Plantation na Era Digital

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Marcio Pochmann

03/11/2021

Em vez de um projeto nacional, sintonizado às novas cadeias globais de produção, neoliberalismo ressuscita o atraso do Brasil Colônia. No lugar de indústrias e geração de tecnologia, queimadas, assassinatos e reprimarização são a tônica.

A tomada de Constantinopla pelos Turcos em 1453, ao interromper as antigas rotas da seda pelo Mediterrâneo, abriu novo caminho para as grandes navegações que nos séculos 15 a 17 reconectaram a Eurásia pelo oceano Atlântico. Por força disso que o continente americano foi “descoberto”, integrado à Europa pelo Sistema Colonial Mercantil.

Plantation foi a denominação adotada para se referir ao sentido da colonização europeia imposta pelo processo de exploração no interior do continente americano. Ancorado no uso do trabalho escravo, a produção e a exportação de commodities tropicais da época ganharam escala externa assentada em latifúndios monocultores exclusiva para a metrópole.

Uma espécie de cadeia global de valor dos produtos primários se constituiu na forma de plantation, integrando três grandes continentes, pelo menos. Enquanto a África fornecia a mão de obra escrava trazida pelo tráfico negreiro, inicialmente por navios da Europa, a América se especializava na produção em latifúndios de monoculturas extrativas para atender ao mercado organizado pelo colonialismo europeu.

A partir do século 19, com a substituição do sistema colonial mercantil pelo novo funcionamento da economia mundo centrado no Reino Unido, a antiga forma plantation foi integrada ao capitalismo. Com isso, o movimento geral de difusão do mercado de trabalho assalariado no continente americano que, ao suceder o uso do trabalho escravo, concedeu espaço para a incorporação da mão de obra sobrante da Europa através da massificação do movimento migratório em direção ao novo mundo.

Assim, o estoque da força de trabalho herdada do escravismo terminou sendo deslocada das oportunidades de participar do núcleo orgânico de produção e emprego assalariado voltado à exportação, ocupada, muitas vezes, por mão de obra preferencialmente imigrante. O caso do Brasil é inegável, com a segunda fase do plantation atendendo ao sistema centro-periferia inglês, exportador de bens manufaturados em troca da importação de commodities tropicais da época.

A decadência do Reino Unido a partir da primeira Guerra Mundial (1914-1918) explicitou a desorganização da economia mundo capitalista. Constrangida pelas disputas de vida ou morte entre os Estados Unidos e Alemanha, as duas principais potências protagonizadoras da segunda Revolução Industrial e Tecnológica, o continente americano conseguiu se afastar do sistema plantation, em vários países.

O Brasil, entre outras nações latino-americanas, buscou conduzir a sua economia em direção à sociedade urbana e industrial, centrada na produção e emprego de sua mão de obra nacional, o que permitiu integrar e fortalecer o mercado interno. Da saída progressista da grande Depressão de 1929 ao ingresso passivo e subordinado na globalização em 1990, o país mudou a sua inserção na Divisão Internacional do Trabalho, passando do comércio externo centrado em produtos primários para produtor e exportador de bens manufaturados.

Com a onda regressiva trazida pelo neoliberalismo, os avanços alcançados no passado do projeto nacional desenvolvimentista, transformam-se rapidamente em memória e peças de museu. A presença do Brasil nas atuais cadeias globais de valor da Era Digital denuncia o retrocesso percebido pela volta do sistema plantation.

Em sua terceira fase, a organização da produção e organização do trabalho na forma plantation que se estende na terceira década do século 21 traz à tona um futuro em que o Brasil tem um longo passado a conviver. O arcaico enquanto projeto do governo Bolsonaro se expressa no fortalecimento do racismo, machismo, assassinato de indígenas e líderes populares, queimadas e devastação ambiental.

Nada mais atual do que a tragédia do passado sendo revelada novamente pelo presente. Em plena modernidade trazida pela era Digital, o Brasil retoma nova fase do sistema plantation pela continuidade do receituário neoliberal.

MARCIO POCHMANN

Economista, pesquisador e político brasileiro. Professor titular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi presidente da Fundação Perseu Abramo de 2012 a 2020, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, entre 2007 e 2012, e secretário municipal de São Paulo de 2001 a 2004. Concorreu duas vezes a prefeitura de Campinas-SP (2012 e 2016). Publicou dezenas de livros sobre Economia, sendo agraciado três vezes com o Prêmio Jabuti.