Antártida: uma viagem à ‘geleira do fim do mundo’, ameaçada pelo aquecimento global

Acampamento dos cientistas em plena Antártida

https://www.bbc.com/portuguese/internacional-51269164

Justin Rowlatt; BBC

  • 29 janeiro 2020

As imagens são turvas no início.

Sedimentos passam pela câmera enquanto Icefin, um submarino robô amarelo operado remotamente, avança pelo gelo.

Então, as águas começam a ficar mais claras.

O Icefin está a 600 metros de profundidade e posicionado diante de uma das maiores geleiras do mundo.

De repente, uma sombra aparece por cima dele.

O Icefin chegou ao ponto em que a água quente se encontra com o paredão de gelo na frente da poderosa geleira Thwaites — o local onde essa imensa massa de gelo começa a derreter.

Glaciologistas, especialistas que estudam o gelo, descrevem Thwaites como a geleira “mais importante” do mundo, a geleira “mais perigosa” e até a geleira “do juízo final”.

A geleira Thwaites já responde por 4% da elevação do nível do mar no mundo a cada ano — um número enorme para uma única geleira — e os dados de satélite mostram que ela está derretendo cada vez mais rapidamente.

Essa imensa massa de gelo concentra água suficiente para elevar o nível do mar em mais de meio metro.

A Thwaites se localiza no chamado Manto de Gelo da Antártica Ocidental, uma vasta bacia de gelo que poderia aumentar o nível dos oceanos em três metros.

No entanto, até este ano, ninguém havia realizado uma pesquisa científica em larga escala sobre a geleira.

A equipe Icefin, juntamente com cerca de 40 outros cientistas, faz parte da International Thwaites Glacier Collaboration, um projeto de cinco anos envolvendo vários países e orçado em US$ 50 milhões. O objetivo é entender por que a geleira passa por um processo de transformação tão rápido.

Trata-se do maior e mais complexo programa de campo científico da história da Antártida.

Você pode se surpreender por saber tão pouco sobre uma geleira tão importante — foi assim que me senti quando fui convidado para cobrir o trabalho desta equipe.

Rapidamente, descobri o motivo ao tentar chegar lá.

A neve na pista de gelo atrasa meu voo da Nova Zelândia para McMurdo, a principal estação de pesquisa dos na Antártica.

Este é o primeiro de toda uma série de atrasos e interrupções.

As equipes de cientistas demoram semanas apenas para chegarem aos campos de pesquisa.

Em um determinado momento, toda a pesquisa da temporada esteve prestes a ser cancelada porque as tempestades impediram todos os voos para a Antártida Ocidental a partir de McMurdo por 17 dias consecutivos.

Por que Thwaites é importante?

A Antártida Ocidental é a parte mais turbulenta do continente com o clima mais turbulento do mundo.

E Thwaites é remota, mesmo para os padrões da Antártida, a mais de 1.600 km da estação de pesquisa mais próxima.

Apenas quatro pessoas já estiveram diante da geleira antes desta expedição.

Mas entender o que está acontecendo ali é essencial para que os cientistas sejam capazes de prever com precisão o futuro aumento do nível dos oceanos no mundo.

O gelo na Antártida detém 90% da água doce do mundo, e 80% desse gelo estão na parte oriental do continente.

O gelo na Antártida Oriental é espesso — mede mais de um quilômetro e meio em média —, mas está numa altitude mais elevada e só se arrasta lentamente até o mar.

Algumas delas existem há milhões de anos.

A Antártida Ocidental, no entanto, é muito diferente. É menor, mas ainda enorme, e é muito mais vulnerável a mudanças.

Ao contrário do leste, não está em uma altitude elevada. De fato, praticamente toda a sua superfície está muito abaixo do nível do mar. Se não fosse pelo gelo, seria um oceano profundo com algumas ilhas.

Estive na Antártida cinco semanas antes de finalmente embarcar na expedição que me levou à frente da geleira.

Acampados no gelo acima do ponto onde a geleira encontra a água do oceano, a tarefa dos cientistas é a mais ambiciosa de todas.

Eles querem perfurar quase 800 metros de gelo exatamente no ponto em que a geleira flutua.

Ninguém nunca fez isso em uma geleira tão grande e dinâmica.

Eles usarão o buraco para obter acesso à água do mar que derrete a geleira para descobrir de onde é e por que está atacando a geleira com tanta força.

Eles não têm muito tempo.

Cada atraso significa que restam apenas algumas semanas do verão antártico antes que o tempo comece a ficar realmente ruim.

Enquanto os membros da equipe de perfuração montam seus equipamentos, ajudo com uma pesquisa sísmica da superfície sob a geleira.

Kiya Riverman, glaciologista da Universidade de Oregon, nos Estados Unidos, perfura um buraco com uma grande broca espiral de aço inoxidável e espalha pequenos explosivos.

O resto de nós cava buracos no gelo para os geofones, os “ouvidos eletrônicos” que escutam o eco da explosão que ressoa da rocha através das camadas de água e gelo.

No fundo do mar

A razão pela qual os cientistas estão tão preocupados com a geleira Thwaites se deve ao declínio de seu leito submarino.

Isso significa que a geleira fica mais e mais espessa à medida que se caminha rumo a seu interior.

No seu ponto mais profundo, a base da geleira fica a mais de um quilômetro abaixo do nível do mar e há outro quilômetro de gelo por cima.

O que parece estar acontecendo é que a água quente e profunda do oceano está fluindo para a costa e para sob o gelo, derretendo a geleira.

À medida que a geleira diminui de tamanho, mais gelo fica exposto.

A título de comparação, seria como cortar fatias a partir da ponta de um pedaço triangular de queijo.

Cada pedaço retirado terá uma área de superfície maior — deixando ainda mais gelo exposto para a água derreter.

E esse não é o único efeito.

A gravidade faz com que o gelo fique ‘plano’. À medida que a parte frontal da geleira derrete, o peso do vasto reservatório de gelo atrás dela a empurra para frente.

Portanto, quanto mais a geleira derrete, mais rapidamente o gelo flui nela.

“O medo é que esses processos apenas se acelerem”, diz Riverman. “É um ciclo vicioso.”

Fazer ciência dessa escala em um ambiente tão extremo não é apenas levar alguns cientistas para um local remoto.

Eles precisam de toneladas de equipamentos especializados e dezenas de milhares de litros de combustível, além de tendas e outros materiais e alimentos.

Acampei no gelo por um mês; alguns dos cientistas ficarão lá por muito mais tempo, dois meses ou mais.

Foi necessária mais de uma dezena de voos da frota de enormes aviões de carga Hercules do programa antártico dos EUA apenas para levar os cientistas e parte de seu equipamento ao principal local de teste do projeto, no meio da camada de gelo da Antártida Ocidental.

Aviões menores — um velho Dakota e dois Twin Otter — transportaram as pessoas e os suprimentos para os acampamentos, centenas de quilômetros abaixo da geleira em direção ao mar.

As distâncias são tão grandes que eles precisaram montar outro acampamento na metade do caminho para que os aviões pudessem reabastecer.

A contribuição do British Antarctic Survey, órgão responsável pelos assuntos relativos aos interesses do Reino Unido na Antártida, foi uma jornada épica por terra que trouxe centenas de toneladas de combustível e carga.

Dois navios cobertos por gelo atracaram ao lado de um penhasco no sopé da Península Antártica durante o último verão antártico.

Uma equipe de motoristas, em veículos de neve especializados, percorreu mais de mil quilômetros por uma das superfícies com clima mais inóspito do mundo.

Foi difícil, a velocidade máxima era de apenas 10 km/h.

Perfurando o gelo

Os cientistas do acampamento planejam usar água quente para perfurar seu buraco no gelo.

Eles precisam de 10 mil litros de água, o que significa derreter 10 toneladas de neve.

Todo mundo começa a trabalhar com pás, jogando neve em um recipiente de borracha do tamanho de uma pequena piscina.

“Será a jacuzzi mais ao sul do mundo”, brinca Paul Anker, engenheiro de perfuração da British Antarctic Survey.

O princípio é simples: você aquece a água com um conjunto de caldeiras até um pouco abaixo do ponto de ebulição e depois a pulveriza no gelo, derretendo por onde ela passa.

Mas perfurar um buraco de 30 cm em quase 800 metros de gelo diante da geleira mais remota do mundo não é fácil.

Como o gelo está a cerca de -25°C, o buraco pode congelar e todo o processo depende dos caprichos do clima.

No início de janeiro, o recipiente está cheio e todo o equipamento, pronto. Contudo, recebemos um aviso de que mais uma tempestade está a caminho.

Tempestades antárticas podem ser muito intensas. Não é incomum ter ventos com força de furacão, bem como temperaturas muito baixas.

Este é relativamente leve para a Antártica, mas ainda envolve três dias de vento com rajadas de até 80 km/h. Sopram enormes correntes de neve no acampamento, cobrindo o equipamento, e todo o trabalho é interrompido.

Sentamos em uma barraca para jogar cartas e beber chá enquanto os cientistas discutem por que a geleira está recuando tão rapidamente.

Eles dizem que o que está acontecendo aqui se deve à complexa interação de clima, tempo e correntes oceânicas.

A chave para entender isso é a água do mar quente, que se origina do outro lado do mundo.

À medida que a corrente do Golfo esfria entre a Groenlândia e a Islândia, a água “afunda”.

Essa água é salgada, o que a torna relativamente pesada, mas ainda está um grau ou dois acima do ponto de congelamento.

A água, então, é transportada por uma corrente oceânica profunda até o sul do Atlântico.

Ventos instáveis

Aqui, ela se torna parte da Corrente Circumpolar Antártica, fluindo profundamente (530m) abaixo de uma camada de água muito mais fria.

A superfície da água na Antártida é fria, pouco acima de -2°C, o ponto de congelamento da água salgada.

A água circumpolar profunda e quente viaja por todo o continente, mas tem invadido cada vez mais a borda gelada da Antártida Ocidental.

É aqui que entra a mudança climática.

Os cientistas dizem que o Oceano Pacífico está esquentando e isso está mudando os padrões de vento na costa da Antártida Ocidental, fazendo com que as águas profundas e quentes subam sobre a plataforma continental.

“A água circumpolar profunda da Antártica é apenas alguns graus mais quente que a água acima dela — um grau ou dois acima de 0°C — mas é quente o suficiente para afetar essa geleira”, diz David Holland, oceanógrafo da Universidade de Nova York (EUA) e um dos os cientistas principais no acampamento.

Ele deveria deixar a Antártida no final de dezembro, mas, por causa dos atrasos, a perfuração só começou no dia 7 de janeiro.

É quando um telefonema via satélite vem do quartel-geral do Programa Antártico dos Estados Unidos em McMurdo.

Os americanos nos dizem que não podemos adiar mais nossos voos para deixar o continente e devemos partir no avião de suprimentos que deve chegar ao acampamento em mais ou menos uma hora.

É muito frustrante ser forçado a sair antes que o buraco seja finalizado e instrumentos tenham sido instalados, especialmente considerando o tempo que levou para chegar aqui.

Nos despedimos e embarcamos no avião.

Olho para trás e vejo a roda no topo da broca girando, a mangueira preta rodando constantemente.

Eles estão quase na metade do caminho através do gelo.

O avião sobrevoa o acampamento e segue para o norte, em direção ao oceano.

Os cientistas me disseram que estávamos acampados no que é basicamente uma pequena baía de gelo protegida por uma ferradura de terreno elevado.

Enquanto voamos sobre a frente da geleira, me dou conta de quão frágil ela é.

Em alguns lugares, o grande manto de gelo se partiu completamente, dividindo-se em enormes icebergs que flutuam no caos antártico.

Em outros lugares, existem penhascos de gelo, alguns dos quais se elevam a quase um quilômetro do fundo do mar.

A frente da geleira tem quase 160 km de largura e está derretendo a um ritmo de até 3 km por ano.

A escala é impressionante e explica por que Thwaites já tem um papel tão importante da elevação do nível dos mares, mas fico chocado ao descobrir que há outro processo que poderia acelerar ainda mais seu derretimento.

Taxas de fusão

A maioria das geleiras que desaguam no mar tem o que é conhecido como “bomba de gelo”.

A água do mar é salgada e densa. A água derretida das geleiras é doce e, portanto, relativamente leve.

À medida que a geleira derrete, a água doce tende a fluir para cima, puxando a água do mar mais quente e pesada para trás dela.

Quando a água do mar está fria, esse processo é muito lento, a bomba de gelo geralmente derrete algumas dezenas de centímetros por ano — facilmente equilibrada pelo novo gelo criado pela queda de neve.

Mas a água quente transforma o processo, de acordo com os cientistas.

Indícios de outras geleiras mostram que, se você aumentar a quantidade de água quente que chega à geleira, a bomba de gelo funciona muito mais rapidamente.

“Ela pode ‘incendiar’ geleiras”, diz Holland, “aumentando as taxas de derretimento em até cem vezes”.

O pequeno avião nos leva ao acampamento no meio do manto de gelo da Antártida Ocidental, mas o mau tempo acarreta mais atrasos e demoramos nove dias para voltar à estação de McMurdo.

Outros cientistas se juntam a nós.

Foi uma temporada de muito sucesso.

Os cientistas confirmaram que a água quente circumpolar profunda está ficando sob a geleira e coletaram enormes quantidades de dados.

Icefin, o submarino robô, conseguiu fazer cinco missões, fazendo várias medições na água sob a geleira e gravando algumas imagens extraordinárias.

Levará anos para processar todas as informações que a equipe coletou e incorporar as descobertas aos modelos usados para projetar futura elevação do nível do mar.

Elevação do nível do mar

A Thwaites não desaparecerá da noite para o dia. Os cientistas dizem que isso levará décadas, possivelmente mais de um século.

Mas não devemos nos tranquilizar com isso.

A elevação de um metro no nível do mar pode não parecer muito, principalmente quando levamos em conta que, em alguns lugares, a maré pode subir e descer três ou quatro metros por dia.

Mas o nível do mar tem um enorme efeito sobre as tempestades, diz o professor David Vaughan, diretor de ciência do British Antarctic Survey.

Para Londres, por exemplo, um aumento de 50 cm no nível do mar significaria que uma tempestade super intensa que acontece a cada mil anos passaria a acontecer a cada 100 anos.

Já uma elevação de 1 metro encurtaria ainda mais esse prazo, para uma vez a cada década.

Outras cidades litorâneas, como Rio de Janeiro, Nova York e Hong Kong, também seriam afetadas. No caso brasileiro, segundo dados da Nasa, a agência espacial americana, o mar do Rio de Janeiro aumentou aproximadamente 3 mm por ano até 2015.

“Não devemos nos surpreender”, diz Vaughan, enquanto nos preparamos para embarcar no avião que nos levará de volta à Nova Zelândia e depois para casa.

Níveis crescentes de dióxido de carbono estão injetando muito mais calor na atmosfera e nos oceanos.

Calor é energia, e energia impulsiona as correntes climáticas e oceânicas.

O aumento dessa quantidade de energia, diz ele, inevitavelmente provoca mudança nos grandes processos globais.

“Eles já acontecem no Ártico”, lamenta Vaughan. “O que estamos vendo aqui na Antártida é apenas outro grande sistema respondendo à sua maneira.”