A Amazônia atingiu seu ‘ponto de inflexão’?

Amazon Tipping Point

Desmatamento e retirada de madeira ilegal e criminosa. Ilustração de Max Guther

https://www.nytimes.com/2023/01/04/magazine/amazon-tipping-point.html

Alex Cuadros

11 de janeiro de 2023

Alguns cientistas brasileiros temem que a Amazônia se transforme em uma savana — com efeitos profundos no clima mundial.

Uma das primeiras vezes que Luciana Vanni Gatti tentou coletar o ar amazônico ficou tão tonta que nem conseguiu operar os controles. Uma química atmosférica, ela queria medir a concentração de carbono acima da floresta tropical. Para obter suas amostras, ela teve que treinar pilotos em empresas obscuras de táxi aéreo. O desconforto começou enquanto ela esperava na pista, segurando uma porta aberta contra o vento para evitar que a minúscula cabine virasse um forno sob o sol equatorial. Quando finalmente decolaram, subiram vertiginosamente e, toda vez que mergulhavam em uma nuvem, o avião parecia estar, nas palavras de Gatti, sambando — dançando o samba. Então a temperatura do ar caiu abaixo de zero e seu suor esfriou.

Não que tudo fosse ruim. À medida que o frenético porto de Manaus recuava, a copa se estendia abaixo como um tapete felpudo, verde imaculado exceto pelas flores rosas e amarelas dos ipês, e era um daqueles momentos – cada vez mais raros na experiência de Gatti – em que você podia fingir que a natureza não tinha limites finais, e a parecia o que ainda era, a maior floresta tropical do mundo.

A Amazônia tem sido chamada de “o pulmão da terra” por causa da quantidade de dióxido de carbono que absorve – segundo a maioria das estimativas, cerca de meio bilhão de toneladas por ano. O problema, cientificamente falando, é que essas estimativas sempre dependeram de uma série de extrapolações. Alguns pesquisadores usam satélites para detectar mudanças que indicam a presença de gases de efeito estufa. Mas o método é indireto e as nuvens podem contaminar os resultados. Outros começam com medições individuais de árvores em lotes espalhados pela região, o que permite calcular a chamada biomassa de cada tronco, que, por sua vez, permite calcular quanto carbono está sendo estocado pelo ecossistema como um todo. Mas é difícil saber o quão representativas são as pequenas áreas de estudo, porque a Amazônia é quase tão grande quanto os Estados Unidos contíguos, com diferenças regionais em precipitação, temperatura, flora e extensão da exploração madeireira e da agricultura. (Um estudo até alertou sobre o risco de “viés de seleção de florestas majestosas”.)

A solução de Gatti foi medir diretamente o carbono no ar. O que levou à parte menos agradável do voo. O piloto havia retirado os assentos traseiros do avião para compensar o peso de uma “mala” especial de prata doada pela Administração Nacional Oceânica e Atmosférica dos Estados Unidos. No interior, uma espessa camada de espuma continha 17 frascos de vidro com válvulas que abriam e fechavam com o apertar de um botão. Cada um deveria capturar um litro e meio de ar de uma altitude diferente, começando a 14.500 pés (nt.: mais ou menos 4 mil e 400 metros) e descendo até 1.000 (nt.: mais ou menos 300 metros). Para garantir que a coleta sempre ocorresse acima do mesmo ponto no mapa, o piloto tinha que descer em espirais apertadas, inclinando-se com tanta força que o horizonte ficava quase vertical.

Em uma floresta tropical saudável, a concentração de carbono deve diminuir conforme você se aproxima do dossel por cima, porque as árvores estão extraindo o elemento da atmosfera e transformando-o em madeira por meio da fotossíntese. Em 2010, quando Gatti começou a fazer dois voos por mês em cada um dos quatro pontos diferentes da Amazônia brasileira, ela esperava confirmar isso. Mas suas amostras mostraram o contrário: em altitudes mais baixas, a proporção de carbono aumentou. Isso sugere que as emissões do corte e queima de árvores – o método preferido para limpar os campos na Amazônia – na verdade excedem a capacidade da floresta de absorver carbono. A princípio, Gatti tinha certeza de que era uma anomalia causada por uma seca passageira. Mas a tendência não persistiu apenas nos anos mais úmidos; isso se intensificou.

Por um tempo, Gatti simplesmente se recusou a acreditar em seus próprios dados. Ela até ficou deprimida. Ela sempre sentiu uma profunda conexão com a natureza. Quando criança, em uma cidade distante chamada Cafelândia, ela subia em uma árvore em frente à sua casa, passando horas em uma formação de galhos que pareciam feitos sob medida para embalar seus braços, pernas e cabeça. Anos depois, por mais que sobrevoasse a Amazônia, ela nunca se acostumou com a visão de estradas recém-pavimentadas, novas estradas de terra sempre se ramificando, formando um padrão de espinha de peixe. Às vezes, ela passava por colunas de fumaça bege que subiam até a estratosfera.

De volta ao seu laboratório, que agora está instalado no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), Gatti passou dois anos refinando sua metodologia. Ela queria saber quanto carbono a floresta tropical estava perdendo – e ainda mais importante, quão representativos eram esses resultados. O objetivo de seu projeto era que, ao capturar o ar de altitudes tão elevadas, ele pudesse fornecer uma imagem empírica e abrangente do chamado balanço de carbono da Amazônia. Então ela desenvolveu sete maneiras diferentes de calcular o efeito dos fluxos de vento e a composição do ar sobre o Oceano Atlântico, aperfeiçoando gradualmente seu método para subtrair o ruído de fundo. Por fim, ela se sentiu confiante de que suas “regiões de influência” captavam o que estava acontecendo em 80% da Amazônia.

Quando Gatti publicou suas descobertas na Nature em 2021, gerou manchetes de pânico em todo o mundo: os pulmões da Terra estão exalando gases de efeito estufa. Mas sua descoberta foi realmente muito mais alarmante do que isso. Como a queima de árvores libera uma alta proporção de monóxido de carbono, ela pode separar essas emissões do total. E no sudeste da Amazônia, as amostras de ar ainda mostravam emissões líquidas, sugerindo que o próprio ecossistema poderia estar liberando mais carbono do que absorveu, em parte graças à decomposição da matéria vegetal – ou nas palavras de Gatti, “efetivamente morrendo mais do que crescendo”. A primeira vez que falei com Gatti, ela reaproveitou uma letra do cantor brasileiro Jorge Ben Jor. Como isso poderia estar acontecendo, ela perguntou, em um “país tropical, abençoado por Deus/e lindo por natureza”?

A Amazônia é um labirinto de mil rios. Eles nascem a 21.000 pés, com o derretimento sazonal da calota de gelo de Sajama, na Bolívia, e nascem na rocha escura do penhasco de Apacheta, no Peru, como infiltração glacial jorrando branco de seus poros. Eles nascem a menos de 160 quilômetros do Oceano Pacífico; eles nascem no meio do continente sul-americano, nos planaltos, savanas e cordilheiras de arenito do Brasil. A maioria são apenas afluentes de afluentes, nascentes de rios muito maiores — o Caquetá, o Madre de Dios, o Iriri, o Tapajós —, cada um deles, por si só, já estaria entre os maiores rios do mundo. Onde esses afluentes desembocam, logo ao sul do Equador, eles formam a aorta do Amazonas, com mais de 16 quilômetros de largura em seu ponto mais largo. Da nascente mais distante do Amazonas até sua foz no Atlântico, a água corre por 4.000 milhas (nt.: mais ou menos 6.400 km), quase tão longo quanto o Nilo. Medido pelo volume que libera no oceano – o equivalente a uma dúzia de Mississippis, um quinto de toda a água doce que chega aos mares do mundo – o Amazonas é o maior rio do mundo.

O consenso costumava ser que os ecossistemas são apenas um produto dos padrões climáticos predominantes. Mas na década de 1970, o pesquisador brasileiro Eneas Salati provou que a Amazônia, com seus cerca de 400 bilhões de árvores, também cria seu próprio clima. Em um dia normal, uma única árvore grande libera mais de 100 galões (nt.: quase 400 litros) de água como vapor. Isso não apenas reduz a temperatura do ar por meio do resfriamento evaporativo; como Salati descobriu rastreando isótopos de oxigênio em amostras de água da chuva, também dá origem a “rios voadores” – nuvens de chuva que reciclam a própria umidade da floresta cinco ou seis vezes, gerando até 45% de sua precipitação total. Ao criar as condições para uma faixa continental de sempre-vivas, esse processo é crucial para o papel da Amazônia como um “sumidouro” global de carbono.

Muitos cientistas agora temem, no entanto, que esse ciclo virtuoso esteja se rompendo. Apenas no último meio século, 17% da Amazônia – uma área maior que o Texas – foi convertida em terras de cultivo ou pastagens para gado. Menos floresta significa menos chuva reciclada, menos vapor para resfriar o ar, menos copa para proteger contra a luz solar. Sob condições mais secas e quentes, até mesmo as árvores mais exuberantes da Amazônia perderão as folhas para economizar água, inibindo a fotossíntese – um ciclo de retroalimentação que só é exacerbado pelo aquecimento global. De acordo com o cientista do sistema terrestre brasileiro Carlos Nobre, se o desmatamento atingir 20 a 25% da área original, os rios voadores enfraquecerão o suficiente para que uma floresta tropical simplesmente não consiga sobreviver na maior parte da Bacia Amazônica. Em vez disso, ele se transformará em uma savana raquítica, possivelmente em questão de décadas.

Muitas das evidências para essa teoria – incluindo os estudos de amostras de ar de Gatti – surgiram graças a uma iniciativa inovadora liderada pelo próprio Nobre. Quando Nobre começou a tentar prever o impacto do desmatamento em 1988, ele teve que fazê-lo na Universidade de Maryland, porque seu país de origem não tinha capacidade de computação para modelagem climática séria. O Brasil estava tão carente de recursos que os pesquisadores estrangeiros até dominaram o trabalho de campo na Amazônia. Mas Nobre liderou um programa que, nas palavras de um editorial da Nature, “revolucionou a compreensão da floresta amazônica e seu papel no sistema terrestre”. Estabelecido em 1999 e conhecido como Experimento de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia,ou LBA, uniu disciplinas que normalmente não colaboravam, reunindo químicos como Gatti com biólogos e meteorologistas. Enquanto o financiamento veio principalmente dos Estados Unidos e da Europa, Nobre insistiu que os sul-americanos desempenhassem papéis de liderança, dando origem a toda uma nova geração de cientistas brasileiros do clima.

Até recentemente, Nobre trabalhava com a suposição de que a Amazônia não se tornaria uma fonte líquida de carbono por pelo menos mais algumas décadas. Mas a pesquisa de Gatti não é o único sinal de que, como ele me disse pelo Skype, “estamos às vésperas desse ponto crítico”. A máquina de chuva está diminuindo. As secas costumavam ocorrer uma vez a cada duas décadas, com uma megaseca a cada século ou dois. Mas só desde 1998 houve cinco, dois delas extremas. O efeito é particularmente agudo na Amazônia oriental, que já perdeu impressionantes 30% de sua floresta. A estação seca costumava durar três meses; agora dura mais de quatro. Durante os meses mais secos, a precipitação caiu em até um terço em quatro décadas, enquanto as temperaturas médias aumentaram em até 3.1 grau Celsius – o triplo do aumento anual para o mundo como um todo na era dos combustíveis fósseis. Em algumas partes, as selvas já estão sendo colonizadas por gramíneas.

Perder a Amazônia, um dos ecossistemas com maior biodiversidade da Terra, seria catastrófico para as dezenas de milhares de espécies que vivem lá. O aumento das temperaturas também pode levar milhões de pessoas na região a se tornarem refugiados climáticos. E também representaria uma morte mais simbólica, já que “salvar a floresta tropical” tem sido uma espécie de sinédoque para o ambientalismo moderno como um todo. O que mais preocupa os cientistas, no entanto, é o potencial desse ponto de inflexão ecológico regional para produzir efeitos indiretos no clima global. Como os rios voadores da Amazônia circulam de volta ao continente, o impacto pode já estar alcançando além da floresta tropical. Em 2015, o populoso sudeste do Brasil foi atingido por escassez histórica de água; em 2021, tempestades de areia quase bíblicas varreram a região.

Mas mesmo essas consequências empalidecem em comparação com as consequências de colocar o carbono da Amazônia de volta na atmosfera. Apesar de todo o corte e queima dos últimos anos, o ecossistema ainda armazena cerca de 120 bilhões de toneladas de carbono em seus troncos, galhos, folhas, gavinhas das trepadeiras e solo – o equivalente a cerca de dez anos de emissões humanas. Se todo esse carbono fosse liberado, poderia aquecer o planeta em até 0,3 graus Celsius. De acordo com o ecologista de Princeton, Stephen Pacala, isso por si só provavelmente tornaria o Acordo de Paris – o acordo internacional para limitar o aquecimento desde os tempos pré-industriais a 2 graus – “impossível de alcançar”. O que, por sua vez, pode significar que outros pontos críticos climáticos são violados em todo o mundo. Como me disse o cientista britânico Tim Lenton: “A Amazônia retroalimenta tudo”.

A trágica derrubada da floresta para o plantio de ‘commodities’ como soja. Ilustração de Max Guther

Em maio, juntei-me a Gatti em uma viagem ao nordeste da Amazônia. Embora não fosse exatamente parte de sua pesquisa, ela queria visitar a Floresta Nacional do Tapajós, uma área de preservação de 1,4 milhão de acres (nt.: mais de 500 mil hectares) que continha pistas sobre as misteriosas emissões da floresta tropical e a transformação prevista por Nobre. Primeiro ela voou de São Paulo 1.500 milhas (nt.: mais de 2 mil e quatrocentos km) ao norte até Belém, na foz do Amazonas no Atlântico. De lá, ela voou para Santarém, 400 milhas (nt.: mais de 600 km) rio acima, onde as águas barrentas do Amazonas se encontram com o azul-escuro do rio Tapajós. Na estação seca, turistas vêm de todo o Brasil para as praias de areia branca do Tapajós. Agora chovia forte, as praias submersas. O rio batia nas calçadas de Santarém.

Santarém é uma das cidades mais antigas do Brasil, fundada por missionários jesuítas numa época em que a única mercadoria local eram as almas indígenas. Sua fortuna aumentou com o boom da borracha no século 19 e caiu com a quebra do século 20. Mais recentemente, foi transformada pela crescente demanda da China por soja, que é usada como ração animal e óleo de cozinha. Gatti apontou as barcaças longas e estreitas atracadas em um terminal administrado pela Cargill, a gigante americana de comércio de commodities. Começou a operar em 2003, um ano antes de Gatti começar a operar voos do pequeno aeroporto de Santarém. Enquanto dirigíamos para o sul na BR-163, também conhecida como o “corredor de grãos” do Brasil, Gatti lembrou como, naquela época, muitos dos campos eram pastos para o gado pastar. De toda a terra desmatada na Amazônia, mais de dois terços são pastagens. Aqui, porém, Gatti observou a grama dar lugar a um “mar de soja”.

Antes de nossa viagem, Nobre havia me alertado para manter a discrição, porque Gatti havia se tornado um rosto público em meio ao burburinho em torno de suas descobertas. Poucas semanas depois, o defensor dos direitos indígenas Bruno Pereira e o jornalista ambiental Dom Phillips seriam assassinados. O lucro faz sua própria lei na Amazônia. Na região do Tapajós, os proprietários devem preservar 50% de suas propriedades como floresta tropical. Mas Gatti notou como os fazendeiros e pecuaristas continuaram a expandir seus campos, muito gradualmente, em longas e finas faixas destinadas a evitar a detecção pelos satélites de seu próprio empregador, o INPE. Em 2006, a indústria da soja concordou em não plantar em áreas recém-desmatadas. Mas também existem maneiras de contornar isso. Alguns agricultores subornam autoridades locais para obter documentos falsificados. Outros transferem terras para testas de ferro para que possam violar a moratória sem manchar seu nome. Enquanto dirigíamos, Gatti anotou violações para denunciar, embora um de seus ex-colegas tenha recebido ameaças de morte por isso. Ela não escondia suas afinidades, preferindo camisetas com tucanos e araras em fundos floridos.

Gatti, agora com 62 anos, sempre teve uma veia rebelde. Quando ela estava na faculdade, no final dos anos 1970, alguns colegas foram presos por protestar contra a ditadura. Indignada, ela se juntou a um partido político clandestino e parou de frequentar as aulas por um tempo. Embora ela mal soubesse disso na época, foi o regime militar que supervisionou o primeiro esforço moderno para colonizar a floresta tropical. Um de seus projetos mais ambiciosos foi a Rodovia Transamazônica, que perfurou 2.600 milhas (nt.: um pouco mais de 4 mil e cem km) a oeste da costa e agora forma a borda sul da Floresta Nacional do Tapajós. O objetivo era, em parte, “preencher o que os generais viam como um ‘vazio demográfico’, impedindo a entrada de potências estrangeiras como os Estados Unidos. na Amazônia”. Não importa que a floresta já estivesse ocupada por uma multidão de grupos indígenas; eles também seriam transformados em cidadãos produtivos.

O regime militar também havia construído a BR-163, que se ramifica na Transamazônica, formando a fronteira leste do Tapajós. À medida que avançávamos, placas anunciavam um terreno à venda, uma loja chamada Casa das Sementes, uma Igreja Mundial do Poder de Deus. À nossa direita, o Tapajós era uma imponente parede verde. À nossa esquerda havia terras privadas onde as florestas eram intercaladas com plantações. Era o final da safra de soja agora, quando muitos fazendeiros começaram uma rotação de milho; tratores passavam, longas asas de metal pulverizando agrotóxicos. Gatti apontou uma área recém-limpa; os troncos estavam espalhados como num jogo de varetas. Mesmo quando os proprietários de terras seguiam a lei, o que antes era um ecossistema contínuo tornou-se um arquipélago, fragmentos de floresta cercados por extensões planas. A certa altura, passamos por uma castanheira solitária, inutilmente protegido pela legislação brasileira mesmo em meio à monocultura. “Aqui está a floresta”, declarou Gatti.

Enquanto ela falava, Gatti gesticulava com tanta veemência que às vezes as duas mãos saíam do volante. Ela não demonstrou afeto por Jair Bolsonaro, o ex-oficial do Exército que passou quatro anos como presidente pressionando pelo desenvolvimento da Amazônia. Alegando (sem fundamento) que os números do desmatamento de seu próprio governo eram uma mentira, ele estrangulou o financiamento do INPE a ponto de o Instituto supostamente teve que desligar seu supercomputador. Ele também cortou os orçamentos para proteger os povos indígenas e o meio ambiente. Previsivelmente, o desmatamento acelerou; em 2021, mil árvores foram derrubadas a cada minuto. Gatti às vezes pensava em desistir, mudando-se com seu pastor alemão para uma ecovila no interior. Com Luiz Inácio Lula da Silva de volta à presidência, no entanto, ela está se sentindo esperançosa pela primeira vez em anos. Na última vez em que esteve no cargo, de 2003 a 2011, o desmatamento caiu dois terços – e agora ele prometeu interromper totalmente o desmatamento. A questão é se isso será suficiente para interromper um processo que agora pode ter um impulso próprio.

Por fim, Gatti desviou-se para a direita, passando por um túnel de galhos pendentes e entrando em uma área aberta onde árvores altas sombreavam uma base de pesquisa construída como parte do LBA de Nobre. A base lembrava uma eco-pousada, com prédios baixos de madeira cobertos com telhados de telha de barro. A noite caía, o som dos sapos competindo com o uivo distante dos macacos. Fomos recebidos por uma bióloga de 39 anos, Erika Berenguer, que vestia uma velha camiseta branca, larga demais e suja. Sua especialidade, segundo ela, era a desgraça — a calamidade. Acontece que os números do desmatamento na verdade subestimam o problema da Amazônia, porque um quinto da floresta em pé foi “degradado” pela exploração madeireira, queimada e fragmentação. Agora baseada em Oxford, Berenguer passou os últimos 12 anos estudando como esses males afetam a capacidade da Amazônia de armazenar carbono. Como ela explicaria, porém, até ela ficou chocada com o que aconteceu em 2015, um ponto crítico na saúde do ecossistema.

Na época, o projeto de Berenguer era medir cada árvore em algumas dezenas de talhões dentro e ao redor da Floresta Nacional do Tapajós, em intervalos regulares, para calcular o peso de toda a matéria orgânica, ou biomassa, que serve como indicador para o carbono. A princípio, quando notou as chamas dentro da área de conservação, ela apenas continuou fazendo seu trabalho – recolhendo folhas mortas, fixando fita adesiva em torno de troncos centenários, marcando cada um com pedaços numerados de metal cortados de latas de cerveja. Como o colega de Berenguer, Jos Barlow, gosta de apontar, observadores externos geralmente não conseguem distinguir entre incêndios de desmatamento (intencionalmente iniciados para limpar áreas recém-cortadas) e incêndios florestais (quando as chamas se espalham acidentalmente para florestas em pé). Agora era agosto, o auge da estação seca, quando fazendeiros e pecuaristas na Amazônia limpam os campos com fogo. Quase todos os anos, brasas flutuavam pela rodovia BR-163, incendiando folhas no chão da floresta. Mas a própria floresta permaneceu tão úmida que as chamas não conseguiram se espalhar muito.

Berenguer, natural do Rio de Janeiro cosmopolita, fazia questão de suar ao lado de seus ajudantes, homens locais com apelidos como Xarope (Xarope) e Graveto (Pau), cujas famílias se estabeleceram à beira da BR-163 como parte do impulso colonizador de década de 1970. Eles também não estavam muito preocupados. Como agricultores de subsistência, eles também usavam o fogo para manter suas terras. É uma tradição que remonta aos habitantes mais antigos da região, indígenas que descobriram que as cinzas fertilizam os solos pobres em nutrientes. Fora da mais rara das megasecas, eles nunca tiveram que se preocupar em perder o controle das chamas. Pesquisadores encontraram áreas da Amazônia que, de acordo com amostras de sedimentos, passaram 4.000 anos sem uma única queimada.

Enquanto Berenguer trabalhava até setembro, no entanto, a fumaça de incêndios díspares coagulava em uma névoa permanente e indistinguível. Permeava tudo – a caminhonete, as roupas, até o sutiã de Berenguer. Quando chutaram as folhas mortas, notaram que o solo estava rachando. As plantinhas do sub-bosque murcharam. Logo todos estavam tossindo; as pessoas se revezavam respirando a névoa de um nebulizador, e seu próprio ranho ficou preto. Todas as manhãs, ela e seus assistentes tinham que limpar uma camada de fuligem fresca do para-brisa do caminhão. Eles acenderam os faróis, acenderam as luzes de emergência e seguiram para a rodovia. Eles dirigiram devagar, mas não conseguiram ver os veículos à frente até que quase colidiram com eles. O céu estava escondido. O sol era uma sugestão vermelha. As cinzas caiam como uma neve alienígena.

Os incêndios escapavam para as roças, para os pastos onde pastava o gado, para os telhados de palha das casas. E os incêndios estavam fazendo o que não deveriam: se espalhando dentro da floresta tropical. Dividindo seu tempo entre a Grã-Bretanha e a Amazônia, Berenguer passou a conhecer seus lotes de pesquisa tão intimamente quanto seu antigo bairro no Rio. Ela pensou em seus lugares favoritos como versões da floresta tropical de sua cafeteria local, sua padaria local. Lá estavam os troncos caídos onde ela e seus assistentes voltavam dia após dia para poderem sentar e almoçar. Lá estavam as raízes altas e finas do contraforte que agiam como um banheiro improvisado, escondendo-a quando necessário. Em um lote, um grosso laço de um cipó pendia do dossel, criando o balanço perfeito. Agora ela queria salvar esses lugares.

Entre as grandes árvores antigas do Tapajós, as chamas subiam a apenas trinta centímetros do chão. Berenguer e Xarope poderiam esmagá-los com suas botas. Mas seus esforços foram em vão. As chamas se consolidaram em um arco fino e ininterrupto que se estendia por quilômetros floresta adentro. Avançava lentamente, trezentos metros por dia; em seu rastro, o rico verde perene foi deixado marrom e cinza e preto como carvão. Berenguer observou os animais fugirem da linha de fogo – borboletas, veados, sapos do tamanho de dedos. Um dia ela surpreendeu uma cobra. Ela saltou para um tronco fumegante, imolando-se acidentalmente, e Berenguer ouviu um som crepitante, como pão com manteiga batendo em uma chapa.

Em toda a Amazônia, mais florestas queimaram do que nos maiores incêndios florestais da história da Califórnia, colocando meio bilhão de toneladas de carbono de volta na atmosfera – o equivalente a mais de um ano de emissões do México. Foi a pior temporada de incêndios florestais já registrada na Amazônia. Os anos subsequentes não foram tão secos, mas os incêndios florestais permaneceram bem acima da média das temporadas anteriores – mais um sinal de que o ecossistema está perdendo sua resiliência natural, entrando em um ciclo de feedback alternativo. Nas amostras de Gatti, a seca de 2015-16 também marcou o momento em que, como ela me disse, “o sudeste da Amazônia foi para o pote” e a própria floresta começou consistentemente a liberar mais carbono do que absorveu. O fogo faz mais do que destruir árvores. Também acelera as transformações previstas pela teoria do ponto de inflexão de Nobre.

Desmatamento para a ocupação de negócios. Crédito: Ilustração de Max Guther

Quase todos os pesquisadores com quem conversei para este artigo tiveram o cuidado de enfatizar seu profundo respeito por Nobre, que tanto fez para o avanço da ciência climática da Amazônia. Mas alguns têm reservas sobre sua teoria. Em parte porque suas primeiras simulações mostraram que, com menos chuva, a Amazônia daria lugar ao Cerrado, uma savana que cobre grande parte do Brasil central. O Cerrado, no entanto, é uma colcha de retalhos rica em carbono de pastagens, pântanos e florestas que está ameaçado pelo aquecimento global e pela expansão da agricultura. Como um ecossistema tão vibrante pode representar um colapso ecológico? Outros pesquisadores, tendo estudado a Amazônia de perto em um trabalho de campo sujo, se opõem ao uso de modelos de computador que aplicam suposições uniformes a esse bioma multifário. Outros ainda expressam uma preocupação mais pragmática – que a forma como Nobre comunica sua teoria é desmobilizadora. “Carlos dá a impressão de que toda a floresta vai desabar ao mesmo tempo, a água vai parar de circular e tudo vai virar uma grande savana”, me disse Berenguer. O artigo de Gatti, ela acrescentou, também levou a alguns mal-entendidos. Ao participar da Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas em Glasgow em 2021, ela até ouviu pessoas dizerem que, se a Amazônia agora era um emissor líquido, por que se preocupar em salvá-la?

O próprio Nobre está ciente dessas dúvidas. Agora ele se apressa em esclarecer que a transformação terá diferentes formas em diferentes regiões, e que qualquer estado final será mais um cerrado empobrecido do que uma savana estilo Cerrado. Ele também prevê que as florestas do oeste da Amazônia, que são mais chuvosas ao longo do ano por causa de sua proximidade com a Cordilheira dos Andes, sobreviveriam a um ponto crítico. Sua teoria, porém, não está mais confinada a simulações de computador; na bacia do sudeste, pode já estar acontecendo. Em um estudo, uma equipe liderada pelo pesquisador Paulo Brando intencionalmente ateou uma série de incêndios em trechos de floresta confinados por uma plantação de soja inativa. Após uma segunda queima, coincidentemente durante um ano de seca, uma parcela perdeu quase um terço de sua cobertura de dossel, e capins africanos — espécies importadas comumente usadas em pastagens de gado — se mudaram. Brando também participou de um estudo observacional, liderado por seu colega Divino Silvério, do enorme Parque Indígena do Xingu na região. As terras indígenas abrigam grande parte da floresta tropical mais bem preservada do Brasil. Mas depois de repetidos incêndios florestais, as pastagens do Xingu – tradicionalmente mantidas como uma fonte de palha – quase triplicaram de tamanho em menos de duas décadas, para 8% da área total. Enquanto isso, na Amazônia central, as savanas naturais de areia branca estão tomando conta das florestas inundadas sazonalmente – novamente, em grande parte graças ao fogo. 

É tentador pensar nas mudanças climáticas como um processo que, na ausência das emissões humanas, só aconteceria gradualmente. Mas, como aponta Tim Lenton, nosso planeta é naturalmente propenso a “comportamento limiar”. Em um artigo de 2008 amplamente citado , Lenton trouxe a linguagem cativante de pontos de inflexão para as revelações arcanas da ciência dos sistemas terrestres e da paleoclimatologia. Ao longo da história do nosso planeta, em ecossistemas individuais, bem como no clima mais amplo, pequenas mudanças incrementais começaram a se reforçar até que – às vezes de repente – um ciclo de feedback foi substituído por outro radicalmente diferente. O que Lenton chama de exemplos mais “icônicos” são os eventos Dansgaard-Oeschger do último período glacial, quando as temperaturas na Groenlândia dispararam repetidamente em até 15 graus Celsius no espaço de algumas décadas, antes de esfriar novamente. As causas são intensamente debatidas, mas provavelmente envolveram mudanças na cobertura do manto de gelo e na circulação das águas do mar.

Já existem evidências de que nossa era atual de aquecimento global está mudando as fronteiras de vários biomas. No Alasca, por exemplo, os abetos brancos estão se movendo para áreas de tundra pela primeira vez em milhares de anos. Mas os humanos podem ter desencadeado “mudanças de regime” ecológicas mesmo antes da era dos combustíveis fósseis. O Outback australiano provavelmente era exuberante e verde até cerca de 40.000 anos atrás, quando as pessoas caçaram a megafauna herbívora até a extinção, deixando mais combustível para os incêndios, que aparentemente interromperam os próprios “rios voadores” do continente. Na Península de Yucatán, no México, acredita-se que o desmatamento tenha amplificado a seca que derrubou os maias. Depois, há o Saara. Dez mil anos atrás, a área lembrava a África do Sul temperada, mas o pastoreio de gado pode ter ajudado a transformá-la em um deserto. Como a cientista da NOAA Elena Shevliakova, que modelou os impactos globais do desmatamento na Amazônia, me disse: “Se um Saara verde é possível, por que não uma savana na Amazônia?”

A Amazônia sobreviveu a eras glaciais. Pode não sobreviver aos humanos. Ao apressar o fim de seus rios caudalosos, criadores de gado e plantadores de soja também podem estar colocando em risco seus próprios meios de subsistência. Mas, graças ao que os climatologistas chamam de teleconexões – anomalias climáticas ligadas por milhares de quilômetros – elas também ameaçam a agricultura muito mais longe. Na teleconexão El Niño, um Oceano Pacífico excepcionalmente quente puxa a corrente de jato para o sul, trazendo condições mais secas para o Canadá e o norte dos Estados Unidos (bem como para a região amazônica). De acordo com um estudo liderado pelo pesquisador da Notre Dame, David Medvigy, um padrão semelhante pode surgir se a Amazônia parar de reciclar sua própria umidade, já que o ar seco viajaria para o norte no inverno. Isso poderia reduzir pela metade a camada de neve na Sierra Nevada, uma fonte crucial de água para uma Califórnia já atingida pela seca.

Um número crescente de cientistas teme que um ponto crítico possa desencadear outro. Em alguns casos, a influência é direta. Se a camada de gelo da Groenlândia desaparecer, a circulação das águas do Atlântico poderá ser drasticamente alterada, o que, por sua vez, causará estragos nos padrões climáticos em todo o mundo, tornando a Escandinávia inabitavelmente fria, aquecendo o hemisfério sul, secando as florestas. O impacto da morte progressiva da Amazônia seria liberar dezenas de bilhões de toneladas de carbono na atmosfera — que é mais difusa, mas não menos perigosa. Quando Lenton e seu colega David Armstrong McKay compilaram há pouco tempo as evidências mais recentes sobre uma série de limiares climáticos globais, eles descobriram que mesmo um 1.5 graus de aquecimento desde os tempos pré-industriais podem ser suficientes para desencadear o derretimento gradual, mas irreversível, das camadas de gelo na Groenlândia e na Antártica Ocidental e para descongelar o permafrost que retém metano.

É difícil prever como todas essas mudanças podem interagir, pois a maioria dos modelos assume, por exemplo, que as águas do mar do Atlântico sempre circularão de acordo com padrões conhecidos. Mas em um artigo de 2018, Lenton e o cientista americano do sistema terrestre Will Steffen alertaram que uma “cascata de queda” semelhante a um dominó poderia empurrar o próprio clima global além de um limite crítico, em um ciclo de feedback alternativo chamado “estufa da Terra”, com condições hostis não vistas por milhões de anos. Pode parecer uma desgraça contemplar tal cenário. Não há como colocar um número nisso. Mesmo que seja improvável, no entanto, Lenton argumenta que as consequências seriam tão terríveis que devem ser levadas a sério. Ele vê isso como um “profundo problema de gerenciamento de risco”: se nos concentrarmos apenas nos resultados mais prováveis, nunca preveremos anomalias como a “cúpula de calor” sem precedentes de 2021 no noroeste do Pacífico . Ou a onda de calor do inverno do ano passado na Antártida , quando as temperaturas subiram 70 graus Fahrenheit acima da média. Ou, aliás, a proliferação de incêndios florestais na maior floresta tropical do mundo.

Berenguer queria mostrar a Gatti como os megaincêndios de 2015 alteraram as florestas no nordeste da Amazônia. Então Xarope nos pegou na base de pesquisa pela manhã e voltamos para a BR-163. Aqui e ali ao longo da rodovia, Berenguer apontou “esqueletos de árvores” – árvores mortas cujos galhos desbotados pelo sol se projetavam do dossel verde exuberante do Tapajós. O fogo nem sempre os matava imediatamente. Quando Berenguer estava de volta à Grã-Bretanha, seus assistentes lhe enviavam atualizações por WhatsApp. Você conhece a Árvore 71? uma mensagem poderia dizer, referindo-se a um espécime centenário em uma de suas tramas. Então, simplesmente morreu. Pode levar mais alguns anos para cair no chão. Parte do carbono nas amostras de ar de Gatti, então, pode ser uma consequência tardia de incêndios anteriores. Mas, como veríamos dentro da floresta viva, algo estranho também estava acontecendo.

Por fim, saímos da rodovia por uma trilha de terra não sinalizada que terminava em uma parede de vegetação. Facão na mão, Berenguer nos conduziu por um caminho apertado. Apenas alguns dias antes, ela e seus assistentes passaram horas abrindo caminho para nós, mas novas gavinhas das trepadeiras já estavam ocupando o espaço. “Você pode ver que está uma bagunça”, disse Berenguer. Um matagal intransponível de juncos de bambu nos cercava de ambos os lados; o dossel estava bem acima de nossas cabeças. Para mim, parecia bastante normal, no que diz respeito à selva. Na realidade, porém, uma floresta tropical saudável deve ser fácil de percorrer, porque as árvores maiores consomem tanta luz e água que o sub-bosque carece de recursos para crescer muito denso.

Caminhamos sobre troncos caídos. Ao contrário do sudeste da Amazônia, Berenguer ainda não viu nenhuma evidência de vegetação de savana se movendo. Mas o equilíbrio de espécies nativas agora estava fora de sintonia, já que vegetais “pioneiros” oportunistas ocuparam os espaços deixados por gigantes mortos. Em algumas áreas, as embaúbas de crescimento rápido estavam tão uniformes que pareciam os troncos de uma plantação de celulose. Em outras, centenas de cipós recém-nascidos formavam uma espécie de ninho de cobra. (A equipe de Berenguer teve que medir cada um individualmente, uma tarefa infernal.) Ela apontou para uma árvore alta e orgulhosa que de alguma forma sobreviveu ao incêndio. Como todos os outros indivíduos próximos de sua espécie foram mortos, era improvável que se reproduzisse; Berenguer o chamou de “zumbi”.

Uma pesquisadora da Universidade de Birmingham chamada Adriane Esquivel-Muelbert encontrou mudanças semelhantes em toda a Amazônia. Mesmo na ausência de uma “savanização” real, as árvores que podem suportar condições mais secas estão se proliferando, enquanto aquelas que precisam de mais água estão morrendo em maior número. O domínio da embaúba é particularmente preocupante porque as árvores são ocas, armazenando muito menos carbono do que uma espécie de crescimento mais lento, como o mogno. Seu ciclo de vida também é relativamente curto, deixando lacunas mais frequentes no dossel. O resultado final dessa transformação não é claro, mas os números de Gatti só continuaram a piorar. De acordo com suas últimas médias de cinco anos, a Amazônia brasileira já está emitindo 50% mais carbono do que nos primeiros cinco anos de seu projeto – e mesmo as florestas ocidentais historicamente mais saudáveis às vezes emitem mais do que absorvem.

Por fim, chegamos a uma clareira. Comecei a suar. O sol estava escaldante; Berenguer disse que o solo sem sombra pode atingir 176 graus Fahrenheit (nt.: 80 graus celsus) aqui. As clareiras são uma parte natural do ciclo amazônico, pois árvores grandes inevitavelmente morrem e outras espécies gradualmente tomam seu lugar. Mas nem mesmo a extração de madeira conseguiu igualar o poder do fogo para transformar a floresta em “queijo suíço”. Berenguer nunca precisou de protetor solar porque o dossel era muito espesso; agora ela fica queimada de sol aqui. E a profusão de buracos desencadeia um ciclo vicioso. O sol seca a vegetação; as árvores perdem as folhas para preservar a água; o lixo se torna combustível para o próximo incêndio. As lacunas também criam um “corredor de vento”, permitindo que fortes correntes de ar penetrem profundamente na floresta durante as tempestades. Perversamente, com seus pesados ​​troncos, os maiores, as árvores maiores e mais antigas são especialmente vulneráveis a serem derrubadas.

“Esta costumava ser uma bela floresta”, disse Xarope.

“Alguns dias isso me deixa triste”, disse Berenguer. “Outros dias isso me irrita. Este é um daqueles dias.”

Berenguer esperava que o infortúnio do megaincêndio pelo menos fornecesse uma oportunidade para estudar como uma floresta tropical se recupera de tal desgraça.. Mas ela temia que nunca descobrisse, porque nunca teria a chance. Entre os cientistas que estudam a Amazônia, a noção de múltiplos pontos de inflexão, próprios da ecologia de cada região, tem se consolidado cada vez mais. E alguns agora falam de um “ponto de inflexão de inflamabilidade” ainda mais urgente, além do qual um ecossistema que nunca evoluiu para queimar começa a queimar regularmente. Durante a seca de 2015, incêndios florestais também devastaram outra área de preservação próxima, a Reserva Extrativista Tapajós-Arapiúns. Por ter ficado tão degradado, com tanto combustível seco no chão, houve uma conflagração muito mais intensa em 2017, mesmo sendo um ano chuvoso. Desta vez, as chamas não atingiram os pés de altura que geralmente são vistas na Amazônia, mas atingiram todo o caminho até o dossel.

Embora seu esteio fosse a calamidade ecológica, Berenguer também queria que víssemos como é uma floresta antiga bem preservada. Em termos estritamente científicos, era um controle, um ponto de comparação necessário com as florestas bagunçadas, como ela as chamava (embora usasse uma palavra mais colorida que não pode ser impressa aqui). Ela também deixou transparecer que acolheu a rara desculpa de passear por um cenário mais “David Attenborough”. Então seguimos para o sul pela BR-163 até chegarmos ao quilômetro 117, onde entramos novamente no Tapajós.

Estávamos andando por apenas alguns minutos antes que a diferença se tornasse óbvia. Estava mais frio e escuro. A flora era bem mais variada, formando camadas distintas conforme você erguia os olhos para o céu. O dossel era muito mais fechado, o sub-bosque muito mais aberto; Berenguer e Xarope nem precisaram podar a trilha para nossa visita. Havia cipós aqui também, mas eram poucos e grandes. Um era grosso como uma árvore; Berenguer disse que provavelmente tinha séculos de idade.

É difícil abalar uma imagem popular de cientistas como rigorosamente racionais e insensíveis em relação ao seu trabalho. Mas Berenguer não teve vergonha de admitir que, como ela disse, ela e seus colegas também têm seus próprios pontos de inflexão. Por um tempo, após os incêndios de 2015, ela perdeu o senso de propósito, a esperança de que seu trabalho pudesse fazer a diferença. As chamas haviam devastado até o canteiro onde ela costumava se balançar naquele laço perfeito de cipó. “Todo o seu sistema de referência está sendo destruído e você está impotente”, disse ela. “É difícil explicar sem soar como um abraçador de árvores. Não quer dizer que não abraço árvores, porque sim.” Algumas árvores eram grandes demais para isso, no entanto. Aqui estava um urucurana, com suas raízes de contraforte em forma de asas mais altas do que todo o meu corpo. Aqui estava uma figueira mata-pau subindo, que envolve o tronco de outra árvore à medida que cresce, eventualmente matando seu hospedeiro. “Que truque sujo!” Gatti exclamou.

A certa altura, encontramos uma árvore baixa com uma fruta amarela que nem Berenguer nem Xarope conseguiram identificar.

“É venenoso?” Gatti perguntou.

“Não sei”, disse Xarope. Então ele arrancou um de um galho e o mordeu. Nós fizemos o mesmo. Não havia muita polpa ao redor da pedra, mas o sabor era forte e rico.

Berenguer lembrou-se de uma viagem de pesquisa anterior para rastrear frugívoros – criaturas que comem frutas. Ela e seus colegas tiveram que permanecer absolutamente parados e em silêncio por horas para evitar assustá-los. Sugeri que experimentássemos por um minuto, apenas para ouvir como soa uma floresta antiga sem humanos andando por aí.

Paramos de andar; Berenguer sentou-se em um tronco. À medida que nosso bate-papo desaparecia, o barulho dos pássaros aumentava como se alguém tivesse subitamente girado o botão de volume de um aparelho de som. Fechei os olhos por um momento. Quando olhei de novo, os olhos de Berenguer se estreitaram em fendas, seus lábios se curvaram em um leve sorriso. Antes, descrevendo o que sentia nesse lugar, Berenguer usou a palavra grandeza, mas também significa grandiosidade com da mesma forma, imensidão. A floresta tropical a fazia se sentir pequena, e ela gostava disso.

Gatti havia falado sobre se sentir, pelo menos temporariamente, não tão separada do mundo natural – quase como se ela fosse uma criança novamente, abrigada naquela árvore na frente de sua casa. Agora ela estava com os olhos fechados, as palmas das mãos abertas ao lado do corpo como se estivesse em um reavivamento religioso, como se estivesse recebendo alguma coisa.

Olhei para Xarope; ele parecia divertido. Então o feitiço foi quebrado pelo som mais familiar, distante, mas inconfundível, de um caminhão trocando de marcha.


Este artigo foi escrito com o apoio do Pulitzer Center on Crisis Reporting.

Alex Cuadros é o autor de “Brazillionaires”. Ele faz reportagens da Amazônia desde 2013 e agora está trabalhando em um livro sobre o grupo indígena Cinta Larga. 

Max Guther é um ilustrador baseado em Berlim conhecido por seu trabalho em um estilo 3-D isométrico hiper-real, muitas vezes com uma perspectiva desconhecida de cima.

Tradução livre, parcial, de Luiz Jacques Saldanha, janeiro de 2023.