Quem deseja um bem hoje não deve seguir regras ou princípios, mas apenas ter a soma necessária para a compra. Frear o predomínio global do lucro só será possível se aprendermos a nos mover junto com os outros. Uma reflexão sobre a nossa época, que não é mais a das grandes crueldades, mas sim das más ações invisíveis feitas por egoísmo e solidão.
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7/11/2011
A opinião é do sociólogo italiano Franco Cassano, professor da Universidade de Bari, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 05-11-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Existe um tipo de mal visível e clamoroso, capaz de capturar hordas de admiradores ou de artistas atraídos pela circunstância que ele, constituindo uma violação das regras, é muito mais fascinante do que estas. No entanto, apesar do clamor, esse tipo de mal “espetacular” é muito menos interessante do que o mal “baixo”, que atravessa a nossa existência cotidiana e que, como a carta roubada de Poe, não conseguimos ver justamente porque está diante dos nossos olhos.
Além disso, é evidente que todo “grande” mal, para poder conquistar toda a cena, deve poder contar com uma ampla cumplicidade, saber ativar um vírus latente no interior da nossa vida de todos os dias. É esse “baixo contínuo” que nos interessa, esse mal difundido e entrelaçado com a nossa conivência, com a tranquilizante aparência da “normalidade”. Sem interceptar esses percursos subjacentes do mal, corre-se o risco de assisti-lo de longe, como se fosse estranho a nós e às nossas fraquezas.
Deve ser reconhecido a Hannah Arendt o mérito de ter sabido capturar, em um livro que se tornou famoso, essa dimensão “baixa” e normal do mal, a sua banalidade. Seguindo as partes do processo de Eichmann, Arendt ficou surpresa: o maior responsável organizativo do Holocausto não era uma reprodução em miniatura daquela amostra do mal que foi Hitler, mas sim um homem banal e insignificante, que se defendia defendendo ter se limitado a executar do modo mais diligente e escrupuloso as ordens superiores.
O mal não está longe da normalidade, mas assustadoramente entrelaçado com ela. Eichmann, diz Arendt, era um “cidadão cumpridor da lei”, constantemente tencionado a receber a aprovação dos seus superiores. E foi esse chamado à fidelidade a ordem e às ordens superiores que permitiu que ele e seus concidadãos ocultassem até de si mesmos o mal que estavam fazendo a outros. No Estado totalitário, as grandes qualidades da eficiência e da ordem se transformaram em incubadoras do mal. Este último, no Terceiro Reich, “tinha perdido a propriedade que permite que os demais o reconheçam por aquilo que ele é – a propriedade da tentação”.
O totalitarismo produz uma inquietante inversão das partes. Onde o mal é comum e banal, é o bem que se torna uma tentação: “Muitos alemães e muitos nazistas, provavelmente a imensa maioria, devem ter sido tentados a não matar, a não roubar, a não mandar seus vizinhos de casa a morrer, (…) a não obter vantagens desses crimes e tornar-se cúmplices deles. Mas Deus sabe o quão bem eles aprenderam a resistir a essas tentações” (156-157).
Mas, por sorte, o totalitarismo, a desmesura do Estado, pelo menos na Europa, ficou para trás. Resta, porém, se perguntar: juntamente com o totalitarismo desapareceu o mal, como pretendia Fukuyama, ou ele assumiu uma outra forma, igualmente invisível e “banal”, que não conseguimos ver porque está estreitamente entrelaçada com a nossa normalidade?
Além disso, nestes anos, não está se tornando cada vez mais evidente que, à desmesura do Estado, está se sucedendo a do mercado e do dinheiro? E se essa passagem realmente está em curso, porque custamos a resistir a ela, o que nos torna cúmplices ou pelo menos colaboradores dessa desmesura?
A resposta, no fundo, é menos difícil do que se possa imaginar. Como Marx ressaltou em seu tempo e depois Simmel, de modo mais difundido, entre a expansão do papel do dinheiro e a da liberdade individual, existe uma correlação muito forte. O dinheiro possui a extraordinária capacidade de incrementar a liberdade do indivíduo, porque quem deseja um bem hoje não deve mais pedir a autorização de ninguém, nem seguir regras ou princípios, mas só possuir a soma necessária para comprá-lo.
O indivíduo é a máxima potência relativista, que se liberta de todas as sujeições pessoais e normativas, entregando-se à única sujeição do dinheiro. Expansão da liberdade individual e expansão da forma-dinheiro são, portanto, duas faces da mesma moeda: de um lado, o dinheiro favorece a dissolução de todos os laços que freavam a liberdade individual; de outro, a expansão desta última exige a ilimitada extensão da forma-dinheiro e do mercado.
O mundo em que o indivíduo e o individualismo se difundem é, portanto, o mesmo em que uma vastíssima área de relações, experiências e performances anteriormente excluídas da esfera da intercambiabilidade universal (o cuidado, o corpo, os afetos, a atenção pelo outro etc.) tornam-se mercadorias. Também nesse caso é a desmesura, o poder excessivo de uma forma que ocultam a realidade: um mundo em que tudo está à venda nada mais é do que a organização cotidiana e sistemática da tentação. A famosa máxima de Oscar Wilde: “Posso resistir a tudo exceto às tentações” perdeu o seu caráter transgressivo e se tornou banal, a regra imperante em um mundo repleto de miríades de pequenos Wilde.
Portanto, não pode surpreender que, nesse mundo de indivíduos “livres”, o capital financeiro se torne a forma universal de conexão social, o lugar de concentração de um poder capaz de governar o destino de uma enorme massa de seres humanos. Indivíduo e capital financeiro podem conhecer momentos de conflito, mas sendo, como se disse, dois lados da mesma moeda, estão ligados por um fio duplo. Enquanto o indivíduo corrói, a partir de baixo, todos os laços não voluntários, o movimento perpétuo do capital financeiro corrói, a partir de cima, todas as instituições fundadas sobre princípios diferentes do que o incremento dos lucros.
A individuação dessa conexão entre individualismo radical e domínio do capital financeiro, que foge muito da cultura laica, nos fornece uma indicação, embora só inicial, sobre como agir. Nos últimos meses e a partir dos Estados Unidos, a necessidade de levar novamente a um controle comum o capital financeiro comum parece ter aberto caminho na consciência dos movimentos juvenis. Mas a passagem não será fácil, nem linear: frear o predomínio global do capital financeiro só será possível se o indivíduo souber sair da sua forma atual e aprender a se movimentar junto com outros indivíduos, a construir perspectivas novas e parâmetros alternativos com relação àqueles dominados pela conexão entre indivíduo e dinheiro, sem cair em outras desmesuras, na armadilha de comunidades fechadas e contrapostas entre si. É um processo longo, comprometedor e difícil, que nos pedirá também que olhemos de modo diferente aquilo que nós amamos. Mas entender quão intrincado e doloroso é o nó que se quer desfazer é a premissa de toda verdadeira mudança.
Para ler mais:
- Filosofia do bem comum. Artigo de Roberto Esposito
- Economia e gratuidade
- Comum, comunidade, comunismo: três palavras de um projeto em construção
- O bem comum sob o viés franciscano: uma resposta à crise econômica?
- Um breve genealogia dos ”bens comuns”
- A moral do lucro
- Ideias que podem salvar o capitalismo
- Reciprocidade, fraternidade, justiça: uma revolução da concepção de economia. Entrevista especial com Stefano Zamagni
- Por uma sociedade convivial. Entrevista com Alain Caillé
- Convivialismo para mudar o mundo
- Economia de comunhão: uma proposta de mudança econômica. Entrevista especial com Luigino Bruni
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