Antonio Nobre: “Se houvesse florestas no Sudeste, a seca não seria tão extrema”.

A principal referência atual sobre o papel da floresta amazônica para a manutenção do clima é o estudo ‘O futuro climático da Amazônia’, do pesquisador Antonio Donato Nobre. Pesquisador de dois dos principais institutos do país, o Instituto Nacional de Pesquisa Espacial (Inpe) e o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), Nobre produziu um relatório que faz uma síntese de mais de 200 estudos sobre clima e Amazônia. Em uma entrevista por e-mail, ele explicou os principais resultados do estudo.

 

 

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As copas das árvores da Mata Atlântica (Foto: Divulgação/SOS Mata Atlântica)

Por Bruno Calixto

Segundo os cientistas que acompanham a estiagem no Sudeste, ainda não há como relacionar, diretamente, a perda de florestas no Norte com a seca paulista. Para eles, a falta de chuva é provocada por um bloqueio atmosférico que impediu a entrada de umidade vinda do Atlântico e da Amazônia.

Segundo Antonio Nobre do INPE, ainda não é possível saber se a seca é causada pelo desmatamento da Amazônia ou por um fenômeno de bloqueio climático que ocorreu no verão passado na região Sudeste. Mais estudos são necessários. Mas as medições não deixam dúvidas que o desmatamento no Norte já altera o clima na própria região amazônica. Além disso, se a Mata Atlântica do Sudeste não estivesse tão desmatada, os efeitos da seca não seriam tão graves. E Nobre faz um alerta: é preciso acabar com o desmatamento já, sob o risco de comprometer o “clima amigo” que gera chuvas para a agricultura em grande parte do Brasil.

ÉPOCA – Qual é a contribuição da Amazônia para as chuvas do Sul, Sudeste e Centro-oeste?

Antonio Donato Nobre – A contribuição é total. O aporte liquido (no sentido de saldo) de vapor a estas regiões, que podemos chamar da Bacia do Prata – o que inclui além do Brasil, Bolivia, Paraguai e parte da Argentina – se dá principalmente nos meses de verão, de novembro a março. E é justamente nesse período que chegam os fluxos dos chamados rios aéreos de vapor procedentes da Amazônia. As frentes frias que procedem do sul do continente e chegam nessas regiões em outras épocas do ano são massas de ar frio que transportam pouquíssima umidade.

ÉPOCA – E para as chuvas que caem na própria Amazônia, qual a contribuição da floresta?

Nobre – Também é total. As florestas transpiram grandes volumes de vapor d’água – o que mantém úmido o ar que adentra o continente por milhares de quilômetros. As árvores emitem “aromas” que são responsáveis pela formação de uma poeira finíssima com afinidade pela água, as “sementes de condensação”- sem as quais não se formam nuvens nem chuvas. Por fim, com evaporação de um fluxo de vapor que é maior do que o fluxo do rio Amazonas, e a condensação das nuvens, a pressão atmosférica na Amazônia cai, o que acelera e “suga” os ventos alíseos que vêm do Oceano Atlântico carregados de umidade – esse efeito é similar a de uma “bomba” de agua, sem a qual os ventos úmidos do oceano, fonte de toda água, não adentrariam a bacia Amazônica. Tire a floresta e os três fatores determinantes para as chuvas desaparecem, o que implica redução massiva das chuvas.

ÉPOCA – Temos evidência de que a floresta já perdeu parte da sua capacidade de produzir umidade para a Amazônia ou para outras regiões?

Nobre – Nao é a floresta, no seu estado pristino, que perdeu capacidade de fomentar a umidade atmosférica e com isso favorecer chuvas benignas. É sua destruição, sua ausência, e mesmo sua incineração, gerando fumaça e fuligem, que são responsáveis por destroçar o sistema climático amigo que existia antes, substituindo-o por um dramaticamente inóspito novo clima.

Imagens de satélite mostram a destruição bruta e a degradação das florestas, a cena do crime, além de mostrar também a geração e o deslocamento das nuvens de fumaça e fuligem que matam as chuvas. Torres de observação e outros instrumentos de superfície coletam em tempo real as mudanças no clima, as alterações na concentração de vapor d’água, os efeitos da fumaça e fuligem. Modelos atmosféricos e modelos de vegetação que simulam no computador as condições reais e são aferidos por observações tanto de satélites quanto de superfície mostram a evolução do cenário de alteração climatica, uma evolução nada boa. Por fim, novas análises teóricas, baseadas em leis físicas, permitem antecipar o que deve acontecer nos cenários futuros. A ciência indica até o momento que o clima já está mudando na Amazonia. Está mudando mais nas zonas desmatadas, mas não somente.

ÉPOCA – Podemos dizer que a seca em São Paulo é uma consequência da redução do fluxo da umidade da Amazônia, ou ela tem a ver com outros fatores?

Nobre – Podemos dizer que no último verão os fluxos de umidade que a Amazônia exporta não chegaram aqui. Quanto dessa falta teria a ver com o enfraquecimento dos rios aéreos de vapor e quanto a ver com o efeito de bloqueio atmosférico decorrente de mudanças climáticas ainda está sendo estudado. Ao mesmo tempo que as observações do clima na Amazônia não deixam dúvida de que o desmatamento está prejudicando o clima amigo por lá, há um alerta para as regiões que recebem a umidade amazônica: uma massa de ar quente, seco e com alta pressão tem estacionado sobre a região Sudeste, o que tem dificultado a penetração de umidade oriunda da Amazônia. O que podemos falar com convicção, porém, é que houvesse “florestas nativas” no Sudeste, tal fenômeno deletério não ocorreria nessas proporções, ou não permaneceria estacionado por tanto tempo, porque as matas resfriam a superfície e são fontes de vapor, dois fatores que conduzem a chuvas.

ÉPOCA – Se a Amazônia, em algum momento, perde a capacidade de gerar umidade, quem sofrerá primeiro? A própria Amazônia, o Sudeste?

Nobre – Como ressalto no relatório, não é mais apropriado usar o tempo futuro no verbo da sua pergunta. Para saber das primeiras consequências basta assistir ao noticiário. Já estamos testemunhando a perda dos serviços ao clima devido a destruição de floresta, a cada ano os agricultores no Mato Grosso percebem as chuvas chegando mais tarde, são forçados a atrasar o plantio de suas lavouras. Hoje [5 de novembro] o ONS, o operador do sistema elétrico nacional, avisou que aumentou o risco de faltar energia elétrica por falta d’água nos reservatórios das usinas hidrelétricas. O racionamento de água já afeta muitas cidades no país, fora da tradicional zona da seca no Nordeste. O que mais precisamos para despertar para a realidade?

ÉPOCA – O desmatamento vem acontecendo desde a década de 1970 de forma progressiva, embora o ritmo tenha reduzido. É de se esperar que a redução da capacidade da floresta ocorra de forma progressiva, ou pode ser uma mudança brusca, de um ano para outro?

Nobre – Para o clima interessa somente o saldo devedor. As taxas anuais maiores ou menores são cócegas nas bordas do sistema se considerado o principal da dívida, o desmatamento por corte raso, uma área equivalente a três vezes a área do Estado de São Paulo. E é essa dívida enorme que agora cobra a fatura, e demanda pagamento imediato. Como digo no relatório, o desmatamento sem limite encontrou no clima um juiz que sabe muito bem contar as árvores decepadas, não esquece nem perdoa. O sistema climático está por um lado sentindo a ausência das árvores de forma progressiva, como é o caso da progressiva extensão da duração da estação seca na Amazônia. Mas pode gerar surpresas decorrente da acumulação sinergística de vários fatores, como parece ser a situação atual do Sudeste.

ÉPOCA – Há um limite? Quanto que a Amazônia pode perder de cobertura florestal até essa função de gerar umidade ser comprometida?

Nobre – O fato de o sistema climático estar mostrando claros sintomas de desarranjo já deve indicar que chegamos no limite. Cinco anos atrás, em entrevista para o Jornal Valor, respondi pergunta similar, alertando já naquela época que estávamos muito próximos do limite, a partir do qual veríamos mais e mais desastres climáticos. Sem ter uma bola de cristal, fiz um palpite de que em cinco ou seis anos apareceriam os sintomas mais fortes da destruição que estávamos infligindo ao berço esplêndido. Parece que o palpite estava correto. Agora, a resposta sobre quanto tempo ainda temos é um categórico: nenhum! Acabou-se o prazo para complacência e procrastinação em relação ao desmatamento. Eu não saberia dizer se já passamos do ponto de não-retorno, a partir do qual desceremos forçosamente no abismo climático, mas quero crer que temos ainda a oportunidade de mudar de curso e evitar o pior. Por isso proponho um “esforço de guerra” no esclarecimento da sociedade, primeiro, e então no combate vigoroso ao desmatamento. Mas somente zerar o desmatamento para ontem já não será suficiente. Se queremos ter alguma chance de sucesso, precisamos “replantar e restaurar” florestas por todo o país. Essa é a melhor apólice de seguro que podemos comprar.
Fonte: Revista Época.

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