Cume do Yaripo coberto pela neblina, característica que dá o nome à montanha, conhecida também como Pico da Neblina. FOTO DE MIGUEL TREFAUT E EQUIPE
04 DE MAI. DE 2022
Visitas ao monumento natural também conhecido como Pico da Neblina estavam proibidas desde 2003. Agora, projeto de ecoturismo desenvolvido por indígenas de Maturacá, no Amazonas, busca afastar garimpeiros e promover economia da comunidade
Na divisa do Brasil com a Venezuela, flanqueado pelos rios Branco e Negro, está o lar de uma das maiores populações indígenas ainda relativamente isoladas da América do Sul. Os yanomami (cuja palavra significa ‘seres humanos’) habitam há milhares de anos uma área que supera 190 mil km2, bem no coração da Amazônia, sobrevivendo exclusivamente do que cultivam e caçam na floresta.
No lado brasileiro dessas terras, de acordo com o Instituto Socioambiental (ISA), vivem cerca de 20 mil indígenas em mais de 220 comunidades e oito povos diferentes. Homologada em 1992, e maior que a área de países como a Suíça, a Terra Indígena Yanomami é praticamente um país yanomami, unido pela língua e suas variantes, bem como pela luta pela preservação de suas terras, ameaçadas pelo desmatamento e, principalmete, pela mineiração ilegal.
Preocupados com as ameaças ao seu território e existência, os yanomami se organizam em associações que buscam fortalecer medidas de preservação e garantir a subsistência das comunidades. Entre manifestações e mobilizações políticas, uma das iniciativas que vem se mostrando mais eficaz é o turismo.
No espaço de terra onde vivem os yanomamis estão também duas reservas ambientais – o Parque Estadual da Serra do Acará e o Parque Nacional do Pico da Neblina. Neste último fica o cume mais alto do país, na região que é um dos alvos do garimpo ilegal de ouro desde a década de 1980. Recentemente, a busca pelo minério em partes da Amazônia se intensificou, causando mais episódios de conflitos armados, degradação da floresta e ameaça à saúde dos indígenas. Só em 2021, mais de 3,2 mil hectares da Terra Yanomami foram desmatados em prol do garimpo, segundo levantamento da Hutukara Associação Yanomami.
Desta vez, no entanto, o próprio Pico da Neblina pode ajudar as comunidades yanomamis. Em março de 2022, saiu do papel um dos maiores projetos de ecoturismo no território indígena – idealizado e organizado pelos yanomami. Trata-se da subida ao Yaripo (ou ‘morada dos ventos’, como os locais chamam o Pico da Neblina).
Vista do topo do Yaripo desde o acampamento Areal, última parada da expedição antes do ataque ao cume. A jornada até esse ponto dura cinco dias. FOTO DE LUCAS LIMA – ISA
Turismo ao Pico da Neblina é retomado após quase 20 anos
O Pico da Neblina, localizado na Serra do Imeri, é considerado o ponto mais alto do Brasil, com 2.995,30 m de altura. Cercada pela densa floresta amazônica, a montanha fica na fronteira com a Venezuela, no município de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, e faz parte dos territórios tanto da Terra Yanomami como do Parque Nacional do Pico da Neblina.
Desde 2003, o turismo na região estava suspenso por determinação do Ibama, a fim de impedir a degradação ambiental e a violação dos direitos do povo yanomami. “Até então, a visitação ao Yaripo era realizada sem qualquer regulamentação ou controle dos órgãos responsáveis”, explica Marcos Wesley de Oliveira, coordenador do Programa Rio Negro, do ISA, que acompanha o projeto de ecoturismo Yanomami ao Pico da Neblina desde o início.
Segundo ele, há 20 anos, quando as visitações foram suspensas, a maioria dos turistas que atacavam o cume do Yaripo não sabiam que estavam em território indígena e nem da importância cultural e espiritual que a montanha tem para o povo Yanomami.
“As agências que acompanhavam os turistas vinham de longe e para longe levavam o lucro que obtinham com o negócio. E ainda impactavam o ambiente por falta de conhecimento e de fiscalização”, diz Oliveira.
Hoje, os yanomami defendem o ecoturismo na região, desde que a gestão e os benefícios do empreendimento fiquem para os indígenas que vivem no local. “É um projeto único que irá beneficiar cerca de 800 yanomamis que vivem em comunidades próximas à montanha”, contou à reportagem José Mario Pereira Goes, presidente da Associação Yanonami do Rio Cauaburis e Afluentes (Ayrca), responsável pela gestão do projeto e acompanhamento dos turistas durante o trajeto.
Segundo Goes, para que o projeto de ecoturismo Yaripo saísse do papel, foram anos de conversas e mobilizações das comunidades yanomami junto com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e a Fundação Nacional do Índio (Funai).
Sessão de capacitação de indígenas yanomami para a recepção de turistas na comunidade Maturacá. FOTO DE AYRCA
Equipe de recepção dos turistas na comunidade Maturacá. FOTO DE AYRCA
O programa começou a ser desenvolvido em 2015 e foi idealizado principalmente pela Ayrca e pela Associação das Mulheres Yanomami Kumirayoma (Amyk). Participaram 55 representantes de seis comunidades da região, na maioria jovens interessados em trabalhar no projeto e lideranças tradicionais.
Com a aprovação do plano de visitação pelo ICMBio e pela Funai, em 2019, a expectativa dos yanomami era levar os primeiros turistas ao Yaripo a partir de abril de 2020. A pandemia de covid-19, no entanto, obrigou o adiamento do início das atividades.
“Foi um desafio muito grande viabilizar a atividade turística aqui na região e é satisfatório ver nossos esforços dando frutos”, disse Goes. “Estamos felizes e ansiosos em receber os visitantes em nossa terra.”
Yaripo: um tour pela ‘casa dos espíritos’
A subida até o pico não é um trajeto fácil. A participação dos indígenas na preparação do programa de ecoturismo é importante não só porque gera renda para as comunidades, mas porque os yanomamis sabem – melhor do que ninguém – os caminhos mais seguros para se chegar até o cume.
O passeio começa em São Gabriel da Cachoeira, em uma viagem de 88 km de carro até o porto Frente-Sul, no igarapé Yá-Mirim. De lá, os visitantes seguem de barco pelo rio Cauaburis, em um trajeto de seis horas, até um acampamento próximo à aldeia Maturacá, onde pernoitam e passam por orientações e rituais de proteção feitos pelos pajés (anciãos da comunidade e líderes espirituais).
Esses rituais, segundo Goes, são necessários porque, segundo a cultura yanomami, o Yaripo é o local de descanso de espíritos de ancestrais yanomamis, os hekurapë, espíritos auxiliares dos xamãs, que podem interferir na viagem de forasteiros até o topo.
“Cada visitante que passa por aqui recebe uma benção e é protegido pelos pajés antes de prosseguir para a escalada”, conta Goes.
Os indígenas de Maturacá recebem os turistas com orações pela proteção do grupo durante a subida e celebrações culturais como parte do plano de visitação ao Yaripo. FOTO DE MIGUEL TREFAUT E EQUIPE
No dia seguinte, pela manhã, o grupo sai de Maturacá e embarca em direção ao início da subida. O barco sobe o rio Cauaburis por aproximadamente duas horas, até a foz do igarapé Irokae, onde começa a trilha.
O que esperar da expedição ao Pico da Neblina
Nesse trajeto e durante toda a subida, os turistas são acompanhados por pilotos de barco, guias, carregadores e cozinheiras yanomami, que garantem a montagem dos acampamentos e refeições no caminho. Os indígenas de Maturacá passaram por capacitações que envolveram lições de ecoturismo, oficinas de primeiros socorros, manutenção de motores de popa e formação dos guias para uso de um sistema de comunicação por rádio, essencial para a trilha, onde não há sinal de celular.
Aos guias, também fica a tarefa de transmitir aos visitantes histórias de seu povo sobre o Yaripo, assim como palavras e cantos dos yanomami. Eles contam sobre os guardiões da montanha – Yoyoma e Piyawawë – e demais hekurapë que habitam o local: Ruwëriwë, associado ao frio, à escuridão e às nuvens de tempestade; o ser Wariwë, responsável por acidentes envolvendo picadas de cobra; e o Yariporari, ser do vento e da tempestade considerado perigoso, com força assustadora e responsável pelos vendavais constantes que atingem a montanha. É também a entidade que nomeia o pico na língua yanomami.
A subida exige bom preparo físico para os oito dias de caminhada, com grande variação de altitude – de 95 metros na base da trilha até os 2.995 metros no topo. No caminho, há travessias de igarapés, passagem por brejos e, muito provavelmente, momentos de chuviscos, tempestades e, principalmente, neblina.
Outra atração é a biodiversidade do local. O Pico da Neblina é um dos lugares mais biodiversos da Amazônia, com muitas espécies endêmicas, ou seja, que não são encontradas em outras partes da floresta.
Durante a subida, que dura quatro dias, o visitante, com sorte, avistará animais silvestres, encontrará pássaros e plantas exclusivos da região. Um dos animais que podem ser avistados é o lagarto Riolama Gymnophthalmidae. Endêmica do Yaripo, a espécie foi descoberta em 2017 por zoólogos da Universidade de São Paulo (USP) que realizaram uma expedição à região de Maturacá e ao Pico da Neblina.
“O Yaripo é um local geologicamente e ecologicamente antigo, o que significa que uma viagem ao cume do pico é como se fosse uma viagem pela história ambiental da Amazônia”, diz Miguel Trefaut, zoólogo pesquisador do Instituto de Biociências da USP e líder da expedição à época. “Grande parte dos bichos que podem ser encontrados ali são raros ou só podem ser vistos no ecossistema da montanha. No ponto de vista da biodiversidade, é uma jornada sensacional.”
Riolama Gymnophthalmidae, espécie descoberta durante expedição ao Pico da Neblina em 2017. FOTO DE MIGUEL TREFAUT E EQUIPE
No sexto dia da expedição, os turistas fazem o ataque ao cume, em uma caminhada de oito horas ida e volta. A viagem completa tem duração estimada de dez dias, somando subida, descida e o trajeto fluvial entre a trilha e Maturacá.
São realizadas duas expedições ao mês com até dez turistas cada, e a quantidade necessária de guias, cozinheiras e carregadores varia de acordo com o número de visitantes. No total, o grupo não deve ultrapassar 25 pessoas – o limite para acomodar todos bem nos acampamentos, organizar as refeições e manter o controle do grupo durante a trilha.
Ecoturismo indígena pela preservação social e ambiental
Entre os objetivos do plano de visitação, proteger a Urihi (terra-floresta yanomami) é uma das prioridades. Por meio do ecoturismo, os indígenas buscam uma alternativa ao garimpo de ouro para afastar a atividade ilegal das terras e garantir renda entre os yanomami da região.
A ameaça do garimpo no entorno do Yaripo, embora em menor escala do que em comunidades yanomami do estado vizinho de Roraima, é uma preocupação não só pela degradação ambiental, mas também por ser uma das poucas opções de sustento para muitos yanomami.
“Muitos jovens yanomami acabam trabalhando no garimpo por necessidade, por ser a única opção de renda”, diz Marcos Wesley de Oliveira, do ISA.
Esse cenário é melhor explicado em um relatório divulgado pela Hutukara Associação Yanomami em abril deste ano, o qual mostra que, de 2016 a 2020, o garimpo na Terra Yanomami cresceu 3.350%. Só no ano passado, a atividade ilegal avançou 46% na região, a maior devastação da história desde a demarcação e homologação do território em 1992. O relatório também acusa os garimpeiros de cometerem crimes graves na área, como agressões, ameaças, assassinatos e estupros.
Pela circulação de garimpeiros invasores, muitas vezes fortemente armados, os membros das comunidades são restringidos ao livre trânsito na Terra Indígena, “deixando de usufruir de áreas utilizadas para a caça, pesca, roça e da comunicação terrestre e aquática com as comunidades do mesmo conjunto multicomunitário”, cita trecho do relatório. Essa ameaça constante faz com que os yanomami tenham poucas escolhas para manter sua subsistência.
Para Trefaut, a iniciativa é importante para preservar o ambiente e conscientizar sobre as ameaças aos povos yanomamis. “O plano de visitação, do ponto de vista da preocupação ambiental, está muito bem feito. Sem dúvida vai ser um fator de muita ajuda para preservar o ecossistema do Yaripo”, diz Oliveira, que também enxerga no projeto potencial para colaborações científicas. “Com visitas regulares ao local, é possível que mais pesquisadores, fotógrafos e até turistas façam registros de espécies ainda desconhecidas, ou que não são tão estudadas. Creio que será uma ótima contribuição para a ciência.”