‘Belo Monte é um monstro do desenvolvimentismo’, entrevista com a antropóloga Carmen Junqueira.

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Antropóloga critica a construção de hidrelétrica no Xingu, afirmando que ela causará mais impactos do que benefícios, podendo afetar até, a longo prazo, tradições indígenas.

 

http://www.ecodebate.com.br/2012/10/17/belo-monte-e-um-monstro-do-desenvolvimentismo-entrevista-com-a-antropologa-carmen-junqueira/

Belo Monte

 

Enquanto indígenas de diversas etnias, além de pescadores, ribeirinhos e pequenos agricultores ocupavam o canteiro de obras da hidrelétrica de , no Sul do Pará, numa manifestação contra a construção da usina, a antropóloga Carmen Junqueira fazia um balanço de suas pesquisas com os povos da região, no auditório da PUC de São Paulo, durante o Colóquio Transformações da Biopolítica, na último dia 10. Foi pouco depois da criação do Parque Indígena do Xingu, pelo então presidente Jânio Quadros e por pressão dos irmãos Villas-Boas, que ela pisou na região pela primeira vez e se deparou com uma paixão que entrou em seus estudos, na vida particular, e em sua casa: os povos indígenas do Alto Xingu, especialmente os Kamaiurá, até hoje referência importante de cultura indígena. Desde 1965, ela os visita periodicamente e até os recebe em casa, em São Paulo, acompanhando mudanças, principalmente em decorrência do desenvolvimento econômico que tirou as aldeias do isolamento. Em quase 50 anos estudando a etnia, ela tem analisado o contato cada vez maior com a cultura branca, e enxerga parte das novas características nas aldeias como inerentes ao processo. Mas o discurso analítico da antropóloga muda quando o assunto é Belo Monte. Em meio segundo de resposta, ela afirma: “Sou contra”. Carmen classifica a construção da hidrelétrica, que está sendo tocada pelo consórcio Norte — responsável pela construção e operação de Belo Monte — como parte de um projeto desenvolvimentista do governo que atropela o valor histórico e cultural das populações locais. Entrevista em O Globo, socializada pelo ClippingMP.

Como a senhora vê a ocupação que está acontecendo neste momento no canteiros de obra da Norte Energia, no Sudoeste do Pará?

Os ocupantes estão defendendo sua própria sobrevivência. A maioria de nós desconhece os saberes dos povos indígenas, ribeirinhos e outros tantos que zelam pela natureza. Eles representam a quebra da monótona subserviência consumista, oferecendo diversidade e originalidade. Nós não sabemos, mas eles estão igualmente nos defendendo.

Por conta do progresso, que tem sido a palavra de ordem no país?

Eles estão nos defendendo de uma fúria desenvolvimentista. Sou totalmente contra grandes . Sei que temos de gerar energia, mas o impacto desses empreendimentos monstruosos é muito danoso. Acredito em outro modelo, mais local, com pequenas centrais, energia das ondas do mar, do sol. Conheço a hidrelétrica de Tucuruí (no Rio Tocantins, no Pará) e, quando estive lá, não consegui nem enquadrá-la numa foto, dado o tamanho do monstro. E a história de Balbina (no Estado do Amazonas) todo mundo já conhece, trata-se de um empreendimento com grandes impactos, incompatíveis com os benefícios.

A senhora esteve em Altamira, em cujas imediações estão sendo feitas as obras de Belo Monte. Quando foi isso, e qual era o cenário lá?

Estive lá logo que o burburinho começou, vi o projeto de perto, conversei com as pessoas. O que está acontecendo lá é um desenvolvimento a qualquer custo. Vai afetar muitos povos indígenas, como os Kaiapós e Juruna, além de populações rurais. Não sei como vai ficar quando estiver pronto, os impactos nas populações, porém, serão imensos. E essa energia gerada vai para indústrias, o zé povinho mesmo não leva quase nada para si.

E os Kamaiurá, foco principal de seus estudos desde a década de 1960, serão afetados?

Os Kamaiurá ficam um pouquinho mais para baixo no Pará. Diretamente não serão afetados, mas hoje o que acontece na região do Xingu afeta a todos. Eles não estão mais isolados. Haverá consequências secundárias. Muda a flora, muda a fauna, isso afeta as populações, que são expulsas e não participam do processo. Quando dizem “ah, mas é pouco o que será usado de território”, é um argumento pífio. O território é deles, e, por tudo que fizemos com os povos indígenas, temos pelo menos uma dívida moral com eles.

Quais são as principais mudanças que a senhora já registrou no comportamento do povo Kamaiurá desde o início de suas incursões ao local?

Como todo povo indígena, eles gostam muito de mel. De repente o açúcar surge como um produto baratíssimo. Isso começou desde a época dos irmãos Villas-Boas, que, no entanto não gostavam que os índios adquirissem todos os nossos hábitos. Depois da década de 1990, os Kamaiurá começaram a comprar muito açúcar, em pacotes de cinco quilos. Hoje já tem uma moça com diabetes na aldeia. O que quero dizer com isso? Essa entrada do mudou o comportamento nas aldeias. Vai mudando o paladar. O capitalismo coloniza até o apetite dos índios, que passaram a consumir o que nós consumimos. Hoje, as listas de presentes que eles me pedem para quando voltar têm produtos para depilação, embelezamento dos cabelos, e outras coisas que classifico na categoria novidades, que vão desde cachorros a aparelhos eletrônicos. Os jovens hoje têm acesso às redes sociais, o que traz mais mudanças ainda. Eles têm um programa de rádio e, outro dia, foram me entrevistar novamente. Pela primeira vez, um deles passou a palavra ao outro dizendo “É com você, Bené”. Isso não é coisa de futebol? Hoje eles cobram hospedagem, cobram por direito de imagem. Já entenderam a monetária, embora para eles a troca ainda seja o primordial.

A ecopolítica, foco do colóquio de hoje, propõe-se a analisar práticas de gestão que incluem mecanismos de controle das populações, dentro da participativa. Quais são os impactos desse controle sobre os povos indígenas?

Eles estão passando por várias mudanças e teoricamente têm mais poder de participação, mas não é real. E sobre mudanças no cotidiano, eles encaram como naturais. Só entram na defensiva mesmo quando pode haver impactos na tradição. Fiz entrevistas na aldeia para descobrir o que eles chamavam de tradição. São ritos e mitos, o que eles mais valorizam. Ainda não é o dinheiro. Enquanto tradição para nós tem a ver com rotina de trabalho, de família, filhos, para eles é a arte. Isso é o que mais valorizam.

E isso tudo pode ser afetado por esses grandes empreendimentos?

Essa perda cultural deve entrar no cálculo dessas grandes obras. Mas não entra, ninguém dá valor a isso. Os grandes empreendimentos modificam a flora e a fauna; é possível que o regime dos peixes se altere. A sobrevivência dos xinguanos pode ser afetada. O maior perigo é com a alimentação precarizada, e que eles comecem a se voltar para o turismo ecológico. Seria desastroso se começassem a realizar suas cerimônias até para inglês ver. Com o tempo, essas cerimônias poderiam perder seu caráter aglutinador, sua memória, tornando-se apenas espetáculo.

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