro na celebração da santíssima Eucaristia, a partir da qual, portanto, deve começar toda a educação do espírito comunitário” (PO 6). A Constituição Dogmática “Lumen gentium” do mesmo Concilio fala da Eucaristia como “fonte” e “ponto culminante de todas a vida cristã” (LG 11). É portanto urgente que a Igreja cria estruturas para que os 70% das comunidades da Amazônia que só tem acesso à Eucaristia duas ou três vezes ao ano possam ter acesso à celebração eucarística dominical.
O “problema” não é o celibato em si que é uma graça, mas a exclusão de milhões da celebração eucarística dominical por causa de estruturas perfeitamente modificáveis.
É verdade que o senhor pediu ao Papa permissão especial para ordenar homens casados, uma vez que há uma carência enorme de sacerdotes em sua Diocese, onde há 800 comunidades e apenas 27 padres. Qual foi a resposta da Santa Sé? Se é que houve resposta.
Nunca pedi ao Papa explicitamente uma “permissão especial para ordenar homens casados”. Que eu tivesse feito um pedido nestes termos foi uma interpretação que apareceu em alguns jornais. Na realidade falei na audiência particular que o Papa Francisco me concedeu em 4 de abril de 2014 sobre as “comunidades sem eucaristia”. O Papa falou então aquela frase que também virou manchete. Ele me disse que espera dos bispos “propostas corajosas”. Voltando ao Brasil relatei na Assembleia Geral de 2014 em Aparecida aos bispos reunidos o que o Papa me havia dito. Em seguida a Presidência da CNBB constituiu uma comissão que está estudando e elaborando propostas “corajosas” que oportunamente podem ser submetidas ao Papa Francisco. Espero apenas que isso aconteça o quanto antes.
Na sua opinião, como deveria ser a ação da Igreja, hoje, numa terra continental como a Amazônia, onde algumas denominações ditas “evangélicas” avançam rápida e (desculpe o termo) predatoriamente sobre a consciência católica?
Minha experiência é que, quando alguém participa e se engaja em sua comunidade e a comunidade está funcionando realmente na sua dimensão samaritana e profética, se entendendo como a família das famílias em que todas e todos tem vez e voz, e ainda tornando-se espaço para a meditação da Palavra de Deus e de oração e celebração é muito raro um membro se despedir e mudar para uma outra denominação.
Padres casados são uma solução paliativa um futuro inevitável para a Igreja?
Mais uma vez, não se trata de padres casados ou não. O cerne da questão é o acesso dos fiéis à Eucaristia.
O Papa Francisco tem conseguido fazer com que as pessoas pensem, pelo menos, na misericórdia de Deus para com as minorias, como os gays; ou para com mulheres que praticaram aborto. É a Igreja se abrindo ao mundo para acolher os que, até então, viviam à margem. O que o senhor pensa sobre isso? Como sua vivência entre povos indígenas e a gente simples do interior do Brasil, com poucos direitos à cidadania e à dignidade de vida, fez o senhor pensar esses temas?
A história do Bom Samaritano que Jesus contou (Lc 10, 25-37) é para mim o paradigma para entender o que significam compaixão e misericórdia. Compaixão é um estado emotivo, um sentimento afetuoso do tipo: “Coitadinho!” “Dá dó ver o pobrezinho!”. Misericórdia é a compaixão traduzida em ação, em solidariedade, em amor que se doa sem nada esperar em troca. O detalhe está no original grego do Evangelho de São Lucas, onde a pergunta de Jesus não é “quem foi o próximo” como erroneamente quase todas as edições da Bíblia traduzem. Jesus pergunta: “quem tornou-se próximo?”. Ser próximo é a constatação de alguém estar bem perto de outrem. Tornar-se próximo implica numa decisão conscientemente tomada de aproximar-se de outra pessoa, no caso da história do Evangelho, de quem foi assaltado e está necessitando de primeiros socorros. Não importa quem é, de onde vem, a que raça pertence, que religião professa. Basta que esteja sofrendo, basta que esteja precisando de nosso auxílio, de nosso apoio.
É essa vocação da Igreja, de cada cristão e cristã: tornar-se próximo. Em primeiro lugar nunca fica o julgamento ou uma possível condenação. A “aproximação” em termos de ajuda, carinho, compreensão tem sempre a primazia. Defendo a vida desde a concepção até o desenlace natural de uma pessoa. Mas defendo também que as mulheres em situações de risco sejam amparadas e tenham alternativas concretas para evitarem o pior, a morte provocada do neném debaixo de seu coração. Quando se fala em aborto, geralmente só se pensa na mulher. Tantas vezes fica sozinha no seu dilema, entregue à própria sorte. Cadê o homem que engravidou a mulher? Está palitando os dentes em qualquer esquina da rua como se nada tivesse acontecido! Existe ainda, e muito, essa desgraça de machismo.
Quanto aos indígenas, a misericórdia se traduz em defesa de seus direitos constitucionais e numa sensibilidade toda especial para com os primeiros habitantes desta terra. Atitudes ultrajantes e racistas continuam a existir e são muitas vezes cultivadas no seio da família. Se para os pais os índios são “caboclos” e “selvagens” quem vai evitar que os filhos tenham a mesma compreensão? Grande parte do material didático de nossas escolas tem que ser revisado.
São João Paulo II foi duro com o ex-presidente Sarney, quando disse que a reforma agrária no Brasil não poderia fracassar, porque era uma questão de direitos humanos. O que fez a Igreja para que esse processo não parasse de vez?
Fico intrigado como a questão da “reforma agrária” desapareceu da pauta do governo. Foi durante anos a bandeira prioritária do PT que inclusive ajudou o Lula ganhar a eleição. De repente nem é mais assunto de pauta nos Encontros Nacionais do PT. É uma das grandes decepções que carrego comigo: um partido que assumiu compromisso com as causas dos menos favorecidos no Brasil, especialmente os trabalhadores no campo e os operários debandou para o outro lado, fazendo alianças com o latifúndio e o agronegócio. Parece-me que para garantir a governabilidade os políticos hoje estão prontos para fazer aliança até com o diabo.
Ainda bem que a Igreja Católica nunca abandonou essa causa. Sempre de novo a questão agrária estava na pauta de assuntos das Assembleias Gerais da CNBB. E a Pastoral de Terra (CPT) continua firme na defesa dos direitos dos agricultores e denuncia vigorosamente todo tipo de crimes no campo, desde a manutenção de empregados em regime de escravatura até os assassinatos brutais a mando do latifúndio. No caso da questão indígena o CIMI é hoje criminalizado por defender os direitos dos indígenas às suas terras ancestrais, ancorados na Constituição Federal em vigor. No Mato Grosso do Sul uma deputada estadual inventou uma CPI do CIMI que corre atualmente naquela Assembleia Estadual. Que inversão de valores!
O papa Francisco – cuja simplicidade, na casa Santa Marta, onde teve um encontro privado com o Pontífice, que o deixou muito impressionado pela simplicidade – escreveu uma carta encíclica sobre ecologia. O senhor acha que ele continua pregando no deserto, como João Batista?
O encontro que tive com o Papa não ocorreu na Casa Santa Marta, mas na biblioteca do Palácio Apostólico. Passei quatro dias na Casa Santa Marta onde pude realmente apreciar a simplicidade do Papa Francisco. Vi como entrou à noite no refeitório e pegou o seu prato como qualquer hóspede para servir-se no buffet. Num outro dia vi-o chamar e aguardar o elevador, os guardas suíços em discreta distância.
Estou convicto de que a Encíclica Laudato Sí influenciou a 21ª Conferência do Clima (COP 21) realizada há poucas semanas em Paris. Aliás, esta encíclica também tornou-se um ponto alto em minha vida de bispo na Amazônia quando descobri que minhas sugestões a respeito da Amazônia e dos Povos Indígenas apresentadas naquela memorável audiência foram contempladas nos números 38 e 146.
Pode ser que o Papa é ainda uma voz no deserto, mas ninguém nega que ela repercute e muito e não será mais calada.
O senhor ainda consegue acreditar num Brasil que não para de produzir notícias sobre a corrupção e a incompetência dos governos para agir em favor da vida dos que mais necessitam?
“A esperança é a última que morre” é um ditado popular. Continuamos a sonhar com um Brasil diferente. Aqui e acolá surgem fatos concretos. O “Lava-jato” já é um indicativo de mudança. Esses “cabra ruim” que lesaram o Brasil e os brasileiros hoje pelo menos são indiciados e quem nem em pesadelo sonhou com prisão está hoje vendo o sol quadrado. É pena que tudo anda tão devagar que às vezes se perde a confiança. Será que de novo tudo vai acabar em pizza? Como um presidente da Câmara de Deputados comprovadamente corrupto e mentiroso pode ser manter no poder? São perguntas que cada um de nós se faz.
Mas mesmo assim, mais uma vez: “A esperança é a última que morre”
Agora que já não é mais responsável por uma Diocese, pensa em dispensar a proteção policial que o acompanha 24 horas por dia, até ir a um aniversário? Já se sente livre para ser livre ou a Amazônia, inclusive nesse sentido, continua a ser um lugar perigoso para pensa em Justiça Social como o senhor?
Não fui eu que pedi a proteção pessoal. Pelo contrário me opus e só aceitei diante da insistência de quem “sabia mais que eu” e me recomendou encarecidamente que aceitasse a decisão do governo. Assim cabe também à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República com seu programa de Proteção dos Defensores de Direitos Humanos a encerrar a proteção especial.
Não vejo atualmente nenhuma razão de manter a proteção. Mas, como um superintendente da polícia me falou: “Quando tudo parece tranquilo, mesmo assim nunca se sabe o que essa gente está tramando“
Para finalizar, D. Erwin: o senhor conheceu outras irmãs (ou irmãos) como trabalho e coragem semelhantes ao de Dorothy Stang em sua caminhada como padre ou como Bispo, que corram os mesmos riscos da missionária assassinada em 2005?
Conheci, sim, pessoalmente o Dema, Ademir Alfeu Federicci, casado com Maria da Penha e pai de quatro filhos assassinado na madrugada de 25 de agosto de 2001 em sua casa. Caiu morto aos pés de sua mulher. “Maria cuide de nossos filhos!” teriam sido suas últimas palavras. Morreu pela mesma causa que foi a razão do assassinato, uns anos mais tarde, de Irmã Dorothy Mae Stang.
Irmão Humberto Mattle foi morto no corredor da Casa da Prelazia em que moro. O motivo verdadeiro de seu assassinato à queima-roupa ninguém sabe até hoje.
Já em 28 de abril de 1985 Irmã Cleusa Rody Coelho foi barbaramente executada. Conheci-a do Cimi. Dedicou a sua vida aos Apurinã, na Prelazia de Lábrea, AM. A autópsia revelou que foi espancada até a morte. Todas as suas costelas estavam quebradas, seu crânio fraturado.
Diante dessas e outras mortes bárbaras sempre lembro a palavra que se encontra na Primeira Carta de São João: “Nisto conhecemos o amor que Ele deu sua vida por nós. Também nós devemos dar nossas vidas pelos irmãos e as irmãs” (1 Jo 3,16).
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