“O lugar dos jovens nas sociedades atuais é o lugar da competitividade, da inovação, da eficiência e da velocidade. A identidade da geração atual emergente é a produtividade crescente, voltada ao desenvolvimento.” A opinião é do jurista italiano Gustavo Zagrebelsky, ex-presidente da Corte Constitucional da Itália. O artigo foi publicado no jornal La Repubblica, 25-03-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/541278-roubar-o-futuro-das-proximas-geracoes-artigo-de-gustavo-zagrebelsky
Eis o texto.
As sociedades velhas são aquelas sufocadas pelo peso do passado. As jovens são aquelas que, ao menos em parte, se livram dele, para olhar livremente para si mesmas e deliberar sem preconceitos. As idades das sociedades são medidas em “gerações”. Mas, o que são as gerações, uma vez que, a partir da célula em que está a relação generativa pais-filhos, passa-se para a dimensão social em que milhares ou milhões de indivíduos se sucedem no palco da vida, uns aos outros? Uma vez que se quer defender que uma geração jovem substitui uma geração velha?
A questão tem uma história. Thomas Jefferson disse: “A terra pertence aos (à geração dos) vivos” (“the earth belongs to the living”). Esse lema significava que, embora cada constituição traga consigo e expresse a exigência de estabilidade e continuidade, não se devia pensar em uma fixidez absoluta, em constituições perenes e imutáveis.
Uma vez que cada geração é independente daquela que a antecede, cada uma pode utilizar como melhor lhe aprouver, durante o seu “usufruto”, os bens desse mundo e, entre estes, as leis e as constituições. Mas qual é o “prazo de validade” de uma geração, isto é, a sua duração em vida?
Falamos da geração do fascismo, da resistência, de 1968, de internet etc. Por último, fala-se de “geração perdida”, com relação àqueles que estão sem trabalho e educação. A nova geração alemã pediu a conta para a geração dos seus pais, pela parte desempenhada no nazismo. A queda do Muro de Berlim abriu o caminho para a geração de 1989.
Cada uma dessas gerações é o que é não por razões de idade daqueles que fizeram e fazem parte delas, mas pela época por elas marcada e pela qual elas foram marcadas. Em outras palavras, trata-se de identidades históricas, de características espirituais coletivas que definem determinados períodos e determinam passagens ou conflitos com a geração anterior. E hoje, nas nossas sociedades, em nome do que a geração nova reivindica o espaço que era da velha?
Cada vez mais, os velhos confessam a sua sensação de “fora do lugar”. Com as palavras de Norberto Bobbio: “Nas sociedades evoluídas, a mudança cada vez mais rápida, tanto dos costumes, quanto das artes, inverteu a relação entre quem sabe e quem não sabe. O velho se torna cada vez mais aquele que não sabe em relação aos jovens que sabem, até porque estes têm uma maior capacidade de aprendizagem”.
O lugar dos jovens nas sociedades atuais é o lugar da competitividade, da inovação, da eficiência e da velocidade. A identidade da geração atual emergente é a produtividade crescente, voltada ao desenvolvimento.
Ao contrário de outras identidades geracionais que fixavam, estabilizavam e paravam o tempo e, portanto, de certo modo, tranquilizavam até que fossem substituídas por outras, a produtividade crescente é a mais implacável das leis, porque exige a mobilização de todas as energias sociais disponíveis e envolve a marginalização daqueles que não participam dela. Ou seja, aqueles que não sabem, não podem ou não querem manter-se no ritmo, isto é, os inidôneos e os não integrados não podem justificar a sua existência.
Vivemos em uma época que acreditamos que ainda é dominada pela ideia ou, talvez, pela ideologia dos direitos humanos: uma época aberta pelas revoluções liberais e triunfante na segunda metade do século XX, até como reação às tragédias dos totalitarismos. A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, que inicia proclamando que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos” pode ser assumida como o símbolo sintetizador de uma geração inteira. Mas ainda é assim?
Nas sociedades sobrecarregadas pela penúria de recursos vitais – ou seja, na prática, todas, exceto as sociedades da utopia –, os indivíduos nascidos ou que se tornaram inúteis eram suprimidos desde o início ou abandonados a si mesmos. Eram os não produtivos, os fracos, os portadores de malformações e doenças, os “mal sucedidos” (segundo a terminologia eugenética do nazismo) ou aqueles que representavam apenas um fardo para os outros, como os velhos irrecuperáveis a uma vida ativa.
Herbert Spencer foi o seu teorizador reconhecido. Os pobres, os marginais, os deficientes, os fracos, em geral os “inadaptados”, não deveriam ter sido sustentados às custas da coletividade. Os gastos sociais tira recursos do desenvolvimento da “parte saudável” da sociedade.
Hoje, os direitos humanos impedem a reproposição de tais teorias, mas a prática, revestida pela força da necessidade, repropõe os seus resultados. Quem a chamada crise fiscal do Estado e a consequente redução dos “gastos sociais” – pensões e assistência, saúde, trabalho – acaba atacando? Justamente os mais fracos.
Entre estes, os idosos, cujo número percentual em relação aos indivíduos produtivos, aumenta com a duração da vida. Talvez, está sob os nossos olhos uma verdadeira rebelião da geração jovem, sobre a qual paira o fardo da sustentação dos idosos. Não é possível eliminá-los física e diretamente, mas eles são abandonados progressivamente ao seu destino, com efeitos semelhantes.
Sobre as sociedades do crescimento pelo crescimento, paira outra ameaça. Deveríamos sempre lembrar a lição da Ilha de Páscoa. Essa ilha da Polinésia, descoberta pelos europeus no dia de Páscoa de 1722, é célebre pelos 397 megaliths, um dos quais alcança um peso de 270 toneladas, que representam gigantescos e enigmáticos troncos humanos, alguns dos quais recobertos por paralelepípedos coloridos de vermelho.
Quando os seres humanos colocaram o pé lá no fim do primeiro milênio, ela devia ser uma terra florescente, coberta por florestas, rica em alimentos da terra, do mar e do ar. Ela chegou a hospedar diversos milhares de pessoas, divididas em 12 clãs que conviviam pacificamente. Quando lá chegaram os primeiros navegadores europeus, eles encontraram uma terra desolada, como ainda hoje nos parece: completamente desmatada, com um terreno desastrado e estéril, onde sobreviviam poucas centenas de pessoas.
Em 1864, quando mercadores europeus desembarcaram lá para os seus negócios, o número estava reduzido para 111 indivíduos, desnutridos, geneticamente degradados. O que foi e como aconteceu esse desastre? Existe uma relação entre as grandes e inquietantes cabeças de pedra e a extrema desolação daquilo que as cerca?
O enigma de Páscoa, da forma como foi desfeito pelos estudiosos, é um grandioso e ameaçador apólogo sobre como as sociedades podem destruir por si mesmas o próprio futuro por gigantismo e imprevidência. A primeira causa do colapso teria sido o desmatamento, ou seja, a dissipação do principal recurso natural.
A floresta hospedava aves migratórias e atraía aves de passagem; fornecia a madeira para as canoas usadas para a pesca; defendia a integridade do território cultivado com hortas das tempestades tropicais. Pouco a pouco, os recursos alimentares vieram a faltar, e a dieta se reduziu, primeiro, para galinhas e pequenos moluscos e, depois, para os ratos e pasto.
A escassez de fatores primeiros da vida, como sempre acontece, alimentou as rivalidades e a guerra entre os clãs. Na carência generalizada de alimentos, acabou-se no último estágio, a antropofagia. E as cabeças de pedra? Parecem que elas tiveram um papel de destaque. Com o passar do tempo e em concomitância com as lutas entre os clãs, de pequenas que eram no início, tornaram-se progressivamente cada vez mais imponentes. A mais alta, seis vezes o tamanho de um homem normal, é também aquela construída por último, quando a catástrofe incumbia. Motus in fime velocior.
Elas eram um símbolo de poder tecnológico que podia ser gasto na luta pela supremacia política. Mas, para retirá-las da pedreira, transportá-las e endireitá-las – um trabalho, para aquela sociedade naquele lugar e naquele tempo, monstruoso – eram necessários troncos de árvores altas e fibras de madeira para fabricar cordas.
No fim, a ilha foi desertificada e, paralelamente, ergueram-se pedras cada vez mais altas; depois, na grande maioria, foram derrubadas e despedaçadas. Quando tudo foi cumprido, os sobreviventes pensaram em uma saída do inferno que eles mesmos haviam criado. Mas a madeira para construir os barcos – a sua salvação – já havia sido usada e consumida para as cabeças de pedra.
O que, portanto, aconteceu em Páscoa? Como podemos condensar em uma única frase a sua parábola? Para satisfazer delírios de poder e grandeza de hoje, não se deu atenção às necessidades de amanhã. Cada geração se comportou como se fosse a última, tratando os recursos de que dispunha como propriedades exclusivas suas, para serem usadas e abusadas.
O lema daquelas pessoas insensatas poderia ter sido a do distinto senhor, redator da Declaração de Independência,Thomas Jefferson: “A terra pertence à geração viva”. Admitindo-se que novas gerações vivas possam existir sempre de novo.
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