O colonialismo europeu na África está vivo

Mapa com os espaços fatiados no século XIX pelos impérios colonialistas europeus.

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30 de julho de 2021

STELIOS MICHALOPOULOSELIAS PAPAIOANNOU

Ao saquear os recursos da África e dividi-los em estados artificiais, as potências coloniais da Europa criaram ciclos viciosos de violência, pobreza e autoritarismo que continuam até hoje. Mas superar esse legado exigirá muito mais do que derrubar estátuas em Bristol.

PROVIDENCE-Rhode Island/LONDRES-Reino Unido – No ano passado, enquanto o movimento Black Lives Matter se intensificava nos Estados Unidos após o assassinato de George Floyd pelo policial de Minneapolis, Derek Chauvin, a Europa enfrentava suas próprias batalhas pela justiça racial. E, como nos Estados Unidos, os símbolos e monumentos públicos estavam no centro da briga.

Em Bristol, os manifestantes derrubaram (e jogaram no porto) uma estátua de Edward Colston, um parlamentar do século XVII cuja companhia transportou mais de 80.000 escravos da África Ocidental para as Américas. Em Oxford, os estudantes exigiram (não pela primeira vez) que uma estátua de Cecil Rhodes – a personificação da extração brutal de riquezas africanas pelo imperialismo europeu – fosse removida da fachada do Oriel College.

Enquanto isso, na Bélgica, os manifestantes forçaram a remoção das estátuas do rei Leopoldo II, que governou o Congo impiedosamente como seu feudo particular, até que as imagens de suas atrocidades provocassem protestos e o forçassem a ceder o controle do território, que se tornou uma colônia belga. E na França, ativistas atacaram a estátua de Jean-Baptiste Colbert, o autor do Code Noir que institucionalizou a escravidão e o trabalho forçado nas colônias francesas.

Claro, remover estátuas não resolve muito em si. Mas isso não significa que removê-los é sem justificativa. Dezenas de trabalhos empíricos recentes, narrativas e estudos de caso que revisamos em “Legados históricos e desenvolvimento africano” sugerem que o legado do comércio de escravos e do colonialismo ainda está muito vivo. Parafraseando William Faulkner, o passado europeu na África nunca está morto. Não é nem passado. E continua a moldar o continente.

(Nota da Tradução: nada mais adequado do que o ditado Yorubá onde diz que: Exú matou um pássaro ontem pela pedra que jogou hoje. A doença ‘colonialose‘ que grassou do século XV em diante, tendo seu ponto mais dramático no final do século XIX, sobre o continente africano ainda impede que todo o povo do continente ‘respire’, esteja onde estiver, como todos seus descendentes, escravizdos pelo mundo! Até quando?).

TROCAS DE ESCRAVOS

O envolvimento da Europa na África Subsaariana precedeu em muito a Scramble for Africa (nt.: tradução livre: Luta pela África ou Esquartejamento da África ou mesmo Estupro da África) no final do século XIX e início do século XX, quando o continente foi dividido arbitrariamente entre as potências coloniais. Pouco depois da “descoberta” das Américas por Cristóvão Colombo, os europeus estabeleceram o comércio transatlântico de escravos. Nos séculos seguintes, pelo menos 12 milhões de africanos foram capturados e escravizados – normalmente por outros africanos – e depois vendidos aos europeus nos portos da África Ocidental, onde foram transportados em condições brutais para as plantações de açúcar e algodão do Caribe, Brasil, e o sul dos EUA. Enquanto isso, outros oito milhões de africanos foram destinados ao comércio de escravos transsaariano e da África Oriental, que fornecia mão-de-obra para o norte da África, o Oriente Médio e as ilhas açucareiras de Reunião e Maurício.

[Nota da tradução: vale ver como era representado o Esquartejamento da África:

Edward Linley Sambourne, cartunista inglês fazendo uma alusão ao Colosso de Rodes, uma das maravilhas do mundo antigo, aqui representando Cecil Rhodes, grande ‘invasor’ da África. Daí o antigo nome dos hoje Zimbawe e Zâmbia antes serem chamados de Rodésia do Sul e do Norte.

Até que ponto, e de que maneiras, esses desenvolvimentos entre os séculos XV e XVIII ainda são importantes? Uma resposta vem de Nathan Nunn da Universidade de Harvard, que combinou dados de remessas sobre afiliações étnicas de escravos com mapas antropológicos delineando pátrias ancestrais. Este trabalho mostra que as áreas mais afetadas pelo tráfico de escravos – como a atual Angola e a Nigéria – são em média mais pobres do que aquelas que foram protegidas por terrenos acidentados ou afastamento da costa (como no caso de Botsuana) .

Estudos subsequentes descobriram mecanismos intrigantes para explicar esse padrão. Por exemplo, ao visar desproporcionalmente os homens, o comércio de escravos afetou a dinâmica da população. Além de reforçar a poligamia e estimular a violência de gênero, as mudanças na proporção de sexos levaram a um subinvestimento em educação. Até hoje, as taxas de realização educacional parecem mais baixas para grupos étnicos que foram mais fortemente afetados pelo comércio de escravos no passado.

Além disso, uma história de escravidão anda de mãos dadas com desconfiança social e normas e atitudes autoritárias, provavelmente decorrentes da transmissão intergeracional da violência. Portanto, Nunn, ao lado de Leonard Wantchekon da Universidade de Princeton, concluem que “as diferenças nos níveis de confiança na África podem ser rastreadas até o comércio de escravos transatlântico e do Oceano Índico”.

ESTUPRO CONTINENTAL

Embora o comércio de escravos tenha começado a diminuir com a abolição da escravidão na Europa no início e em meados do século XIX, os males que afligem a África logo assumiram outra forma. Em vez de fornecer mão-de-obra às colônias nas Américas, a África se tornou uma fonte de minerais e matérias-primas vitais para a industrialização ocidental.

Em reuniões como a infame Conferência de Berlim de 1884-85, os europeus esculpiram o continente amplamente inexplorado em protetorados e colônias para alimentar sua fome por ouro, prata, borracha, óleo de palma, amendoim e – após o início da Primeira Guerra Mundial – algodão. Os líderes europeus estavam com tanta pressa em dividir o continente que nem mesmo esperaram que os exploradores relatassem suas descobertas. De acordo com Lord Salisbury, o primeiro-ministro britânico na época : “Temos nos empenhado em desenhar linhas em mapas onde nenhum homem branco jamais pisou; temos dado montanhas, rios e lagos uns aos outros, apenas prejudicados pelo pequeno impedimento de nunca sabermos exatamente onde estavam as montanhas, rios e lagos. ”

O desenho artificial das estruturas coloniais teve consequências duradouras, porque a maioria das linhas traçadas em Berlim se consolidou em fronteiras que perduraram após a independência. Uma rápida olhada no mapa da África ilustra esse legado. As fronteiras africanas seguem contornos latitudinais e longitudinais mais de perto do que em qualquer outro continente, dividindo centenas de etnias, deixando Hausa na Nigéria e Níger, Maasai na Tanzânia e Quênia, Jolas no Senegal e Guiné-Bissau e assim por diante. A bandeira nacional da Somália fala diretamente sobre as consequências deletérias do estabelecimento arbitrário de fronteiras pelos colonizadores europeus. Sua estrela branca de cinco gumes simboliza o desejo do país de reunir pessoas que foram divididas entre a região de Ogaden, na Etiópia, o Djibuti francês, a Somália italiana e britânica e as províncias do norte do Quênia.

Como as divisões da era colonial há muito alimentam os conflitos regionais e a instabilidade, a artificialidade das fronteiras africanas está inversamente relacionada à renda de seus habitantes. Na literatura, “estados artificiais” são definidos como “aqueles em que as fronteiras políticas não coincidem com uma divisão de nacionalidades desejada pelo povo”.

QUANDO A GEOGRAFIA É O DESTINO

Em nossa própria pesquisa, combinamos mapas antropológicos sobre a distribuição espacial de grupos étnicos na época da independência com dados georreferenciados sobre conflitos civis das últimas décadas. O resultado é uma grande amostra de evidências sobre o legado violento da divisão étnica.

Não são apenas campos de batalha históricos das etnias divididas entre as forças do governo, milícias e grupos rebeldes, mas a violência civil nessas áreas é mais intensa em comparação com áreas não divididas próximas à mesma fronteira. Desde o início dos anos 1960, cerca de um terço dos grupos divididos esteve envolvido em um ciclo vicioso de guerra civil étnica e repressão, em comparação com um em cada cinco para os grupos não divididos.

Mas as repercussões das fronteiras artificiais não param por aí. O legado colonial deixou a África com um grande número de economias sem litoral. Dos 49 países, 16 não têm acesso ao mar. Embora a República Democrática do Congo tenha aproximadamente o tamanho da Europa Ocidental, ela deve contar com uma pequena faixa de 30 quilômetros (18,6 milhas) para acessar o Oceano Atlântico. Países totalmente sem litoral, como Zâmbia, Burundi, Uganda, Malawi e Burkina Faso, continuam a lutar para se conectar aos mercados internacionais.

Além disso, os custos de ficar sem litoral são indiscutivelmente mais elevados na África do que em qualquer outro lugar, devido à prevalência de conflitos nos países vizinhos. Por exemplo, o Zimbabwe e o Malawi dependem fortemente dos corredores da Beira e Nacala para aceder ao oceano Índico; mas estes foram fechados principalmente durante a guerra civil moçambicana (1977-92).

Finalmente, a Scramble for Africa produziu muitos países onde mesmo a afirmação rudimentar do poder do Estado – arrecadação de impostos e garantia de segurança – é um desafio constante, devido à forma peculiar (como o Senegal), tamanho minúsculo (Gâmbia e Togo) ou topografia extensa e heterogênea (Congo, Angola e Mali). As implicações adversas para o investimento, o fornecimento de bens públicos e a modernização são óbvias.

O GRANDE SAQUE

A era colonial ainda influencia fortemente as sociedades, políticas e economias africanas. Quando a colonização começou, oponentes ideológicos tão distantes como Rodes e Lenin pensaram que o continente se beneficiaria com o investimento em infraestrutura, a saída gradual da agricultura de subsistência e a educação. Mas embora pareça ter havido algumas melhorias nas condições de vida e nos indicadores de desenvolvimento regional em áreas próximas às ferrovias coloniais e escolas missionárias cristãs, o fato é que os europeus quase nada investiram na África.

Onde eles intervieram, foi apenas para promover seus próprios interesses mesquinhos. Em vez de facilitar o comércio e a industrialização local, as ferrovias foram construídas para conectar áreas agrícolas ou ricas em minerais com portos, permitindo que as riquezas da África fossem transferidas para a Europa e as Américas. Em Moçambique, que é maior que a França, os europeus construíram apenas três ferrovias (não conectadas), ligando os portos de Maputo (Lourenço Marques), Beira e Nacala ao interior do que hoje é a África do Sul, Zimbábue e Malawi. Em Gana, que tem aproximadamente o tamanho da antiga Alemanha Ocidental, os britânicos construíram apenas duas linhas (não conectadas), ligando as cidades portuárias de Sekondi e Accra às áreas interiores ricas em ouro e de cultivo de cacau.

A educação e a saúde, por sua vez, foram “terceirizadas” para os missionários, enquanto outras funções essenciais do Estado (segurança e arrecadação de impostos) foram entregues a empresas privadas que governavam o interior com brutalidade. Sob este acordo, que permitiu aos administradores coloniais reduzir os custos de financiamento, a Companhia Britânica da África do Sul de Rhodes controlava vastas áreas no Zimbawe e na Zâmbia, enquanto a Firestone Natural Rubber Company dominava a Libéria (e sua política).

As empresas concessionárias também governaram grandes áreas do Congo francês, centro e norte de Moçambique, Camarões e Costa do Ouro da África Ocidental. Leopold designou grandes partes do Estado Livre do Congo para empresas privadas como Abir e Anversoise, que então extraíram borracha, minerais e marfim, coagindo chefes locais e milícias e, quando necessário, enviando a infame mercenária Force Publique .

A regra da chicotte, um chicote feito de couro de hipopótamo, teria consequências adversas duradouras no Congo. Uma comparação das áreas dentro e fora dos limites históricos das concessões de borracha revela influências negativas significativas sobre a educação, as condições de vida e a saúde. O fantasma de Leopold continua a assombrar a região. Seu modelo foi copiado pelos franceses no Congo, os alemães no sudoeste da África (Namíbia), os portugueses no centro e norte de Moçambique e os britânicos na Rodésia (Zimbawe), entre outros.

Como os administradores coloniais assumiram tão pouca responsabilidade, várias formas de governo indireto foram desenvolvidas ao longo do tempo. A escassa infraestrutura construída veio em grande parte do trabalho de africanos que haviam sido encarcerados sem o devido processo legal. Quando as empresas concessionárias estavam com falta de trabalhadores, os administradores coloniais muitas vezes vinham em socorro, introduzindo vários esquemas de trabalho forçado. Grandes regiões, incluindo o que agora é Burkina Faso, Botswana e os territórios do norte de Moçambique, Namíbia e Gana, foram designadas como “reservas de trabalho” das quais os chefes recrutariam à força trabalhadores para plantações, minas e ferrovias.

O aparelho colonial inicial, portanto, evoluiu para um estado de guardião com mínima ou nenhuma obrigação para com as comunidades locais. Como Mahmood Mamdani da Universidade de Columbia enfatizou, o governo “nativo” da era colonial foi sustentado pelo empoderamento de elites locais favorecidas e chefes tribais, que passaram a controlar as alavancas políticas e econômicas dos países africanos pós-independência, criando as condições para a persistência conflito, pobreza e autocracia.

Mesmo hoje, a resiliência e o poder entrincheirado dos líderes provinciais continuam a representar um desafio para a capacidade de muitos governos centrais de obter o monopólio da violência, fazer cumprir contratos ou coletar receitas.

DEFININDO O FUTURO

Confúcio aconselhou eloquentemente que se deveria “estudar o passado para definir o futuro”. As ex-potências coloniais europeias – e os norte americanos, que têm seu próprio legado de escravidão e colonialismo a enfrentar – devem levar este conselho a sério. Os episódios mais sombrios da era colonial deveriam fazer parte do currículo básico dos alunos. Isso vale para o genocídio herero e nama na Namíbia, as guerras Salazar-Caetano em Angola e Moçambique, o uso de armas químicas por Mussolini na Etiópia, a brutalidade britânica para reprimir a resistência africana, como a revolta de Mau Mau no Quênia, e os cruéis forçados -práticas trabalhistas e assassinatos por forças coloniais britânicas e francesas em todo o continente.

À medida que as relações europeias com os países africanos evoluem, os europeus devem ir além de oferecer pena e remorso. Eles têm a responsabilidade de compreender a África e o papel de seus próprios países lá. A recente oferta da Alemanha de ajuda financeira para as comunidades herero e nama na Namíbia sugere um caminho construtivo a seguir. Mas, é claro, nenhuma quantia de dinheiro compensará o sofrimento e o impacto duradouro das atrocidades passadas. Mesmo em termos estritamente materiais, a quantia que foi saqueada do continente é muito grande para uma compensação direta.

Mas a África também deve olhar para a frente, apesar da importância do passado. Presas na dinâmica da armadilha da pobreza, muitas partes do continente precisam de investimentos produtivos. O legado colonial deixou profundas disparidades regionais nos padrões de vida e educação. A ajuda externa, quando devidamente direcionada com a contribuição das comunidades locais, pode ser benéfica. Mas nunca será uma panacéia. Da mesma forma, as iniciativas privadas podem ajudar, mas não se forem totalmente irrestritas.

Acima de tudo, a Europa, os Estados Unidos e a China não devem permitir uma Scramble for Africa 2.0. Eles precisam responsabilizar as multinacionais pela corrupção, extorsão, evasão fiscal e a exploração implacável dos recursos naturais da África.1

Julgar figuras históricas pelos padrões contemporâneos e derrubar suas estátuas pode ser satisfatório e ser uma boa TV. Mas, em última análise, essa forma de se relacionar com o passado é contraproducente se não for acompanhada por uma alternativa positiva. Devemos erguer estátuas em homenagem à luta dos africanos pela liberdade, como a de um alegre Nelson Mandela olhando para o Palácio de Westminster.

Da mesma forma, direcionar fundos de pesquisa para acadêmicos baseados na África ajudaria a criar uma compreensão mais equilibrada do legado europeu e seu impacto no continente hoje. Devemos valorizar o passado para concretizar um futuro que beneficia europeus e africanos.

Stelios Michalopoulos

STELIOS MICHALOPOULOS

Escrevendo para PS desde 2016; Stelios Michalopoulos é Professor de Economia na Brown University.

Elias Papaioannou

ELIAS PAPAIOANNOU

Escrevendo para PS desde 2015; Elias Papaioannou é Diretor Acadêmico do Wheeler Institute for Business and Development e Professor de Economia na London Business School.

Tradução livre, parcial, de Luiz Jacques Saldanha, agosto de 2021.