Arquivos & Diversidade Étnica: de Coroados a Kaingangs.

Print Friendly, PDF & Email

Muito ainda está por ser escrito sobre a história indígena no RS. Sabemos que as lutas por igualdade racial travadas ao longo do último século têm trazido uma série de conquistas para os movimentos negros e indígenas, como a aprovação de leis que garantem a obrigatoriedade do ensino da história e cultura africana, afro-brasileira e dos povos indígenas nas escolas, entretanto, também sabemos que é longo o caminho a percorrer para que haja pleno reconhecimento de nossas matrizes identitárias e sócio culturais, e que as dificuldades e o desconhecimento são ainda maiores quando tratamos dos povos indígenas, sobre os quais pouco estudamos, com os quais temos menos contato cotidiano, e pouca informação sobre sua organização, modos de vida, cultura material e imaterial, transmissão oral do conhecimento, hábito alimentares, técnicas artesanais…

 

https://arquivopublicors.wordpress.com/2014/06/11/arquivos-diversidade-etnica-de-coroados-a-kaingangs/

Conquista dos Campos de Guarapuava. Chegão os novos Indios ao arranchamento, tirão os Camaradas da sua rôpa quanto puderão até ficarem alguns sem camiza, e só os ponches cubertos, e os vestem. Guache e aquarela: atribuído a José de Miranda, século XVIII

Conquista dos Campos de Guarapuava. Chegão os novos Indios ao arranchamento, tirão os Camaradas da sua rôpa quanto puderão até ficarem alguns sem camiza, e só os ponches cubertos, e os vestem. Guache e aquarela: atribuído a José de Miranda, século XVIII

Para que haja a garantia de direitos a estes povos, tão múltiplos em sua origem, tão ricos culturalmente, e tão massacrados pelo processo de colonização, acreditamos que é necessário passar pelo processo de (re)conhecimento e valorização de sua história, de sua diversidade, de suas contribuições à nossa composição societária, processo com o qual os arquivos e seus acervos certamente têm muito a contribuir!

Neste sentido, hoje gostaríamos de compartilhar o trabalho “De Coroados a Kaingang: as experiências vividas pelos indígenas no contexto de imigração alemã e italiana no RS do século XIX e início do XX”, (clique aqui para acessar) da historiadora Soraia Dornelles, pesquisadora do APERS e de outras instituições de memória, que a partir de acervos diversos buscou problematizar as experiências vividas pelos indígenas Kaingang ou Coroados, como eram conhecidos ao longo do período estudado, no processo de contato com os imigrantes alemães e italianos no século XIX e início do século XX. Soraia analisa relatos memorialísticos e literários, relatórios policiais e de governantes da província, correspondências, mapas e jornais, buscando reconstituir as relações travadas entre os grupos Coroados originários que habitavam o planalto e os imigrantes destinados a tais territórios.

Contextualizando o leitor a respeito do modo de vida Kaingang e de sua subsistência ancorada na pesca, coleta e caça rarefeita, com alimentação baseada no pinhão, Soraia demonstra a importância da mata de pinheiros e da distribuição de territórios entre os grupos familiares segundo a disponibilidade deste principal, evidenciando o impacto causado aos locais que se deparavam com os novos e desconhecidos habitantes explorando suas terras outrora delimitadas segundo critérios ignorados que foram completamente ignorados pelo Império. A autora também desenvolve análise em torno das formas de sociabilidade desses indígenas, sua organização familiar, o papel da guerra e a importância das mulheres entre os Coroados, para demonstrar a relação intrínseca entre os conflitos que se sucederam com os imigrantes e sua cultura originária, que em muitos momentos entrava em choque e era desarticulada pelos valores e práticas introduzidas pelo Estado e pelos colonos.Colares Kaingang p. 45

Um importante exemplo tratado ao longo da dissertação é a análise das chamadas “correrias”, ou assaltos praticados pelos Coroados às colônias, muitas vezes registrados pelas fontes documentais. Durante a prática das correrias os indígenas saqueavam as roças de milho e apropriavam-se de objetos de ferro, desde os mais simples. A introdução do metal influenciou de maneira direta sua organização, sendo utilizado para produção de pontas de flechas, machados e outras ferramentas, e em trocas de diversos tipos, inclusive por mulheres – prática que aos olhos dos imigrantes era abominável, mas que pode ser compreendida em relação à cultura do grupo em questão. Tamanho o impacto causado pela introdução desse material na sociedade Kaingang, que objetos como botões, fivelas, cartuchos de balas e moedas foram incorporados a colares e outros adornos por eles produzidos, originalmente com fibras vegetais, sementes, dentes, garras e conchas. Sabendo-se que “os colares apresentam-se enquanto objeto de demonstração de poder e prestígio, pois a inclusão de cada elemento exposto no adorno remete à incorporação da força e poder daqueles animais ao seu portador”, supõem-se que as anexações de tais objetos “condensam simbolicamente os dois principais instrumentos empregados pela sociedade colonial no empreendimento da conquista dos territórios Kaingang: as armas e o dinheiro”. Esta apropriação é exemplar dos processos de assimilação e transformação cultural nesse contexto de contato entre culturas, e reflete a complexidade das relações estabelecidas entre imigrantes e indígenas.

Neste trabalho, construído a partir de farta documentação, Soraia também aborda a relação entre as lideranças dos Coroados, especialmente de Cacique Doble, com as autoridades provinciais, as tentativas de aldeamento e as formas de resistência a ele, entre outras importantes questões, demonstrando de forma clara as potencialidades dos arquivos e seus acervos para a produção de conhecimento a cerca de nossa história, que é também a história dos povos indígenas! Boa leitura e bom trabalho para aqueles que desejarem se aventurar em descobertas conduzidas pelas páginas dos arquivos!

Índios do Toldo Cacique Doble

Gosta do nosso conteúdo?
Receba atualizações do site.
Também detestamos SPAM. Nunca compartilharemos ou venderemos seu email. É nosso acordo.