O lendário bispo do Xingu, ameaçado de morte e sob escolta policial há seis anos, afirma que o PT traiu os povos da Amazônia e a causa ambiental. Afirma também que Belo Monte causará a destruição do Xingu e o genocídio das etnias indígenas que habitam a região há séculos. Há 47 anos no epicentro da guerra cada vez menos silenciosa e invisível travada na Amazônia, Dom Erwin Kräutler encarna um capítulo da história do Brasil.
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A reportagem e a entrevista são da jornalista, escritora e documentarista Eliane Brum e publicadas pela revista Época, 04-06-2012.
Nesta segunda-feira, um homem grande, de sorriso caloroso e cabelos brancos, embarcou em um avião para o Brasil. Para o Brasil apenas, não. Para a Amazônia. Depois de 40 dias na Áustria, a terra onde nasceu, ele sente falta da geografia que escolheu para ser sua desde o momento em que, ainda jovem e tropeçando no português, descobriu maravilhado que o Reno é “um igarapé comparado ao Xingu”. Dom Erwin suspira de saudades do rio, das gentes, dos cheiros e até do clima da cidade paraense de Altamira, com temperaturas e humores tão intratáveis que só agrada aos mais fortes. Este homem, que circulava livremente por ruas imaculadas na primavera austríaca, onde foi garimpar recursos para projetos sociais na Amazônia, volta agora para sua rotina de prisioneiro. Há seis anos, Dom Erwin Kräutler, bispo do Xingu, não dá um passo no Brasil sem estar sob a escolta dos quatro policiais que se alternam para proteger sua vida.
Perto de completar 73 anos, Dom Erwin, que acolheu e depois enterrou a missionária assassinada Dorothy Stang, vive na mira de pistoleiros. Homens contratados por gente graúda para calar uma voz que há quase meio século eleva o tom na defesa dos mais pobres e dos mais frágeis, dos indígenas, dos ribeirinhos e dos extrativistas da Amazônia. Dom Erwin tem escrito, com rara coerência, um capítulo crucial de uma história pouco contada no Brasil: o papel da Igreja Católica, especialmente a dos religiosos ligados à Teologia da Libertação e às comunidades eclesiais de base, na proteção dos povos da floresta – e da própria Amazônia – a partir da segunda metade do século XX.
A maioria das etnias indígenas e das comunidades amazônicas que conquistaram direitos e terras nas últimas décadas deve parte de sua organização aos setores mais progressistas da Igreja Católica. Assim como parte das lideranças políticas que hoje influenciam os rumos do país surgiu na atuação de base da Igreja. Isso vai muito além da religião – é História. E uma história cujo sentido as alas mais conservadoras da própria Igreja preferem enfraquecer. Neste capítulo, Dom Erwin, capaz de falar tão bem o grego clássico quanto a língua dos Kayapó, é um dos protagonistas mais fascinantes.
E resistente. A cada ano, apesar da idade avançada e das dores na coluna, ele visita 15 paróquias do Xingu. Ao alcançá-las, peregrina pelas comunidades dos cafundós. Dorme no barco, dorme em rede. Acostumou-se tanto à dieta local, que fica feliz por comer peixe no almoço e no jantar, de segunda a segunda. É adorado pelo povo mais pobre – e odiado sem reservas por parte da elite paraense, que o ataca também pela imprensa de Belém do Pará.
Desde a decisão de Lula, e agora de Dilma Rousseff, de arrancar Belo Monte do papel, o quase lendário bispo do Xingu tem feito uma oposição incansável contra a hidrelétrica que provoca controvérsia dentro e fora do Brasil. Por causa dela, tornou-se uma presença incômoda para setores do governo e do PT que um dia apoiou – inclusive com o seu voto. Incômoda, especialmente, porque é difícil destruir a reputação de um bispo que mantém a coerência desde a ditadura militar em uma das regiões mais conflagradas do país, ajudou a escrever os artigos da Constituição de 1988 que garantem os direitos indígenas e não recuou nem mesmo diante da ameaça de perder a própria vida.
Nesta entrevista, Dom Erwin diz o que pensa contra antigos aliados com o mesmo desassombro com que denunciou grileiros e estupradores no passado recente. Acusa o PT de “traidor” – e diz que alguns petistas são “fanáticos religiosos”. Afirma que Lula e Dilma implantaram uma “ditadura civil” ao “desrespeitar os direitos indígenas assegurados na Constituição”. E afirma que Lula passará para a História como “o presidente que destruiu a Amazônia e deu o golpe nos povos indígenas”.
Às vésperas da Rio + 20, o depoimento de Dom Erwin Kräutler abre uma janela para a compreensão da história contemporânea. A entrevista a seguir foi feita na casa do bispo, em Altamira, com os policiais militares que o protegem do lado de fora da porta, mas atentos. Os quatro policiais demonstram uma preocupação que transcende o dever: adoram Dom Erwin, que conhece suas mulheres e filhos e escuta suas aflições de cada dia.
Em três horas de conversa, Dom Erwin não evitou nenhuma pergunta. Vale a pena abrir um espaço para escutar com atenção um homem capaz de apontar as contradições e ampliar a complexidade do momento estratégico vivido pelo Brasil, no qual as escolhas tomadas hoje determinarão o que seremos amanhã.
Eis a entrevista.
O que o senhor faz quando está na Áustria e qual é a sensação de viver sem escolta, sem policiais ao redor?
É necessário que eu passe todos os anos pelo menos um mês na Áustria, com a finalidade de conseguir recursos para manter e sustentar as obras sociais e pastorais do Xingu. Tenho, além disso, muitos convites de universidades e organizações que defendem os Direitos Humanos e o Meio Ambiente. Quando é possível, eu me hospedo na minha casa materna/paterna e vivo, fora dos compromissos, uma vida de “eremita”. Isso me faz um bem enorme. Ando livremente pelos bosques da terra onde nasci. Admiro a natureza, as flores, os campos, as árvores que na primavera se revestem de sua folhagem de tons tão diversos. Levanto antes das 5 horas para poder “ouvir o silêncio” matutino e ver os primeiros raios do sol. É maravilhoso. É uma sensação de liberdade total que faz bem à alma e ao coração.
Como um austríaco escuta pela primeira vez a palavra Xingu e acaba se mudando para o Brasil e fazendo do Xingu a sua casa?
Ouvi a palavra Xingu pela primeira vez aos 4 ou 5 anos, durante a Segunda Guerra Mundial. A minha mãe sempre falava do irmão dela, Dom Eurico Kräutler, na época Padre Eurico, que estava no Brasil desde 1934. Uma vez ele mandou, junto com a carta, algumas fotos. Eu lembro perfeitamente das casas de palha – ele na frente, naquele tempo de batina, com uma criança, um indiozinho, mostrando a câmara com o dedo. Como a gente diz: Olha o passarinho! Foi a primeira foto do Xingu que vi na minha vida.
O que o senhor sentiu?
(rindo) Senti uma profunda simpatia por aquela criança, que era diferente, que estava pintada. Desde então, nós sempre perguntávamos à minha mãe sobre os índios. Meu tio mandava as cartas, que eram lidas em casa pela minha mãe, depois passavam para a minha tia, e então para a minha madrinha, iam passando por todos os parentes. Tínhamos a foto de um índio na parede. Eu lembro até o nome dele: “Patoit”. Significa “braço forte”. Temos a foto dele lá em casa (na Áustria), com a mulher e o filho.
Essa foto ainda existe?
Sem dúvida. No meu quarto, na casa de meus pais, ela foi substituída por uma foto mais recente, de uma índia Araweté com seu neném. Para nós, os Kayapó eram pessoas distantes, diferentes, mas pareciam parentes. Porque quando a gente falava do tio Eurico falava também dos indígenas do Xingu. Meu tio só pôde voltar para a Áustria depois do fim da guerra, em 1948. Eu tinha 9 anos e era coroinha, então eu lembro muito bem quando ele chegou. Meu tio fazia palestras, sabe, com slides. E ele mostrou muito sol nascendo, pôr do sol… Mas meu tio tinha a sua ideia a respeito dos índios, com as quais eu não compartilharia hoje. Eu tive outra visão.
Qual era a ideia dele?
A ideia dele, e é preciso entender que ele era filho do tempo dele, era a de “civilizar”, “apaziguar”, palavras que não me passam pelos lábios. Não é por aí.
É por onde?
São povos diferentes. E nós os respeitamos na sua alteridade. E não apenas os respeitamos, precisamos dar um passo a mais. Nós os amamos. Eu fiz essa experiência. Lembro quando fui para uma aldeia aqui, dos Kayapó, e eu não falava uma palavra em kayapó. Nada. Eu disse: “Nunca mais eu piso nessa aldeia sem saber kayapó”. E aprendi. Não vou dizer que falo do mesmo jeito que eu falo português, mas aprendi. E, na segunda vez em que fui lá, você não imagina. Meu Deus! O sorriso mais largo e mais amigo, mais íntimo, eu diria: “Agora ele é nosso, ele fala a nossa língua”. Eles sabem que a gente se esforça e, através da comunicação por palavras, compreendemos o mundo deles.
Quando o senhor estava em Koblach, sua cidade natal na Áustria, que movimento interno fez com que o senhor atravessasse o oceano e ficasse aqui por quase meio século, já? O que o levou a fazer um movimento tão largo, tão radical?
Eu era um jovem como qualquer outro. Estudei, fiz faculdade de Filosofia, tocava violão, fazia teatro. Tenho uma juventude muito bonita, com muitos amigos e amigas. Depois veio o pessoal de outras províncias, que não falavam a nossa língua, o nosso dialeto. E eram colocados à margem. E isso me doía. Mas por quê? Simplesmente porque são diferentes, porque falam outra língua, são excluídos? Nós começamos, então, na juventude, a criar nossos movimentos e a buscar essa gente que ficava na margem. Nós conseguimos integrá-los. Foi nesse momento, ao me confrontar com a exclusão pela diferença, que surgiu a ideia de ser padre. Estudei Teologia, me ordenei. Era da mesma congregação do meu tio, dos Missionários do Sangue de Cristo. Naquele tempo, meus superiores queriam que eu continuasse os estudos de filologia antiga: grego e latim. Eu gosto disso até hoje. Leio a Bíblia em grego, o Novo Testamento…. Mas, de repente caiu a ficha: “Eu vou para o Xingu”. Quer dizer, a gente não dizia: “Eu vou para o Brasil”. A gente dizia: “Eu vou para o Xingu”.
Por que “eu vou para o Xingu”?
Acho que aí tem também toda a história da criança, que eu nunca esqueci. O Xingu era exatamente onde estão os Kayapó. E não apenas os Kayapó, mas seringueiros, pescadores, e uma cidadezinha miúda, pequenininha, que era Altamira. Altamira em 1950 tinha 1.800 habitantes. E eu então sonhei com isso. E disse para os superiores que queria ir para o Xingu: era 12 de janeiro de 1965. Ordenei-me padre em julho de 1965. Despedi-me de casa no dia 2 de novembro, aniversário do meu pai. Fui para Hamburgo, no norte da Alemanha, e vim com um cargueiro. Eram só dois passageiros, fora a tripulação. Eu nunca tinha visto mar, esse tipo de coisa. Era um rapaz novo, 26 anos. E atravessei o Atlântico.
Quantos dias, naquela época?
Nós saímos no dia 4, à noite, e depois atracamos em Tenerife, nas Ilhas Canárias, no dia 11 de novembro. Passamos lá um dia, zarpamos de novo e chegamos no dia 18. Eram 4h da tarde quando pisei pela primeira vez em terra brasileira, em São Luís do Maranhão, onde fiquei quatro dias, antes de seguir viagem, ainda de navio, para Belém. Lá em São Luís dormi no convento dos franciscanos e comecei a aprender português.
Não sabia nada?
Nada.
O que tinha na sua mala?
Eu não trouxe lembranças da minha terra, não trouxe nada. Uma ou outra foto da família. O que eu trouxe eram coisas que eu queria dar para as crianças daqui. Porque o pessoal de lá me encheu de mil e uma coisas pra trazer. Veio tanta criança aqui nesta casa: “Quem é o padre que trouxe boneca?”. Fiquei feliz da vida. Boneca pra cá e pra lá. Depois surgiu um problema, porque alguém disse: “Mas o senhor deu boneca até para crente, e nós não ganhamos ainda nada”. E eu respondi: “Vou perguntar se era crente ou católico? Para mim se tratava de uma boneca – e boneca bonita!”. De coisas pessoais eu só trouxe os cadernos do tempo da universidade, tanto da faculdade de Filosofia quanto da de Teologia. Tenho até hoje! Fora isso, um crucifixo que ganhei e um cobertor. Até hoje eu tenho esse cobertor. Está na minha cama.
Qual a diferença que o senhor sentiu entre o Xingu mítico, do seu imaginário, e o Xingu real, daquele primeiro olhar?
O Xingu me impressionou de uma maneira que eu nunca tinha sentido. Porque lá na Áustria nós temos o rio Reno, mas é um igarapé, em comparação com isso aqui. Então, na primeira vez que vi, em 21 de dezembro de 1965, a bordo de um avião DC3 da Cruzeiro, vindo de Belém, Nossa Senhora, que maravilha! Eu fiquei tão encantado com essa terra, e até hoje estou. E essa é uma das razões de ter reservas muito grandes quanto à destruição que está pairando sobre o Xingu e sobre todos nós. Eu fiquei tão impressionado, que faltaram palavras. Acho que perdi o fôlego. Não era um chorar… Era uma alegria. Uma mistura de alegria e de se maravilhar por alguma coisa. Você fica olhando e olhando… Você não precisa falar, você assimila, por assim dizer, essa maravilha toda. E fica encantado. Utiliza-se no português a palavra “encantado”. O Xingu encanta.
Por quê?
O Xingu é diferente de todos os outros rios do mundo, ao menos daqueles que eu conheço. Talvez algo mítico, também, por causa dos povos indígenas que há milhares de anos vivem aqui. Então, eu vejo como os índios veem. Os Kayapó não chamam de Xingu, chamam de Bytire. “Tire” significa grande, majestoso. O “by”, segundo a explicação de um velho kayapó, quer dizer algo muito misterioso, inexprimível. E, por isso, sagrado, intocável, inviolável. Eu disse: “Aqui eu vou viver”. Eu nunca pensei em voltar, sabia? Nunca.
O senhor sente que esta é a sua terra?
Eu não vou negar as raízes, claro… O mundo de lá agora é diferente, e eu me sinto um peixe fora d’água. Passo um mês na Áustria, mas depois volto para cá. A minha vida é viver aqui.
No Brasil inteiro, e especialmente no Norte, existe o uso político de um sentimento que pode ser resumido pela seguinte frase: “Os gringos estão invadindo a Amazônia”. O senhor é tratado como um gringo?
Não. Nunca fui. Também o pessoal raramente me pergunta onde eu nasci. Naturalizei-me brasileiro. Tenho passaporte brasileiro, carteira de identidade, título de eleitor, tudo.
O senhor é brasileiro?
Sou.
Um brasileiro que nasceu na Áustria… Eu já vi o senhor dizendo isso.
Sempre digo isso: um brasileiro nascido na Áustria. Não fui mandado para cá. Foi uma decisão minha. Eu me identifiquei com o Xingu, com o Brasil. Claro que não nasci aqui, meus pais e meus antepassados são de outro país. Meus ancestrais já moravam lá em 1400 e pouco. Trata-se de uma família muito tradicional. Mas cada um faz a sua escolha. Quando cheguei aqui, eu sabia que ia ficar. Eu podia ter voltado no dia seguinte, se eu não me agradasse. Tem muito trabalho em qualquer canto do mundo. Mas nem por um segundo isso me passou pela cabeça.
O senhor é uma das vozes mais críticas contra Belo Monte. Por que o senhor não quer uma hidrelétrica no Xingu?
Altamira sofreu o primeiro “choque” com a construção da Transamazônica. Eu me lembro de quando chegou aqui o presidente Médici (Emílio Garrastazu Médici, general que foi presidente do Brasil no período mais violento da ditadura militar, de 1969 a 1974). Ele deu início às obras, no lugar chamado “Pau do Presidente”. Você foi lá ver (o “pau do Presidente”)?
Ainda não…
Não perde nada. Só ficou aquele tronco da castanheira, a placa roubaram… Eliane, você naturalmente sabe que aqui se usa essa expressão “pau do presidente” com certa malícia!
Posso imaginar… O senhor presenciou a derrubada da castanheira?
Sim. Todo o pessoal delirando no palanque… delirando mesmo! Batendo palmas! Gente, derrubando uma árvore daquelas! E dizendo que era o progresso que estava chegando. Cortou-me o coração… Como é que pode? Aplaudir que a rainha das árvores do Pará ou da Amazônia tomba, e com um estrooondo tremendo. Como é possível? Está escrito na placa que roubaram: “O presidente da República dá início à conquista deste gigantesco mundo verde”. E havia uma placa em uma das três colunas feias, bem feias que fizeram: “Depois de XX meses o presidente voltará para inaugurar, dando mais um passo para integrar…”. Era essa a época: “Integrar para não entregar” e “Brasil, ame-o ou deixe-o”… Coisas desse tipo. Eu vi.
Isso tudo o senhor estava assistindo de onde?
No meio do povo que foi lá ver o presidente. Tinha dois bispos, vestidos com trajes episcopais, que pensavam que seriam chamados a subir no palanque: o bispo daqui, que era meu tio, e o bispo de Marabá. Não os chamaram lá para cima porque o de Marabá não era amigo dos militares. Ele tinha denunciado um monte de coisas. Naquele tempo era a guerrilha do Araguaia, então não chamaram os bispos para subir no palanque… Eu pensei: “Bem feito!”. Mas eu não tinha coragem de dar minha opinião, porque era menino recém-chegado. Mas os bispos também achavam que o progresso estava chegando… Altamira era uma cidade esquecida, no meio da mata.
É muito simbólico derrubar uma castanheira, uma árvore gigante, como símbolo da chegada do progresso e do desenvolvimento, não?
Depois se falava em “benefício”. Tem que “beneficiar” a terra para você encaminhar, por exemplo, um crédito bancário. Então tinha que derrubar.
O que era Altamira antes da Transamazônica?
Era uma cidadezinha esquecida. De dia faltava água, de noite faltava luz. Tinha um motor da prefeitura que tinha funcionado pela última vez nos 15 anos da filha do prefeito. Nos anos 60 queriam fazer uma picada para Santarém para ligá-la ao mundo e mataram não sei quantos índios. Depois veio a Transamazônica. Um compadre meu, que trabalhava como telegrafista naquele tempo, disse: “Olha, compadre, agora vem o progresso. Tinha um telegrama de um tal de Incra dizendo que vão construir uma estrada. Estão dizendo que vai chover dinheiro”.
Um discurso muito parecido com o de agora, não? Vai “chover dinheiro”, o progresso vai chegar…
Essa é a ideia: o “progresso” vai desbravar toda essa região. Então, de fato, começou no quilômetro 5, com a derrubada daquela árvore, onde tudo era mato. E hoje você vê tudo descampado. O traçado da Transamazônica já foi feito assim porque se pensou em futuras hidrelétricas, como Belo Monte. Nos anos 70 já fizeram toda a pesquisa. Em 1950, Altamira tinha 1.200 habitantes. Em 1960, 2.800. E depois, acho que de 1965 em diante, uns 4 mil, 5 mil. Mas depois veio o boom… o pessoal veio do Nordeste, primeiro, depois do Sul. Aí Altamira ganhou outras feições. E com a Transamazônica, em 1975, se falava numa possível hidrelétrica, mas era uma coisa muito distante. Nos anos 80, então, a coisa já pegou mais vulto, até que, em fevereiro de 1989, vieram os índios…
O senhor estava presente no I Encontro dos Povos Indígenas do Xingu, em 1989? (Na ocasião, Tuíra, índia kayapó, encostou a lâmina do seu facão no rosto de Antonio Carlos Muniz Lopes, da Eletronorte, para expressar sua indignação contra o projeto de Belo Monte, naquela época chamado de Kararaô. A foto da cena correu o mundo).
Não. Eu estava na Suíça… Os índios vieram falar comigo. Queriam marcar o I Encontro dos Povos Indígenas do Xingu. Então eu encontrei, naquele tempo, não vou dizer o primeiro escalão, mas o segundo escalão do Banco Mundial, em Berna. E me avisaram: o Banco Mundial só vai fornecer o crédito (para a obra) se a cláusula indígena e a cláusula ambiental forem observadas e cumpridas. Isso, para mim, foi o sinal de arquivamento. Pensei: esse perigo já passou. Enquanto eu estava lá, ocorreu o episódio com a Tuíra, aqui. Eu conheço muito bem esse Antonio Carlos Muniz…
Como o senhor o conheceu?
Ele me convidou, quando estive em Brasília, nos anos 90, para o gabinete dele, e me mostrou todas as coisas. Ele queria cativar-me, conquistar-me para o projeto. Fui muito bem tratado, sabia? Mas quando a gente é tratado tão bem, com beijinho etc, é preciso ficar cismado. Quando é assim, tem boi na linha. Não é porque te querem bem, mas eles querem te preparar, querem aproveitar que você está sozinho e te convencer.
Brasília o assusta, nesse sentido?
Sim, me assusta. Meu Deus! Estive duas vezes com o Lula, também, e com outras pessoas. Eu tinha contatos bons, gente boa em Brasília que estava no nosso lado. Agora, ultimamente, estamos num certo isolamento. Porque aquele povo que antigamente lutava conosco, que estava do nosso lado, que defendia a mesma coisa, que lutou pela mesma causa, agora defende o contrário.
Quando o Lula foi eleito, o movimento social da Amazônia tinha certeza de que Belo Monte estava definitivamente sepultada. Como foram seus encontros com o Lula?
A primeira vez foi em 19 de março de 2009. Fui com um advogado do CIMI (Conselho Indigenista Missionário), amigo meu de longa data, e com um assessor político do CIMI, que agora foi conquistado para ser membro do gabinete da presidente. Fiquei com o Lula uns 20 minutos, talvez meia-hora. Apresentei as nossas angústias e as nossas preocupações, e ele foi o primeiro a insistir que houvesse um diálogo construtivo, que se avaliasse os prós e os contras. Eu disse: “Olha, eu queria que o senhor ouvisse o povo”. Ele perguntou: “Que povo?”. Eu disse: “O povo do Xingu, os representantes do povo do Xingu”. Ele disse (Dom Erwin imita a voz e o jeito de Lula): “Manda chamar!”. Acertamos então uma segunda visita. Lembro que, ao final desse primeiro encontro, eu disse: “Lembranças para Marisa, sua esposa”. O Lula ficou até assustado, porque não estava acostumado a receber saudações para sua esposa. Quando alguém se encontra com o presidente, não lembra que ele é casado. Senti o Lula como alguém muito amigo, simpático.
Foi a primeira vez que o senhor o viu?
Não, já tinha visto em campanha.
Como o senhor percebeu o Lula?
Ele era aquele trator, falava pra cá e pra lá. A gente via que ele estava em campanha, que a gente era uma peça lá daquela campanha. Dá a mão, tira foto… Mas, em 2009, foi um encontro… muito amistoso. Eu ainda esperava que ele fosse se convencer de que não era por aí. Até escrevi: “Graças a Deus, Lula entendeu”. E nós marcamos outra audiência, em 22 de julho do mesmo ano. Foi muito interessante. Levamos dois índios, dois ribeirinhos, a Antonia Melo (uma das principais lideranças do Xingu), dois procuradores da República e o professor Célio Bermann (do Instituto de Eletrotécnica e Energia da USP). Mas o Gilberto Carvalho (chefe de gabinete do então presidente Lula, hoje ministro da Secretaria Geral da Presidência da República no governo Dilma) queria que só eu falasse em nome de todos. Do outro lado havia o setor energético do governo, todos os figurões… Nós, de um lado, humiiildes, coitados, nos sentindo como um peixe fora d’água e, do lado de lá, essa gente que mandava e até hoje está mandando… Mas a gente tinha segurança daquilo que nós queríamos. E, quando o Lula chegou, ele sentou-se ao meu lado. Eu disse: “Presidente, o senhor vai ter que ouvir esse povo. Esse povo veio de longe, quer falar com o senhor. Não pode pegar só dois que representem os outros, porque eles vão sair com uma frustração que não tem tamanho!”. O Lula então disse (e Dom Erwin imita o vozeirão do então presidente): “Deixa comigo! Vamos fazer!”. Então, de fato, ele deu a palavra a todos.
O que eles disseram?
O povo falou de sua angústia, de que não podiam deixar a sua terra. Depois, os procuradores da República falaram das inconstitucionalidades do projeto de Belo Monte, de que os índios não tinham sido ouvidos. O Célio Bermann colocou então os pontos técnicos e financeiros que tornavam o projeto inviável. E aí é que eu vi o Lula levando susto. Ele olhou para a turma dele, dizendo: “Vocês vão ter que dar uma resposta imediata para o professor”. Mas esta resposta não veio até hoje.
O senhor acha que o Lula estava sendo sincero ou era teatro político?
Era teatro, jogo político… Depois ele me segurou no braço e disse (imitando a voz): “Dom Erwin, nós não vamos empurrar esse projeto goela abaixo de quem quer que seja. Conte comigo. O diálogo tem que continuar. Segundo: o Brasil tem uma grande dívida com os atingidos por barragens, e essa dívida, até hoje, não foi sanada. Tem muita gente perambulando por aí que não recebeu a indenização, e a vida praticamente foi cortada para eles. Terceiro: Nós não vamos repetir (a hidrelétrica de) Balbina. Balbina é um monumento à insanidade. E quarto: o projeto só vai sair se for vantagem para todos”.
O Lula disse isso?
Disse! Textualmente, sentado ao meu lado, me segurando nesse braço (mostra o braço esquerdo). Eu pensei, bom… o presidente não iria falar isso se não fosse verdade. Mas, as mulheres têm mais sensibilidade, têm mais intuição. A comadre Antonia Melo não quis nem tirar retrato. Os outros todos bateram foto com o Lula. Eu fiquei até estranhando, mas ela sentiu, naquele tempo, que era apenas um show. Engraçado, as mulheres, neste ponto, têm uma intuição que os homens não têm. Eu pensei: “Não, o Lula não vai mentir na minha cara!”. E ainda por cima segurando no meu braço… (Imita novamente a voz de Lula): “Dom Erwiiiin….”.
O senhor imita bem a voz do Lula… O senhor saiu aliviado?
Aliviado não vou dizer, mas muito esperançoso, porque no final ele ainda disse: “O diálogo vai continuar, nós vamos nos encontrar de novo”. E aí, de repente, eu me dei conta de que não houve diálogo nenhum. Porque ele falou, mas não perguntou quais eram as nossas ideias, não perguntou o que nós achávamos, nem como pensávamos que seria possível resolver certos impasses.
Como foi o clima dessa reunião?
A primeira parte da audiência com o Lula foi sem ele. Só com o setor energético, Funai e outras instâncias do governo. Esse pessoal do governo xingou os procuradores da República, dizendo que eles não entendiam nada, que não era do ramo deles, que estavam se metendo em assunto que não dizia respeito a eles. E até foram alteando a voz, viu? Fiquei até assustado, pensando que a educação tinha passado muito longe daqueles senhores. Lembrei-me de que quem grita revela que não tem argumentos para convencer o interlocutor. No fundo, essa turma tinha que admitir que a razão e o bom senso estavam do nosso lado. Assim, optaram por atitudes autoritárias e de prepotência, querendo nos intimidar, dizendo que não entendíamos nada do assunto. Do nosso lado, ninguém perdeu em nenhum momento a compostura. Não respondemos aos gritos. Os berros saíram da goela deles.
Neste exato momento, o Lula entrou “em cena”, perguntando: “Vocês estão vivos?”. Porque era um berreiro, não era diálogo. A entrada do Lula na sala parecia uma ducha de água fria em cima da turma dele. De repente, eles se recompuseram. Achei ridículo! Pareciam meninos briguentos na sala de aula que, quando o professor entra de repente, ficam com medo de algum castigo ou de nota baixa e então se ajeitam. Aí o Lula me cumprimentou efusivamente, como se fôssemos amigos de longa data, “companheiros” de luta desde a primeira hora. E, não nego, me senti bem à vontade e agradeci a ele por ter nos recebido, elogiando esse gesto aberto de busca de “diálogo”. Pois naquele momento acreditei realmente no diálogo.
E não foi?
Só caí na real quando, em outubro do mesmo ano, passei uma semana em Brasília esperando a continuação desse diálogo. A audiência foi adiada de uma manhã para a tarde, de um dia para o outro, até que, finalmente, recebi um telefonema na sexta-feira à noite em que Gilberto Carvalho me pedia desculpas, dizendo que não era mais possível ser recebido pelo presidente, pois ele tinha precisado viajar para a Venezuela. Essa viagem certamente já estava programada no início daquela semana e servia de pretexto para evitar o constrangimento de ser obrigado a me dizer que o presidente e seu staff não estavam mais interessados na continuação do “diálogo”. Em 23 de setembro de 2009 eu tinha escrito uma carta ao Lula, tratando-o ainda de “meu presidente”. Nunca recebi resposta.
O senhor tinha acreditado na promessa de diálogo feita pelo Lula?
Eu acreditei. Havíamos dado um passo importante, porque havíamos chegado até lá. E agora, aquele setor do governo, embora tenha gritado antes, teria que dar resposta por ordem do presidente. Mas nunca houve diálogo. Naquele encontro nós mostramos o que ia acontecer, o absurdo dessa obra em todos os sentidos, inclusive em sua viabilidade financeira. E ninguém nunca nos respondeu nos provando que estávamos errados. O Célio Bermann falou, e eu entreguei para o Lula um resumo da posição do Oswaldo Sevá Filho (professor e pesquisador de Engenharia Mecânica da Unicamp), que não pôde nos acompanhar porque estava doente, assim como a posição de outros grandes professores e pesquisadores dessa área no Brasil. E todos mostravam a inviabilidade de Belo Monte, assim como a destruição que ela vai provocar. Por que esse povo não recebeu uma resposta?
Por quê?
Porque não há resposta. Os argumentos são imbatíveis. Tem que desmontar a opinião das maiores cabeças dessa área no Brasil, tem que ter argumentos fundamentados na realidade, mas o governo não tem. E, se não tem, precisaria assumir: “Nós temos que fazer isso. É uma decisão política, e não técnica”. Se a decisão fosse técnica, Belo Monte jamais seria feita. Por isso, o diálogo foi abortado desde o início. Aquilo que Lula fez era só um show para agradar ao bispo.
No caso de Belo Monte, o governo defende que os índios não serão atingidos. Mas muitos ambientalistas e pesquisadores refutam essa afirmação, mostrando que não é possível barrar um rio sem que isso afete as comunidades que vivem em torno dele. Como o senhor vê essa questão?
Se o projeto de Belo Monte se concretizar, esses povos que moram na Volta Grande do Xingu serão atingidos. O governo nega, porque, para o governo, atingir o povo indígena é só quando se inunda, alaga a aldeia. A inundação, de fato, não vai acontecer. Mas o contrário acontece: corta-se a água. Se você observar o mapa, vai perceber que, nos 100 quilômetros da Volta Grande do Xingu, vai se chegar a um mínimo de água. Tenho absoluta certeza de que não haverá mais condição de pescar e de abastecer esses povos. Depois, será prejudicada a agricultura. E, por fim, eles não terão como se locomover. Ficarão barrados. Um povo submetido a uma vida nessas condições não sobrevive. Ou sobrevive por um tempo, depois acaba. Vão se esfacelar. Talvez se tornem índios citadinos. Perderão a cultura, perderão a língua. Estarão aqui, em algum subúrbio de Altamira. Não vou dizer que deixarão de serem índios, mas já não serão mais indígenas que vivem dentro de seu próprio contexto, com suas organizações e com a sua língua.
É uma cultura que morre, um jeito de estar no mundo que morre, é isso?
Temos que fazer uma distinção: existe a morte física e existe a morte cultural. E aqui no Xingu, por causa de Belo Monte, poderão acontecer as duas coisas. A morte cultural, porque arrancarão deles a possibilidade de sobreviver em determinado espaço que, para eles, é muito significativo, porque é o chão de seus mitos, de seus ritos, é onde enterraram seus antepassados. Se você arranca isso dos indígenas, você corta o cordão umbilical deles com a terra. Precisamos compreender que eles têm outro relacionamento com a terra, diferente do nosso. Para nós, a terra é coisa que se compra e se vende. Para eles, não. Além da morte cultural, é provável que também aconteça a morte física, porque eles não estão preparados para viver na cidade. Os Arara, por exemplo, foram dizimados por doenças depois de serem contatados. Essa história nunca foi bem contada.
O senhor afirma que Belo Monte é só a primeira de muitas barragens, uma forma de vencer a resistência para impor um projeto que é muito maior e que vai destruir o Xingu por completo. Como o senhor tem tanta certeza disso?
Todos os argumentos científicos sérios mostram que essa hidrelétrica não vai funcionar durante o ano todo. No verão, o Xingu baixa muito de nível e não existirá volume de água suficiente para fazer funcionar as turbinas. Portanto, vão investir bilhões e bilhões de reais em uma hidrelétrica que durante meses não funciona. Isso é um absurdo. E o governo sabe perfeitamente que é um absurdo. Então, é lógico que Belo Monte será só a primeira barragem. É preciso fazer tudo para que a população aceite essa primeira barragem, depois de décadas de resistência. Para, então, virem as outras. Porque só com as outras Belo Monte será um bom negócio. A segunda, a terceira e a quarta vão barrar o rio até lá em cima, em São Félix do Xingu. E aí, todas essas áreas que estão nas margens esquerda e direita do Xingu, que são áreas indígenas já homologadas, vão sofrer. E aí, os Assurini, os Araweté, os Paracanã, os Arara, e os Kayapó vão ser atingidos. É por isso que os Kayapó lá de cima, até mesmo os do Parque Nacional do Xingu, estão contra, embora estejam a mil quilômetros de distância. Eles já conhecem essa história. Depois de construir a primeira barragem, a tempestade passa, a resistência diminui – e aí completar a obra fica mais fácil. Esta é a estratégia do Governo. E aí eu afirmo: é o golpe fatal. Vão matar os índios, cultural e fisicamente.
Parte da população brasileira acredita que os índios têm terra demais e há, inclusive, aqueles que acreditam que os indígenas são um entrave para o desenvolvimento. Por que parte dos brasileiros pensa assim?
Bom, primeiro precisamos entender que, para os índios, a terra não é uma mercadoria. Vou contar uma história real para que as pessoas entendam melhor essa relação totalmente diversa que o índio tem com a terra. Um branco mostrou um papel em que estava escrito: “República Federativa do Brasil, Título Definitivo de Terras, deste igarapé até o outro, fazendo frente com o rio Xingu e de fundos 2, 3, 5, 10 quilômetros”. Então, o índio perguntou: “Como você pode, com esse papel, dizer que é dono? Como? É um papel. Você fez a mata? Não. E a caça que está dentro da mata? Não. Você fez o rio e os peixes que estão no rio? Não. Você faz chover? Não. Você faz o sol brilhar? Não. Então, como você pode me mostrar um pedaço de papel e dizer que é dono?”.
São formas de ver o mundo totalmente opostas, né? Só que uma delas tem o poder de impor sua visão de mundo como verdade única…
Essa cultura se choca com a cultura da sociedade majoritária, que trata a terra como mercadoria. E como mercadoria a terra tem de ser aproveitada, porque ela só faz sentido se for exaurida. Então, “aproveita” até arrasar a terra. Enquanto não tiver tirado a última gota de sangue, isto é, enquanto não tiver arrancado o minério e todas as riquezas do solo e do subsolo, o homem forjado nessa mentalidade não estará satisfeito. É claro, portanto, que as pessoas que veem a terra como mercadoria, num sistema de livre mercado, vão achar que o índio tem terra demais. O interessante é que essas mesmas pessoas nunca disseram: “Tal fazendeiro tem terra demais”. Não, isso não. Quando um fazendeiro bota uma placa e diz que a terra é dele – e aqui a grilagem de terra, como se sabe, é enorme, essas mesmas pessoas não reclamam. Mas, quando se faz a demarcação de uma área indígena, todo mundo grita. E, o mais curioso, há cidadãos que de repente aprendem geografia: “Eles têm uma terra do tamanho da Bélgica! Têm uma terra do tamanho de Portugal, uma terra do tamanho da Suíça!”.
O que é terra, para os índios?
Para os índios, terra é vida. E, para o sistema da maioria dos brasileiros, terra é mercadoria. Talvez se consiga ainda fazer com que uns e outros entendam, pelo menos, que, ao demarcarmos as áreas indígenas na Amazônia, nós salvamos um pedaço da Amazônia.
O senhor acredita que parte da Amazônia ainda está preservada por causa desse embate de visões de mundo?
Sim. E as pessoas precisam lembrar que a Amazônia tem uma função reguladora do clima mundial. Quer dizer: se a Amazônia acaba, o gaúcho lá embaixo, o mineiro, o capixaba vão sofrer as consequências. E nós ainda não sabemos qual é o alcance real dessas consequências. Se a temperatura aumentar três ou quatro graus, só para ficar num exemplo, será terrível! A verdade é que as consequências da destruição da Amazônia não cessarão nas fronteiras nem do Norte, nem do Brasil. Assim, os brasileiros de todas as regiões deveriam agradecer que há áreas de preservação indígena, há reservas extrativistas e há parques nacionais. É só porque existem essas reservas que há uma parte da Amazônia ainda preservada. Mas, infelizmente, as pessoas não percebem que a destruição da Amazônia também atingirá a sua vida.
É curioso como as pessoas se sentem a salvo, não?
Pelas informações que recebi, estão planejadas 61 hidrelétricas para o Brasil, a maioria delas aqui na Amazônia. E mesmo a EPE (Empresa de Pesquisa Energética) não nega que serão atingidas diretamente áreas indígenas e também parques nacionais. Falam na maior cara de pau. Então, eu gostaria de saber o que vai sobrar.
A maioria dos setores da sociedade, inclusive o governo, fala em “desenvolvimento sustentável”. Ninguém diz que não quer o desenvolvimento sustentável. Mas, na prática, o discurso que atravessa a sociedade é o de uma oposição entre desenvolvimento e meio ambiente. Por que o senhor acha que essa visão ainda persiste com tanta força?
É um mito. Que desenvolvimento é esse? Quem vai ser beneficiado com esse desenvolvimento? Basta ver hoje a situação em que está Altamira. E a obra está só no começo. Das condicionantes prometidas, nada. De 40 condicionantes colocadas pelo próprio Ibama, e outras 24 da Funai, quase nada. Não tem infraestrutura, nem habitação, nem saúde, nem educação. Para mim, desenvolvimento é dar à população a possibilidade de viver com dignidade. Ou seja: vamos aplicar em saúde, em educação, em transporte, em habitação, em saneamento básico e em segurança. Mas, aqui, desenvolvimento é fazer dinheiro, é garantir energia para as grandes multinacionais e exportar matérias-primas. Vai beneficiar a quem esse desenvolvimento? O pessoal ainda não acordou. E esses grupos, a favor de Belo Monte e dos grandes projetos para a Amazônia, disseminam a falsa ideia de que a gente é contra o desenvolvimento, contra o progresso. Mas nós sempre lutamos pela saúde nessa cidade, pela educação, pelo saneamento básico. Esse desenvolvimento que pregam é para uns poucos, não é para o povo.
A população tem medo de um “apagão”…
Sim. Esses grupos, favoráveis às grandes obras na Amazônia, ficam também operando com o fantasma do blecaute, do apagão. Ficam dizendo: “Olhe, os gaúchos que se cuidem, porque no inverno gaúcho não terá mais chuveiro elétrico, e depois não vão mais poder ver a novela das oito”. Mentira! Essa energia será exportada em forma de lingotes de alumínio. E ela não é nada limpa… E muito menos barata. Nós não temos excelentes universidades, cientistas de primeira classe, tecnologia de ponta? Por que não se investe agora para procurar fontes alternativas de energia? Aqui, nós temos sol das seis da manhã às sete da noite. No sul da Alemanha, por exemplo, não há mais uma casa que não tenha placa solar. E olha que eles têm um inverno comprido. Lá, em dezembro, o sol nasce às 9h, 10h, e às 5h da tarde já está escuro. E nós, aqui, às 6h já assistimos ao sol nascer. Temos sol até às 7h da noite. Por que não aproveitamos essa dádiva divina? E depois existe o litoral… O Brasil tem um litoral enorme, que não tem fim. Por que não aproveita um pedaço, pelo menos, onde não há turismo, para investir mais em energia eólica? E, ainda, grande parte dos linhões de transmissão está obsoleta. Perde-se uma enormidade de energia por causa dessa deterioração. Por que não investir no reparo e no restauro dos linhões de transmissão?
Por que o senhor acha que o governo quer tanto fazer Belo Monte?
Esta é minha grande pergunta. Eu não tenho resposta. Apenas vou adivinhando. Por que o Lula era contra e de repente está a favor? Por que o PT era contra Belo Monte e depois de chegar ao governo passou a defender exatamente aquilo que antes combatia? Por que os deputados que nós elegemos aqui hoje são a favor e não sabem nem por quê? O que há por trás? Por que essa metamorfose camaleônica? Na campanha era contra, como é o caso do deputado Zé Geraldo (PT-PA), que andava aqui embaixo, na beira do rio, dando as mãos e rezando, de camisa branca, participando de místicas. E agora, meu Deus! Ele defende exatamente o contrário: “Belo Monte tem que sair, a gente não pode colocar a Amazônia debaixo de uma redoma”. Ninguém está propondo uma Amazônia intocável. O que nós que nos unimos na posição contra Belo Monte defendemos é que as riquezas da Amazônia sejam usufruídas de uma maneira inteligente – e não de uma maneira burra.
Historicamente, o movimento de resistência à Belo Monte sempre apoiou o Lula. O que aconteceu?
Aqui, a resistência contra Belo Monte se identificou com o PT, ou o PT se identificou com a resistência contra Belo Monte. Isso até o Lula tomar posse. Quando descobrimos que o Lula tinha mudado de ideia, caímos das nuvens. Meu Deus, como é que pode? E então os petistas daqui também mudaram de lado. Começaram, inclusive, a hostilizar as pessoas que ainda defendiam o Xingu contra esse monstro. Há gente que antigamente sentava aqui nesta sala e que hoje não aparece mais, porque sabe que o bispo permanece na sua posição contra Belo Monte. Há gente do PT que parece fanático religioso. Fanático religioso é terrível, né?
Por quê?
Porque não tem discussão, não tem diálogo. Com fanático você nunca vai entabular um diálogo que preste, ele já se julga dono da verdade, tem a sua certeza. Então, o PT diz: “As razões defendidas pelo partido têm que estar acima da própria consciência dos partidários”. E muita gente reza pela cartilha do PT porque acha que aí está tudo resolvido. Na realidade eu não posso, por causa da minha filiação partidária, ter opinião própria, ou opinião divergente. Aqui, quem tinha opinião própria e não quis trair a sua consciência, como Antonia Melo, se desfiliou do partido.
Foi um golpe muito grande essa mudança de posição com relação à Belo Monte?
Foi uma traição, um golpe tremendo. É muito duro você ser traído por pessoas a quem você deu as mãos. Inclusive foram perguntar, à boca pequena: (fala baixinho): “Bispo, em quem vai votar? O senhor não pode falar isso no sermão, mas em quem o senhor vai votar?”. Eu disse: “Eu vou votar no Lula. Afinal de contas, é o partido que nasceu e surgiu das bases, etc. Temos que lutar por outro Brasil, gente”. Tempos depois o povo passou a dizer: “Agora o bispo está engolindo…”.
Está sendo difícil engolir o que o senhor chama de “traição”?
Eu nunca falei em público sobre o meu voto, mas todo mundo sabia que nós queríamos um Brasil diferente, um Brasil justo, fraterno, sem corrupção, um Brasil com ética e com todos esses ideais que nós tínhamos e ainda defendemos. Mas os caciques do PT da primeira hora foram embora. Quem está aí dos antigos? Se afastaram. Notaram que foram traídos também. Eu me sinto traído. Agora dizem: “O bispo era a favor dessa petezada”. E agora eu tenho que engolir os sapos…
O senhor acha que a construção de Belo Monte marcará negativamente a biografia de Lula e de Dilma Rousseff?
Se Belo Monte se concretizar, o Lula será lembrado como aquele que destruiu a Amazônia, e deu o golpe nos povos indígenas. É a expressão mais macabra de seu orgulho: fazer um monumento para si à custa de povos que, através do mesmo monumento, condenou à morte. E, no fundo, no fundo, este monumento irá ajudar mais o Exterior do que o Brasil. O Lula vai entrar para a História como aquele que arrasou o Xingu. Não apenas com o rio, mas também com os povos do Xingu. E eu não gostaria de carregar uma fama como essa nas minhas costas, até morrer – e ainda para além da minha vida neste mundo.
O que o senhor quer dizer com “monumento”?
O Lula quer ter esse monumento no nome dele. O Lula não tem ideia de desenvolvimento. Desenvolvimento para ele é ter mais dinheiro à disposição e exportar, exportar, exportar, aumentar o PIB. Só que essa obra não terá ressonância na melhoria da vida do povo. Pelo contrário.
O senhor acredita, então, que o Lula não entende a Amazônia?
Nunca entendeu. E muito menos entende de índio. Ele nunca se deu ao luxo de se aprofundar nisso. Para a Amazônia, ele só veio em campanha. Mas ele não tem ideia da complexidade da Amazônia e também nunca perguntou… Você não pode comparar o Rio Grande do Sul com o Pará. Quando visito o Sul, me dizem: “Mas onde o senhor mora?”. Eu respondo: “Altamira”. Eles então dizem: “Ah, é, Altamira? Nós também temos uma tia no Recife”. Recife. As pessoas nem sabem direito onde fica o Norte. Confundem com o Nordeste. As culturas aborígenes aqui, as culturas autóctones, são diferentes. E tem que viver aqui para compreender isso. O Lula nunca entendeu – e nunca achou que era preciso entender. E, no final do mandato, ele entrou em delírio.
Delírio?
Delírio. Poder. Ele se deleitava com as cifras, com as estatísticas. Aqui mesmo ele falou lorota.
Lorota?
Disse que o pessoal que é contra Belo Monte são uns “meninos e umas meninas que não compreendem”. Disse que ele também, quando era mais novo, era contra Itaipu, porque diziam, naquele tempo, que ia alagar a Argentina. Ele zombou da dor e das reivindicações legítimas das pessoas de Altamira com ideias e vivências diferentes das dele. Eu disse, ao ouvir o seu discurso: “Meu Deus, e isso na boca do presidente!”.
Desqualificou quem protestava?
Desqualificou. Em 2006, num banquete oferecido pelo então governador do Mato Grosso, Blairo Maggi, ganhador do troféu “motosserra de ouro” por sua contribuição ao desmatamento do país, Lula também havia se deixado levar a uma declaração comprometedora. Identificou os índios, os quilombolas, os ambientalistas e até o Ministério Público como “entraves” para o progresso. Considerou ainda “penduricalhos” os artigos da legislação ambiental, pois estes parâmetros legais estariam travando o desenvolvimento do país. Por isso a ordem é de desconsiderar ou, pelo menos, não dar tanta importância a impactos sociais e ambientais. Caso contrário o país, na opinião de Lula, estaria condenado à estagnação. Pode até ser que o presidente posteriormente tenha se arrependido do que falou de improviso, mas a mídia já havia divulgado a gafe.
Como o senhor vê o discurso do “A Amazônia é nossa!”, que parece servir para tudo, inclusive para destruí-la?
A Amazônia é nossa… (ri) Ninguém nunca duvidou da soberania do Brasil sobre a Amazônia. Quem vai duvidar? Quem vai acreditar em algo como: “Agora vêm uns americanos apoderar-se daqui….” Não faz nenhum sentido. Isso não vai acontecer. Quem vê, em sã consciência, a configuração do mundo de hoje sabe que isso não vai acontecer nunca. Agora, o mesmo Lula e presidentes anteriores que disseram “A Amazônia é nossa” entregaram parte dela para as multinacionais que mandam aqui. De onde vêm essas firmas todas? São todas multinacionais. Têm a sua parte brasileira, sem dúvida. É preciso ter nome brasileiro, mas o capital…
Mas esse discurso xenófobo costuma funcionar, né? Ele transforma um outro hipotético em inimigo maior e tira o foco do que realmente está em jogo… A gente vê isso em toda parte, inclusive com nossos vizinhos…
Sim, é um nacionalismo besta, nós já o conhecemos da História. E em que deu? Nacionalismo é ruim, sempre traz ao povo a aversão contra o que vem de fora. Deteriora todo o relacionamento, porque o recado é: “Nós somos os tais, os outros não são nada!”. Inclusive reclamam disso, às vezes, quando a gente anda lá fora, em outros países latino-americanos. Eu me lembro de um encontro do qual participei e todos tinham de se apresentar. Então eu disse: “Soy el obispo de la circunscripción eclesiástica más grande de Brasil“. O Xingu é a maior prelazia do Brasil e eu achei que era importante dizer, para que entendessem de onde eu vinha. Mas me olharam com certo desdém e disseram: “En Brasil, todo es lo más grande“. Os países latino-americanos têm uma aversão muito forte ao imperialismo brasileiro.
É como se o Brasil fosse “os Estados Unidos da América do Sul”, né? Ouço essa expressão por onde ando…
Eu me calei e não disse mais nada. Então, se nós, dentro do Brasil, criamos esse tipo de xenofobia, precisamos nos dar conta de que isso é do tempo do onça, pertence a uma época histórica ultrapassada. Temos de mudar a nossa cabeça para estarmos à altura desse novo momento histórico. Num mundo chamado globalizado não podemos viver desse jeito. Por que não nos irmanamos realmente? Aqui no Brasil nós gritamos nossa aversão contra o estrangeiro e, quando o brasileiro vai lá fora, ele sente o mesmo na pele.
O senhor viveu na Amazônia o projeto da ditadura militar, a mentalidade do “Brasil Grande”. O senhor encontra semelhanças entre o projeto de desenvolvimento para a Amazônia da ditadura e o projeto de desenvolvimento para a Amazônia dos governos democráticos de Lula e de Dilma?
Sim. Para mim, a única diferença é esta: hoje, temos uma ditadura civil… eleita.
Por que uma ditadura?
Ditadura é quando alguém manda sem respeitar a Constituição: “Quem manda sou eu”. O paradigma é Belo Monte. Ao contrário do que o Lula afirmou, é um projeto imposto. As audiências públicas, previstas em lei, foram meros rituais para inglês ver. Montaram um enorme aparato policial para intimidar quem é contra Belo Monte. Os que serão realmente atingidos pela barragem não tiveram oportunidade de se manifestar. A maioria deles nem conseguiu se fazer presente, porque não mora na cidade em que a tal de audiência aconteceu. Sustento até hoje a convicção de que as licenças concedidas para o início da obra são inconstitucionais. As condicionantes previamente estabelecidas pelo próprio governo através do Ibama, como já falei, não foram cumpridas. O caos em Altamira é a prova mais eloquente de que o governo desrespeitou uma cidade com mais de 100 mil habitantes, tratando-a como o lixo do mundo. Os parâmetros constitucionais que amparam os cidadãos em termos de saúde, educação, habitação, saneamento básico, segurança, transporte simplesmente não foram e não estão sendo respeitados. E o governo faz vistas grossas. Não está nem aí. E ainda há político que, com a maior cara de pau, afirma que se trata do preço a ser pago pelo progresso. Verdade é que nem ele mesmo e nem a sua família o pagam. É o Pará que continua sendo tratado como “colônia”, explorado e aviltado, condenado a pagar, em termos ambientais e de prejuízos para seu povo, um preço exorbitante pelo “progresso” do resto do Brasil.
De que forma os presidentes Lula e Dilma teriam desrespeitado a Constituição?
Os artigos 231 e 232, que na Carta Magna do Brasil tratam dos indígenas, estão sendo desrespeitados. As oitivas indígenas previstas em lei não aconteceram. Podemos inclusive provar que os índios foram enganados. Prometeram-se oitivas a eles e, depois, maquiaram de “oitiva” um simples encontro informal em que os índios foram meros ouvintes e em nenhum momento lhes foi perguntada a sua opinião. Má fé! Enganação! Pouca vergonha! Se o governo toma posições que não se coadunam com a Constituição Federal, então o Brasil, como Estado democrático de Direito, corre sério risco. O governo não está acima da Constituição. Se o governo se comporta de modo inconstitucional, então vivemos novamente numa ditadura.
O Edison Lobão, ministro de Minas e Energia, falava em “forças demoníacas contra as hidrelétricas”. E o senhor já se referiu à Belo Monte como “monstruosidade apocalíptica”. Quando o senhor fala em “monstruosidade apocalíptica”, o senhor está dizendo exatamente o quê?
Demoníacas são as forças que o Lobão emprega para arrasar o Xingu. A destruição não vem de Deus. E o Lobão fala sem conhecer nada daqui. Nunca o vi por aqui. De lá, da altura do Planalto, são decididas as coisas. Aliás, é essa a nossa triste sina aqui na Amazônia. As decisões são sempre tomadas alhures, sem conhecer a nossa realidade, sem perguntar nada a ninguém. O nosso Pará e a Amazônia continuam sendo tratados como província. Antigamente o Brasil era uma “colônia”. A metrópole era Lisboa. Hoje a metrópole pode ser São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre. Nós aqui somos tratados como colônia. Uma colônia é onde a gente vai buscar as coisas. É por isso que a Amazônia é apelidada de “província mineral”, “província madeireira”, “província energética” e “última fronteira agrícola”. O pessoal vem, tira o que tem, e não sente nenhum remorso, ou o dever de pagar a conta. Carajás é o caso mais emblemático: arranca-se o minério, o que sobra é uma paisagem de crateras lunares. Quando a referência é a riqueza natural, se afirma em alto e bom som: “A Amazônia é nossa”. Por outro lado, quando a Amazônia necessita realmente de colaboração efetiva, de solidariedade concreta, tem-se a impressão de que nem pertence ao Brasil, é outro país. São dois discursos conflitantes. “A Amazônia é nossa”, mas na prática ela não é nossa – ou só é nossa quando precisamos dos recursos dela. De resto, está lá longe, que ela mesma se vire.
Por que o senhor acha que essa relação colonial de exploração se perpetua na Amazônia até hoje?
É uma relação histórica. Vale inclusive lembrar que o Pará só aderiu à independência um ano depois do assim chamado “Grito do Ipiranga”. A Amazônia sempre pareceu outro mundo. E esta realidade se perpetuou até os dias de hoje. A Amazônia é “outro Brasil”, é “colônia” para o resto do Brasil, é a “província” prenhe de riquezas naturais para os outros, não para o uso e benefício próprio. Creio que o estado do Pará seja o mais rico em recursos naturais. No entanto, continua um dos mais pobres do Brasil.
O senhor acha que a luta contra Belo Monte é perdida?
Não, não acho. Eu não sou o tipo que pendura as chuteiras logo.
A resistência parece estar diminuindo, agora que as obras já começaram e comunidades inteiras foram retiradas. Qual é a sua percepção?
Parece que a resistência está diminuindo. Mas as aparências enganam. Tem menos palanque, menos passeatas, menos manifestações públicas. Mas tem mais imprensa. Belo Monte, nos meios de comunicação nacional e internacional, continua sendo manchete, até de forma mais intensiva. De onde não se esperava nenhum apoio, surgem hoje vozes bem críticas e questionadoras. Há gente que anos ou até meses atrás defendeu Belo Monte e que hoje se manifesta contra. Logicamente, o caos que se instalou em Altamira ajuda o povo refletir. Foi isso que nós esperávamos? É esse o progresso tão sonhado? É esse o desenvolvimento prometido pelo governo e cantado e decantado em verso e prosa pelos políticos como “salvação do oeste paraense”?
Como é a convivência em Altamira, entre opositores de Belo Monte e o pessoal do Consórcio Norte Energia, que executa obra? Afinal, Altamira é uma cidade não muito grande…
Nós sempre usamos meios pacíficos para expressar e manifestar nossa posição. Quem reage de modo agressivo é o governo e seu Consórcio Norte Energia S.A., que lapida e viola direitos, fere a própria Constituição Federal e chega ao absurdo de interditar a presença de representantes do Movimento Xingu Vivo para Sempre nas proximidades do canteiro de obras. Eu sou e sempre fui contra qualquer emprego de violência. Eu sou pela não violência, mas uma não violência ativa. Vamos usar de todos os meios não violentos para conseguir derrubar essa obra monstruosa. A prova que a violência está do outro lado é que estou há seis anos completos sob proteção policial. Por que teriam decidido me colocar sob a tutela da Polícia militar, se não estivessem com medo de alguma agressão que poderia ser fatal? Quem matou a Irmã Dorothy? Quem matou o Dema (Ademir Alceu Federicci, líder comunitário assassinado em 2001 no Pará)? Quem mandou matar tantos outros na Amazônia? Será que foram os engajados na defesa dos Direitos Humanos e do Meio Ambiente na Amazônia contra as investidas inescrupulosas dos facínoras de paletó e gravata em todos os níveis da política e da economia, das grandes empresas e dos grileiros de plantão?
Como o senhor lida com a necessidade de escolta 24 horas por dia, todos os dias? Imagino que seja bem difícil…
A gente não se acostuma. O relacionamento com os militares é muito bom, eles são muito respeitosos, são discretos. Agora, por exemplo, como você está aqui, eles não vão ficar na porta para ouvir o que você está falando, porque você havia telefonado, e o nosso encontro estava combinado. Mas eles são muito sensíveis quando desconfiam. É uma vida complicada para mim. Ao atravessar a praça para rezar a missa, ou para almoçar, ou para qualquer movimento meu, tenho que levar os policiais comigo. Ao ser convidado para um aniversário, para um batizado, tenho que dizer: “Vão dois ou três policiais comigo”. Se você me convida, vamos supor, para jantar hoje à noite, na beira do cais, comer um peixe, tenho que avisá-la: “Aceito, mas eu vou com dois homens”. Assim, geralmente declino de qualquer convite social.
O senhor não tem mais privacidade…
Não. Desde 29 de junho de 2006, às 22h. Nesta data, neste horário, apareceu o comandante com dois policiais aqui e, desde então, estou sob escolta. Para mim, a vida mudou muito desde então. Proibiram-me tudo. Em vez de andar às 5 horas da manhã na beira do Xingu, é aqui nesse corredor que eu ando: 65 passos para frente, 65 para trás.
E vai ser assim para sempre?
Pelo que eu vejo… Em 26 de janeiro de 2009, o superintendente regional da Polícia Federal no Estado do Pará, Manoel Fernando Abbadi, me recebeu em audiência. Foi muito gentil e compreensivo. Naquela ocasião, ele me aconselhou seriamente a não solicitar a saída do programa de proteção. Ao me desligar do programa, eu me tornaria alvo fácil dos que querem me eliminar e poderiam fazê-lo sem maiores obstáculos, já que viajo muito pelo interior.
Por que o senhor está ameaçado de morte?
Acho que há quatro motivos. O primeiro é a Dorothy (Stang). Esse pessoal que a matou, que mandou matá-la, sabe que tenho as informações. Eles não me veem com bons olhos.
Informações?
Eu sempre tomei partido em favor dela. Disseram que a Dorothy estava armando o povo e não sei mais o quê… Eu, que aceitei essa mulher aqui, sempre a defendi. Tinha falado para ela: “Cuidado, Dorothy”. Alguém até fretou um avião aqui em Altamira para me encontrar em São Félix do Xingu. Pediram que eu tirasse a Dorothy “de circulação” e a mandasse de volta para os Estados Unidos. Fretaram, sim, um avião! Uma hora e meia de voo. Eram 9 horas da manhã. Eu rezava o breviário na casa paroquial, pouco antes de ir para uma comunidade. De repente, bateram na porta, e eu abri: “O que vocês fazem aqui?”. Eram fazendeiros. “Temos que falar urgente com o senhor, fretamos um avião para encontrar o senhor. O senhor vai ter que tirar essa mulher de Altamira”.
E o senhor já disse isso para a polícia?
Polícia? Naquele tempo eu não falei com a polícia. Não falei porque não confiei, mas aguardei ser chamado em juízo para contar o que sei. Isso nunca aconteceu. Não se lembraram de que fui eu que a admiti em 1982 na prelazia do Xingu e sugeri a ela que fosse para a Transamazônica-Leste, para a área que hoje corresponde ao município de Anapu. Em 15 de fevereiro de 2005 enterrei a Dorothy. Enterrei. Você não imagina o que passa no coração de uma pessoa quando está diante de alguém que durante tantos e tantos anos trabalhou e que deu o melhor que podia dar. Que pediu para mim para trabalhar entre os pobres mais pobres. E eu disse: “Mulher, tu não vais aguentar isso. Tu vens lá dos Estados Unidos, com conforto e tudo, tu não vais aguentar”. E ela: “Mas me deixe”. Deixei, e ela ficou até o dia em que foi assassinada. De repente, no aeroporto de Belém, quando estou voltando para cá, recebo um telefonema: “Mataram a Dorothy”. E aí foi aquela confusão toda, e finalmente a enterrei, lá em Anapu.
O que o senhor sentiu?
É uma experiência terrível! Terrível! Impossível de descrever. Vieram senadores, deputados, representante do Lula, vieram tantos políticos para o enterro. Ficamos lá, diante do caixão, bandeira brasileira por cima do caixão…. Eu posso lhe dar todos as homilias que eu fiz nos aniversários de morte da Dorothy. A cada ano que passa celebramos a morte dela, e eu faço um homilia especial. Mas o que eu senti lá naquele momento, diante do caixão, não tenho palavras para expressar, não há palavras para mim. (Faz um longo silêncio). Mataram a Dorothy. Não morreu de morte morrida, como se diz, mas de morte matada. E por quê? Porque se colocou do lado de pobres coitados que não têm onde cair morto. E o fato de ela se colocar ao lado dos pobres coitados fez com que a ganância e a ambição desses insaciáveis fosse colocada em xeque.
O que mudou depois da morte dela?
É até constrangedor para mim responder a esta pergunta. Houve avanços, sim, na gestão e na administração dos PDS (Projetos de Desenvolvimento Sustentável). O povo simples até hoje se sente respaldado pela morte da Irmã na luta pelos seus direitos à terra e à sobrevivência naquela terra. A Romaria da Terra, que se realiza em Anapu todos os anos, no mês de julho, é prova de que o povo daquela área rural continua firme e decidido na defesa do que é dele. Mas há o outro lado, que é muito triste. Por isso digo que é constrangedor responder. Há gente que hoje ocupa cargos políticos e melhorou de condições de vida que antes andava de braços dados com a Irmã Dorothy e conosco. Hoje está do outro lado e defende o que antes condenou. Chamo esse tipo de gente de traidor, como também chamo o partido que incorpora hoje essas pessoas de traidor. Venderam a mãe, traíram os ideais, perderam a ética.
E quais foram as outras razões, além da morte da Irmã Dorothy, para a sua escolta permanente?
A segunda razão para a proteção é que eu sou presidente do CIMI (Conselho Indigenista Missionário) e me empenho em favor dos povos indígenas. Sempre lutei ao lado deles. Sei que a Igreja cometeu muitos erros ao longo da sua história, mas não adianta lamentar o passado e condenar o que aconteceu. O importante é fazer diferente. Como o nosso papel foi fundamental na inserção dos direitos indígenas na Constituição Brasileira, foi neste contexto que eu sofri um acidente em 1987.
Um acidente ou uma tentativa de homicídio?
Até hoje nunca investigaram. Eu fiquei seis semanas no hospital. Quebrei a cara, literalmente. Mas me consertaram. Um padre morreu, com apenas 31 anos. Os primeiros dias foram terríveis. Eu aprendi o que era dor no hospital, sem poder dormir. A noite não passa, e você começa a avaliar também a sua vida. Pensei muito na família do padre que morreu, único filho homem daqueles pais. Foi terrível.
Como foi esse acidente?
Em agosto de 1987, durante cinco dias, um dos jornais de maior circulação no país publicou matérias horríveis contra o CIMI. Acusaram-nos de tudo. E eu era presidente do CIMI. Foi constituída uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito. Você ouviu falar em Márcio Thomaz Bastos, né? Naquele tempo ele era presidente da OAB. Encontrei-me com ele na sede da CNBB. Dom Luciano Mendes era o presidente da CNBB e meu grande amigo, defensor intransigente dos povos indígenas e de seus direitos. Considero-o um santo! Pois bem, Márcio Thomaz Bastos me disse: “Dom Erwin, não se preocupe. Essas acusações não tem nenhum fundamento, são grosseiras e de baixo nível. Vamos elaborar um dossiê completo e responder a cada calúnia”. Os advogados do CIMI me pediram que eu não saísse de Altamira, ou pelo menos que não fosse distante. Brasil Novo fica a cerca de 45 quilômetros de distância. E as comunidades da Transamazônica estavam reunidas lá para exigir do governo o conserto das estradas. O inverno, período das chuvas, estava chegando, e as estradas estavam intrafegáveis. Não tinha acesso para hospital, para médico e até uma dor de dente podia ser fatal. Eu então fui me solidarizar com esse povo no dia 15 de outubro de 1987. Rezamos missa, cantamos. E aí me perguntaram se eu não poderia voltar no outro dia, porque seria o encerramento da manifestação deles. Mas caíram na besteira de avisar pelo alto-falante: “Olha, nosso bispo vai voltar amanhã, e às 3h da tarde vamos celebrar a missa. Depois a gente encerra a nossa manifestação lendo a carta de nossas reivindicações”. Aí eu fui lá. Exatamente no meio do caminho, o acidente aconteceu. No topo da ladeira, eu vi um carro de cor clara. E pensei que esse carro viesse ao meu encontro. Mas ele não veio até hoje. Dizem que estava lá apenas para dar o sinal. Bem no topo da ladeira, que abre para uma reta, veio um caminhão e abalroou o nosso Gol. Mesmo gravemente ferido, eu não perdi a consciência em nenhum momento e vi ainda dois homens descerem do caminhão e empreenderem a fuga. Bati no ombro do padre ao meu lado e chamei o seu nome. Não respondeu mais. Estava morto.
Foi uma tentativa de homicídio?
Era o que se dizia. Mas até hoje não foi feita nenhuma investigação. O motorista desapareceu. No carro que estava lá no topo da ladeira para dar o sinal de que estávamos vindo estava o delegado de Brasil Novo. Ele foi morto poucos meses depois, quando assistia à televisão, na sua casa. Queima de arquivo? Não sei. Só sei que eu fiquei fora de combate e até hoje não fui chamado à Brasília para depor e tomar posição frente às calúnias e difamações criminosas. O processo foi arquivado. Um desconhecido foi ver o padre falecido no necrotério do hospital em que me internaram para os primeiros socorros. Afastou o lençol da cabeça do falecido e declarou: “Foi o errado que morreu!”. Coisa macabra! Até hoje há pessoas que não admitem o meu trabalho junto aos índios. E xingam: “Esse bispo não tem o que fazer, fica defendendo esses caboclos”. A defesa dos índios, então, é a segunda razão para que minha vida seja protegida. A terceira razão é Belo Monte. No jornal O Liberal estava escrito: “Esse religioso que está em Altamira tem que ser eliminado”.
Mas quem disse isso?
Em 2006, empresários e políticos declararam guerra contra o bispo do Xingu e os movimentos sociais. Gritaram do alto de seus palanques: “Vamos para a guerra!“. E prometeram “descer o cacete“, numa explícita incitação à violência. Alicerçaram essa sórdida investida em um artigo publicado na página 11 do jornal “O Liberal”, de Belém do Pará, de 5 de junho de 2006. O artigo era assinado pelo economista Armando Soares e intitulado: “Reagir é a palavra de ordem”. Até a própria CNBB moveu um processo. Então, entre outras coisas, sempre gritavam: “Enquanto esse bispo existir, Belo Monte não vai sair”. Uns meses atrás, um cara ainda gritou na frente de uma funcionária nossa: “Mataram a Dorothy, que não tinha nada a ver. Quem tinha de estar morto era esse bispo”. É com toda essa hostilidade que alguns me tratam. É uma minoria, eu diria até insignificante, mas muito barulhenta. Uma máfia. O povo não está contra o bispo, disso tenho certeza. Pelo contrário, nunca recebi tanta declaração de amor como a partir desses episódios. Na igreja, botaram faixas: “Nós te amamos”. Uma mulher veio ao altar, pegou o microfone, chorou e disse: “Dom Erwin, eu sei o que o senhor está passando. Mas, olhe, não entregue os pontos, pelo amor de Deus. Nós estamos ao seu lado! Nós te amamos…”. E a quarta e última razão, que pode até ser a gota d’água, o que fez a coisa transbordar, foram os abusos sexuais de meninas. Outro capítulo terrível que vivi. Nós já lutamos naquele tempo dos emasculados (uma série de meninos castrados e assassinados na região de Altamira), não sei se já ouviu falar…
Sim.
Aconteceu de 1989 a 1993. A prelazia assumiu a defesa dessas famílias e até hoje nós movemos os processos. Ninguém fez nada, até que a prelazia assumiu a causa. E fomos gritar pelo Brasil e pelo mundo afora. E, de repente, em março de 2006, vieram as mães e as professoras dizendo: “Bispo, a coisa está ruim mesmo. Tem uns absurdos acontecendo aqui. O pessoal foi na delegacia dar parte, mas chamaram as nossas filhas de ‘putinhas’”. Pegavam as meninas aqui no colégio, na sexta-feira à tarde. Meninas de 12, 13 anos, bonitinhas, em um carrão, dizendo: “Vamos dar uma volta!”. Levaram-nas para uma chácara e fizeram sexo com elas. Rolou álcool e drogas. Verdadeiras orgias. E, como se isso não bastasse, filmaram tudo. Podia pegar um DVD aqui, em qualquer canto, com as mocinhas do colégio daquele jeito. Aí vieram falar comigo. Aí assumi essa causa. Fiz logo uma carta para o secretário Paulo Vannuchi (secretário nacional de Direitos Humanos no governo Lula), e depois para o ministro da Justiça, para o secretário de Estado de Segurança Pública, e para tudo quanto era gente grande. E, de fato, houve uma repercussão. Mandaram uma delegada, e ela me pediu que falasse o que sabia. Convidou-me para um encontro na Delegacia da Mulher. Aí contei tudo. Mas disse: “Olhe, a única coisa que não vou lhe dizer são os nomes, porque as pessoas que me confidenciaram isso podem correr riscos”. Ela concordou. Então assinei o depoimento. E quando eu saí daquele gabinete já vi um daqueles caras sentado. Ele me reconheceu, e eu também o reconheci. E aí logo correu a notícia pelas ruas da cidade de que o bispo tinha denunciado aquela quadrilha. Depois os canais de TV vieram entrevistar-me e eu, naturalmente, não tive mais papas na língua. Na hora da entrevista eu disse, diante da televisão: “Esses caras são todos uns monstros, que têm de ser presos e trancafiados. Eles não merecem viver no meio da sociedade!”. Aí houve uma virulenta, uma forte campanha contra mim, inclusive com faixas.
Como o senhor lida com a impotência, no sentido de que, apesar de todos os seus esforços, são muitas as derrotas e, como o senhor contou, muitas as traições?
Precisamos entender que nem tudo é derrota ou fracasso. Se eu comparar a época de 1965 e o tempo atual, vejo que o povo também se tornou mais maduro. O povo não engole mais qualquer sapo. Antigamente, o político vinha aqui, comprava uma grade de cachaça, embriagava todo mundo, mandava matar um porco e saía eleito. Hoje, não. O pessoal simples do povo ganhou maturidade política. E nós formamos as comunidades desde a construção da Transamazônica, lideranças que estão na frente até hoje. Quando vejo, também, os direitos indígenas na Constituição, os artigos 231 e 232, sei que fiz a minha parte. Eu não posso dizer que sou um frustrado, de jeito nenhum.
Me chama atenção o número de mulheres à frente da luta contra Belo Monte. Fora um ou outro homem, são as mulheres que estão liderando a resistência. Como o senhor vê esse fenômeno?
Para mim se trata de uma predisposição psicológica que as mulheres tem. Os homens são imediatistas. A gente escuta isso: “Vai ter dinheiro na praça!”. Digo até que os homens são ingênuos. Havia comerciante que pensou que iria “enricar” por conta de Belo Monte. Mas uns já começaram a ficar com o pé atrás, porque estão notando que o dinheiro não chegou até agora. Mas a mulher está ligada, pelo seu ser, por seu coração e por sua psique à geração que vem. A mulher coloca gente no mundo, dá à luz, e está quase que instintivamente preocupada com o futuro da prole. Essa tese se sustenta pela antropologia e pela psicologia. Eu tenho percebido nesses anos todos que as mulheres sempre têm muito mais visão para o futuro porque se trata do filho, da filha, do neto, da neta, cujas vidas estão em jogo. E o homem pensa no dinheiro, no imediato. Não digo todos os homens, mas uma grande parte. Políticos também. Políticos falam na salvação e redenção do oeste do Pará. Com raras exceções não têm visão que ultrapassa a ambição de ganhar votos e manter-se no cargo. E mais uma vez eu volto para o índio. Em 2007, no final de uma reunião, um índio subiu na carroceria do caminhão, pegou o microfone e disse: “Olhem para o Xingu e pensem o que será de nossas crianças. Nós não vamos permitir que a cultura dos nossos antepassados vá para o fundo do rio”. Ele fez a ponte entre o futuro e o passado.
Mas há notícias de que a maior parte das etnias indígenas abriu mão da resistência em troca de “benefícios”, de cestas básicas a voadeiras e televisões. Qual é a sua percepção?
Há uma nova maneira de acabar com os povos indígenas, o “auricídio”, além do genocídio e do etnocídio. Mata-se a cultura e a organização comunitária indígena com o dinheiro. E esta agressão talvez seja pior e mais sutil e desavergonhada, pois mata a cultura e as organizações sociais dos povos indígenas sob a aparência de solidariedade – e sob o manto da indenização para mitigar impactos e efeitos negativos de Belo Monte. Nunca digo que o índio está a favor de Belo Monte. Depois de viver séculos à margem da sociedade, passando necessidades e rejeitado pela sociedade majoritária, de repente está na berlinda e é brindado com todo o tipo de presente e benefício. Quem vai aconselhá-lo a não receber tais benefícios? Só que atrás desses presentes existe um sistema, uma estratégia de quebrar a resistência dos povos indígenas.
Quando o senhor fala da liderança das mulheres, na luta contra Belo Monte, atribui sua motivação à preocupação com as gerações futuras. Como o senhor enquadraria a presidente Dilma Rousseff nessa visão?
É, a Dilma, não sei o que dizer…
Ela é a primeira mulher na presidência do país…
Eu gosto de uma mulher na presidência, mas eu pensei que, como mulher, ela ficaria mais sensível à nossa situação. Mas foi a Dilma quem pariu o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento). Então, politicamente, ela nunca vai se afastar disso. A gente pode fazer a manifestação que fizer. Mas ela corta qualquer diálogo, já na raiz. Belo Monte não é tema para discutir. Ela é muito dura, intransigente, não aceita opinião divergente. Parece estar obcecada pela ideia de ser a construtora da terceira maior hidrelétrica do mundo e, talvez, ser a presidente que fará funcionar as primeiras turbinas. Meio ambiente, índio, ribeirinho, povo de Altamira, para a Dilma nada disso importa. Construir Belo Monte não foi uma decisão técnica, mas sim política, tomada contra as advertências de cientistas e professores de nossas melhores universidades. A história da Amazônia, do Brasil e da Terra julgarão logo mais o Lula e a Dilma, de modo muito severo, como depredadores inescrupulosos e causadores de impactos que alteraram irreversivelmente o clima do planeta. Todos nós sabemos da função reguladora do clima que a Amazônia exerce. Belo Monte surtirá um efeito dominó. Com Belo Monte se dá luz verde a dezenas de outras hidrelétricas já projetadas para a Amazônia. Belo Monte é o punhal empunhado por Lula e Dilma et caterva para ferir mortalmente o coração da Amazônia.
Como é o seu Xingu hoje? O senhor teve o Xingu mítico da sua infância e depois o Xingu de quando chegou aqui… Mas como é o Xingu de quem está com quase 73 anos de idade e 47 anos de Xingu?
Para mim, o Xingu simboliza a resistência desse povo e dos povos que estão aqui. Antigamente nem sonhei que precisava resistir, era óbvio. Mas, hoje, o Xingu conta a história dos povos daqui e também dos massacres dos séculos passados. E massacres que não estão tão distantes assim, no tempo, quando arrasaram aldeias inteiras. O Xingu tem história de sangue derramado, mas hoje tem também a história da resistência de um povo. Por isso a gente fala do Xingu Vivo para Sempre (movimento contra Belo Monte que reúne várias organizações sociais). Porque não podemos acreditar que será dado o ultimato para o Xingu, que esse rio grandioso vai virar simplesmente uma cloaca.
Qual é o tamanho dessa perda, para o senhor?
Para mim é sempre o último pedaço do paraíso que Deus criou. Esse impacto… Não posso concordar com isso. Não é por sentimentalismo. Mas o Xingu não é só o rio, a água, as praias, é também os povos daqui, que viviam desde tempos que se perdem na História, e depois os ribeirinhos que vieram nos séculos 18, 19, início do século 20. E depois os imigrantes que também vieram nos anos 70. Eles hoje já se identificaram com o Xingu, já pertencem ao Xingu. Têm olhos azuis e cabelo loiro, mas são daqui. Esse povo todo, misturado, para mim é o Xingu.
O senhor lutou tantas décadas contra Belo Monte. O senhor acha que há alguma chance de vencer essa luta, com a construção já em andamento e com tanta gente desistindo dela? Qual é o cenário hoje e quais são as suas expectativas?
Posso ser considerado ingênuo, mas eu ainda não acredito que estejamos na “casa do sem jeito”. Tenho até a sensação de que o próprio rio Xingu não vai ficar “quieto” enquanto querem matá-lo. Os geólogos e gente que entende do assunto falam no Xingu como rio que ainda está “in statu fieri”. Quer dizer: ainda não está pronto, ainda se constitui, se constrói, se mexe, se impõe. O Xingu é um rio “vivo”. Não confio, em absoluto, nos estudos dos que defendem Belo Monte. Os estudos foram feitos simplesmente para corroborar uma decisão política já tomada – e estudos desse tipo para mim carecem de seriedade. O Xingu é enigmático e imprevisível em sua maneira de reagir. Mas penso também que os homens e mulheres que até agora defenderam Belo Monte um dia vão cair na real. Espero apenas que, quando caiam na real, o estrago já não seja total.
O Brasil vai sediar, nos próximos dias, a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio + 20, duas décadas depois da Rio 92. O senhor tem alguma esperança nessa conferência?
Sim, tenho esperança. Não tanto nas discussões oficiais, mas sim naquilo que acontecerá na margem ou ao redor da Rio + 20. Eu sei que gente de toda parte vai aproveitar os espaços e não vai se calar. E também o Xingu e Belo Monte e a Amazônia serão temas discutidos por pessoas de ponta, tanto em nível do Brasil como do mundo todo. E tem mais. Enquanto acontece a Rio + 20, no Xingu acontecerá a Xingu + 23, lembrando nossa luta contra Belo Monte, que já dura 23 anos e seguramente não será uma luta perdida.