Thanatos, deus grego da Morte. Equivalente ao deus romano Mors.
CLÁUDIO COUTO
15 DE OUTUBRO DE 2021
A pandemia e o governo explicitaram, concretizaram e deram escala ao que já estava enunciado simbolicamente no bolsonarismo há muito tempo.
O bolsonarismo não diz respeito apenas a um governo e seu chefe, mas a um momento da sociedade brasileira e a um movimento que esse momento enseja. Nesse contexto, a presidência de Bolsonaro é, ao mesmo tempo, o principal desdobramento e um catalizador do movimento. O candidato e, depois, o presidente, lograram preencher um espaço para o qual havia demanda social ainda não atendida por nenhuma outra liderança política.
Se está correto o aforisma de Victor Hugo segundo o qual “nenhum exército pode resistir à força de uma ideia cujo tempo chegou”, ele é uma vez mais confirmado pela ascensão ao poder de um ex-capitão defenestrado da carreira militar, porém reabilitado por uma choldra de generais que nele viram um instrumento para seu retorno ao núcleo do governo federal: o “Mito” deu corpo a ideias cujo tempo havia chegado – ou, noutros termos, Bolsonaro deu carne e sangue ao bolsonarismo que já havia deixado a fase de incubação. Mas que ideias são essas? Primeiro vale dizer que em boa parte não se trata de nada exatamente novo, mas de um cabedal de platitudes e preconceitos que já se encontravam entre nós, não exatamente latentes, porém sem representação política explícita: – ao menos no governo central. Machismo, sexismo, misoginia, homofobia, racismo, reacionarismo de costumes, anti-intelectualismo, farisaísmo, individualismo egoísta, culto à violência, autoritarismo, já habitam o modo de ser de nossa sociedade há muito tempo, mas encontravam obstáculos para se expressar politicamente de forma desabrida num cargo majoritário em nível nacional (nota do website: destaque dado por reconhecermos que isso habita, em vários níveis, em cada um de nós que nos misturamos com a ideologia do supremacismo branco eurocêntrico dos últimos 600 anos!) contando com um governo ao qual delegar sua concretização na forma de majoritário em nível nacional, contando com um governo ao qual delegar sua concretização na forma de medidas deliberadas. Isso começou a mudar a partir de 2013.
O bolsonarismo é uma perversidade em movimento. Faz o mal continuadamente, por pequenas e grandes ações, sutil ou desbragadamente. Não por acidente ou desvio, mas por essência.
Naquele ano se deu a emergência de uma nova direita, sem temor de mostrar sua cara, dizer seu nome e propugnar suas bandeiras. Ela surge como uma grande reação a um conjunto de eventos que marcou os anos anteriores. O primeiro deles foram as políticas de inclusão, redução das desigualdades e diminuição da pobreza, com o consequente acesso de segmentos sociais significativos a espaços que antes lhes eram vedados. Contudo, não é só isso.
Essa perda da distinção social pelas classes mais abastadas produziu nelas um grande ressentimento, mas esse ainda encontrava obstáculos para se manifestar abertamente, já que admiti-lo não seria algo publicamente defensável. Assim, eram feitas à boca miúda as críticas ao Bolsa Família, às cotas raciais, à regulamentação do trabalho das domésticas, ao aumento dos custos para a contratação de serviços manuais e ao acesso a bens e serviços antes restritos ao segmento mais aquinhoado da sociedade.
Bolsonaro, contudo, não tinha pudores em expressar tais ideias sem qualquer constrangimento. Tanto é assim que se opôs solitariamente à PEC das Domésticas, que lhes assegurou direitos laborais equivalentes aos de outros trabalhadores; militou contra as cotas raciais e também atacou o Bolsa Família, chamado por ele de “bolsa farelo”. Quanto a esse auxílio, ainda afirmou: “O Bolsa Família nada mais é do que um projeto para tirar dinheiro de quem produz e dá-lo a quem se acomoda, para que use seu título de eleitor e mantenha quem está no poder”. Ou seja, Bolsonaro vocalizava e, portanto, representava os setores ressentidos das classes médias e altas.
Contudo, os escândalos dos governos petistas forneceram a essa nova direita um discurso mais justificável, pois fundado sobre princípios nobres e compartilhados com outras parcelas da sociedade: aqueles do combate à corrupção. Não é preciso se queixar da perda da distinção se é possível se bater contra algo que ninguém tem como defender. Assim, o movimento se ampliou e angariou adeptos que não compartilhavam do ressentimento classista, mas genuinamente reivindicavam uma luta inclemente contra a malversação de recursos públicos.
Convertida num fim em si mesmo, a luta anticorrupção teve ao menos dois corolários. Por um lado, serviu de justificativa para o estiolamento dos limites legais que pudessem, de alguma forma, embaraçar a ação dos que se apresentavam como seus combatentes. Assim, uma justiça de exceção passou a ser aceita e até mesmo louvada, tendo em vista sua aparente eficácia. Nesse cenário, o devido processo legal, o respeito a direitos e a imparcialidade do Judiciário eram sacrificados em prol de um objetivo pretensamente nobre. Aplicava-se a lógica do “bandido bom é bandido morto” à defesa da moralidade pública, como se isso fosse não só um preço inevitável a pagar, mas até mesmo um ato de heroísmo de seus perpetradores.
O segundo corolário da luta anticorrupção foi reforçar e conferir nova roupagem a outro ingrediente antigo de nossa sociedade: a antipolítica, que ganhou o palco disfarçada de ativismo. Em vez da negação da legitimidade e mesmo da necessidade da atividade política traduzida pelo silêncio, pelo desinteresse ou pela maledicência banal, desta feita a antipolítica – paradoxalmente – ganhou as ruas de modo militante. A melhor tradução disso foram, nas grandes manifestações de rua iniciadas em 2013, as camisetas e faixas amarelas com a divisa “Meu partido é o Brasil” ou versões dela.
Se na democracia representativa o partido é instrumento por excelência da disputa e do fazer políticos, seu rechaço em prol de um todo moralmente superior, consubstanciado na pátria, traduz simultaneamente a negação do pluralismo, da atividade política profissional e, portanto, da própria democracia. Se o partido é a pátria, é de partido único que se trata, por óbvio. Não é casual que Bolsonaro, seus filhos e apoiadores apareçam frequentemente envergando a famigerada camiseta com o malfadado lema – que harmoniza perfeitamente com o gosto autoritário do clã e seu séquito.
Em sua forma aparentemente mais amena e elegante, a antipolítica se traduziu no lavajatismo, essa doença infantil de certo liberalismo tupiniquim – que faz confundir iliberalismo judicial e moral com republicanismo. A forma pretensamente mais afável desse iliberalismo antipolítico, entretanto, abriu as comportas do Estado para sua versão desveladamente feroz e tosca, o bolsonarismo – ao qual se associou para, pouco depois, ser por ele tragada, descartada e trucidada.
Em sua antipolítica, o bolsonarismo opera de modo contraditório: atua compulsivamente por meio da destruição, ao ponto de se colocar constantemente em perigo; contudo, é dotado de um acentuado instinto de sobrevivência, que o coloca instintiva e rapidamente na defensiva diante de qualquer ameaça – em especial aquelas decorrentes de suas próprias ações destrutivas. Isso gera uma dinâmica bipolar, em que a truculência e o recolhimento se alternam, produzindo um interminável e amplo morde-assopra, um incessante avança-recua.
O exemplo mais recente desse modo de operar – e um dos mais emblemáticos – se deu no processo em torno do 7 de Setembro fascista. Após conclamar abertamente seus apoiadores fanáticos para um golpe de Estado e verbalizar em Brasília e São Paulo sua intenção de romper com a ordem legal, Bolsonaro se recolheu. Tendo, por seus próprios atos, colocado-se em isolamento e aumentado muito o risco de um impeachment, o presidente percebeu que era melhor recuar. De lá para cá ele se mantém mais comedido, produzindo inclusive certa melhora na sua avaliação, como mostrou pesquisa do PoderData.
Entretanto, essa é uma calmaria tão ilusória quanto efêmera. Como de hábito, a tendência é que, sentindo-se mais seguro, Bolsonaro torne à carga. Aliás, já vem tornando, sutilmente, por meio de pequenos gestos: os novos ataques às vacinas, a aparição com crianças armadas, declarações homofóbicas, veto à homenagem a João Goulart, veto à distribuição de absorventes. Nada disso se compara em gravidade ao 7 de Setembro fascista, mas demonstra até mesmo nas ações miúdas, do que se trata o bolsonarismo: um movimento perverso, que se realiza mediante pequenas e grandes perversidades continuamente perpetradas.
Sem querer fazer um jogo de palavras, pode-se dizer que o bolsonarismo não é apenas um movimento perverso, mas uma perversidade em movimento. Trata-se de fazer o mal continuadamente, por pequenas e grandes ações, sutil ou desbragadamente, não por acidente ou desvio, mas por essência. É, portanto, mais um modo de ser e agir que tem como elemento constitutivo a banalidade do mal a que se referia Hannah Arendt. Aliás, esse é um traço dos fascismos, de que o bolsonarismo é uma variante.
E, como movimento, o bolsonarismo não se resume a seu governo – em que assume a forma mais acabada. Ele também se manifesta por meio de suas expressões na sociedade. Essa, aliás, tem sido uma das revelações importantes proporcionadas pela CPI da Covid – até mesmo quando ela erra.
Veja-se o caso da imprudente convocação do empresário bolsonarista Luciano Hang. Os senadores que insistiram em sua oitiva acreditaram que conseguiriam tirar sarro de um palhaço; tornaram-se, eles próprios, motivo de troça – como se poderia esperar. Já não seria fácil zombar de qualquer palhaço, pela natureza da situação. Mais difícil ainda num ambiente como o da CPI, impróprio para esse tipo de empreitada, pois se pretende sério e lida com assuntos inescapavelmente dolorosos. Ademais, Hang ali compareceu – como de costume – trajado como um periquito; foi a caráter como o palhaço que é. Mais do que isso: pelo traje que decidiu usar naquele espaço deixou claro a que se propunha: atuar como palhaço. E o fez. Os senadores não gozam do mesmo talento.
Hang, contudo, não é um arlequim qualquer. Como o Coringa do filme, é um palhaço perverso. Como ele, compareceu trajado como palhaço num evento em que tal traje não seria adequado (no filme, uma entrevista), disposto a produzir dano – e conseguiu. Porém, ao mesmo tempo que atingiu seu intento, explicitou novamente a natureza do movimento que integra. Sendo o bolsonarismo um movimento perverso, só se poderia esperar que seus palhaços atuassem perversamente. E, diferentemente do próprio Bolsonaro, que rejeita a alcunha de Bozo, Hang se traja e age como um.
Mas, se convocar Hang foi um erro (ainda que revelador), a CPI também teve muitos acertos e, inegavelmente, contribuiu para esmiuçar a natureza perversa e – sobretudo – mortífera do bolsonarismo. Como governo, o bolsonarismo tem a morte como propósito e a produz em larga escala. Não à toa se fala (ainda que de forma juridicamente discutível) em genocídio e (juridicamente de forma incontroversa) em crime contra a humanidade – o que, aliás, deverá constar do relatório final.
A sabotagem à vacinação e às medidas restritivas, assim como a busca da imunidade coletiva por contágio, estimulada pelo incentivo ao uso de medicamentos ineficazes, revelam que a perversidade sanitária foi a política pública. Um governo que busca a morte é uma tanatocracia. Os tanatocratas, contudo, não são apenas aqueles que ocupam postos no Executivo, mas os que a eles se associam, lhes apoiam e lhes dão guarida. Assim, são tanatocratas também os congressistas que sustentam o governo, os membros do Ministério Público que lhe protegem e os integrantes do Judiciário que o tratam com benevolência. Seja por convicção ou por oportunismo, a tanatocracia, para além do núcleo familiar e presidencial, assenta-se sobre uma coalizão.
E mais: tal coalizão não se restringe aos ocupantes de posições no Estado e nos partidos políticos. Ela se compõe também dos empresários e setores da sociedade civil que endossam ou até mesmo financiam as políticas tanatocráticas. É o caso daquele dono de uma cadeia de restaurantes (Madero e Jerônimo) para quem milhares de mortes não seriam motivo suficiente para “parar o Brasil”. Ou de Hang, para quem o tratamento “preventivo” (que ele diferencia de “precoce”) deveria ter sido adotado até mesmo no caso de sua mãe. Ou dos dirigentes da Prevent Senior, alinhados às diretrizes sanitárias do governo, cujo modo de lidar com seus pacientes revela disposição para deixar morrer se isto liberar leitos e reduzir custos. E, claro, não menos importante, é o caso do Conselho Federal de Medicina (não seria Conselho Filobolsonarista de Medicina?), que se acumpliciou das diretrizes mortíferas em prol do “tratamento precoce”. A pandemia e o governo explicitaram, concretizaram e deram escala ao que já estava enunciado simbolicamente no bolsonarismo há muito tempo, seja nos discursos odientos do longevo deputado marginal e de seus filhos, seja na campanha eleitoral. A estética da morte e da violência marcou sua corrida ao Planalto e era mais uma demonstração disso: a mão de “arminha” como gesto-símbolo, a menção ao extermínio de adversários, a ameaça de fazer as minorias se curvarem às maiorias ou desaparecerem, o elogio à violência policial (sugerindo a condecoração de quem matasse) já revelavam qual projeto estava em curso.
Na presidência, Bolsonaro pôde, além de tomar medidas concretas para produzir a morte em larga escala – como a liberação do armamento da população, a proposta do excludente de ilicitude e a gestão da pandemia – manteve o discurso tanatocrático. O elogio constante à ideia de morrer pelo País e a ameaça de só sair da presidência morto completam o quadro. Pode-se dizer, assim, que a tanatocracia cumpre suas promessas: entrega resultados e representa seus apoiadores até a morte – ou por meio dela.
CLÁUDIO COUTO
Cientista Político na FGV-EAESP