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Cimi

Belo Monte já é uma realidade

26 de janeiro de 2016 por Luiz Jacques

Belo Monte já é uma realidade. Luta de décadas, desde a época da ditadura quando não havia o embuste das ‘público/privadas’, perdida pelo mesmo poder de sempre!

http://www.ihu.unisinos.br/noticias/550545-qbelo-monte-ja-e-uma-realidade-lutamos-por-decadas-contra-esse-projeto-e-nao-conseguimos-evitar-a-sua-realizacao-entrevista-com-d-erwin-kraeutler

 

Nunca pensei que entrevistar D. Erwin Kräutler fosse uma tarefa tão fácil. Liguei para a Diocese, querendo saber onde o encontraria, e fui informado de que estava visitando comunidades. A sugestão da secretária foi que enviasse um e-mail. O que poderia parecer um balde de água fria em meu propósito, rapidamente se transformou numa grande surpresa. Duas horas depois, D. Erwin já havia lido a mensagem e se colocava à disposição. Responderia as perguntas por escrito, porque, onde estava, nem sempre se consegue falar bem no celular.  Quando leu que sua renúncia gerou um grande fato jornalístico, se assustou e desejou saber “quais as razões”. Seria apenas uma rotina administrativa, prevista no artigo 401, parágrafo 1, do Código Canônico, se o renunciante em questão não se chamasse Erwin Kräutler. Ele possui histórico de vida tão raro quanto precioso, no campo social, entre os homens que se dispuseram a entregar (literalmente) a própria vida, seguindo a melhor tradição – da qual se fez digno herdeiro – dos apóstolos de Jesus, pela causa dos menos favorecidos.

E quando a notícia é a de que se afasta, oficialmente, de uma missão tão importante, surge outra  interrogação tão grande, quanto a que se formou com o afastamento do cardeal Paulo Evaristo Arns da arquidiocese de São Paulo: o que vai ser  daqueles cuja voz era ouvida apenas pelas palavras de seu Bispo? A comparação não é desmedida. D. Paulo e  d. Erwin, assim como outros grandes Bispos brasileiros, como Hélder Câmara e Pedro Casaldáliga, por exemplo,  passaram a vida lutando, corajosamente,  pelas causas que abraçaram, sem jamais haverem perdido a dimensão da fé.

A reportagem e a entrevista são de João Carlos Pereira, publicadas no jornal O Liberal, 30-12-2015, sob o título “D. Erwin Kräutler: minha grande família que escolhi é o povo do Xingu”.

Eis a entrevista.

O Papa aceitou sua renúncia um ano e meio depois do envio oficial do pedido. Nesse tempo, o senhor esperava que a Santa Sé – o próprio Francisco – solicitassem que permanecesse no cargo? Isso aconteceu com os cardeais Ratzinger e Bergoglio, que apresentaram renúncia aos homens que vieram a suceder, no trono de Pedro.

Apresentei minha renúncia em carta ao Papa Francisco no dia 8 de julho de 2014 como o Direito da Igreja recomenda a um bispo que está completando 75 anos de idade. Poucas semanas depois veio a resposta. O Papa pediu-me que continuasse no cargo “nunc por tunc” (= “por enquanto”) até que fosse nomeado o meu sucessor. Passou um ano e meio até que isso acontecesse.

Nesse período, o senhor continuou a trabalhar sem pensar no desligamento ou fez planos para quando chegasse o documento do papa, aceitando seu pedido?

Continuei com minha agenda repleta de visitas programadas às comunidades e compromissos dentro e fora da Prelazia.

O que pretende fazer agora. D. Erwin?  Ficará no Xingu, com Bispo Emérito, auxiliando seu sucessor, um franciscano que é professor de Teologia? Quais os seus planos?

Terei o privilégio de ser o consagrante principal na ordenação episcopal de Frei João Muniz Alves que será meu sucessor como Bispo-Prelado do Xingu. Ele precisará de um bom tempo para conhecer essa maior circunscrição eclesiástica do Brasil e assumir a sua missão de bispo numa realidade complexa e em parte também conflitiva. Não vou passar o cargo para ele e sumir do mapa. Um novo bispo não entra pela porta da frente e o seu antecessor sai na mesma hora pela porta dos fundos. Seria um absurdo. Se ele me escolheu como consagrante principal certamente conta ainda com minha ajuda de irmão até conhecer de perto as regiões, paróquias e áreas de pastoral, as diversas dimensões da Prelazia e também os desafios da Igreja do Xingu. Sem dúvida, haverá um tempo razoável de transição, mas sem transtornos. Estarei simplesmente à disposição de meu sucessor. Aliás, fiquei muito feliz com a nomeação desse frade franciscano que nasceu em nosso estado vizinho, no Maranhão. Laudato Sí – Que Deus seja louvado!

Não faço planos. Sou secretário da Comissão Episcopal para a Amazônia presidida pelo Cardeal Dom Cláudio Hummes e assumi a função de coordenador da REPAM (Rede Eclesial Pan-Amazônica) no Brasil. Esses cargos continuam independentes da sucessão no Xingu. Além do mais recebi e recebo muitos convites para orientar retiros para Padres e Religiosas/os. Não me faltará trabalho e oportunidade de engajar-me nas diversas frentes de nossa Igreja. Aliás, nem consigo atender a todos os convites dentro e fora do país para falar sobre a Causa Indígena e a questão da Amazônia em diversos fóruns, seminários em nível nacional e internacional. Certamente não vou morrer de tédio, sem saber o que fazer. Deus me livre!

O Pará é sua terra adotiva, como Belém foi a terra que adotou, até o fim,  D. Vicente Joaquim Zico,  seu irmão no episcopado. Um homem com duas pátrias (ainda que naturalizado), como se sente agora, quando está, pelo menos oficialmente, dispensado da missão de dirigir uma Diocese?

Completei cinquenta anos de Xingu. Quando fui nomeado bispo, já vivia há quinze anos no Xingu. Sempre digo que sou “brasileiro nascido na Áustria”. Não fui mandado para o Xingu. A escolha e decisão foi minha. Quando à meia noite de 24 a 25 de novembro de 1965 cheguei em Belém a bordo de num navio cargueiro, sabia que ia ficar.

Em 21 de dezembro de 1965 já estive em Altamira. Nunca me arrependi. Ninguém nega as raízes. Seria um absurdo, mas entendo-me hoje como xinguara. Identifico-me com essa região em que vivo há meio século e com seu povo. A maioria dos municípios do Xingu me outorgou o título de cidadão honorífico. Sou Doutor honoris causa pela Universidade Federal do Pará.

E tem mais: Aposto que exista alguém que conhece o Xingu e o seu povo tão bem como eu. Visitei as comunidades em toda parte, fui até as cabeceiras dos igarapés e os fundos das vicinais da Transamazônica. Andei pelo Alto e Baixo Xingu. Visitei aldeias indígenas e as comunidades mais distantes. 50 anos não são 50 dias! Com tudo isso, quem ainda ousaria duvidar que sou do Xingu.

Nunca me apresentei como “austríaco”. Sempre digo que sou do Xingu. Nasci na Áustria, sim, mas vivi e vivo a minha vida aqui. Não tenho planos de voltar definitivamente à Áustria. É perigoso transplantar uma árvore velha. Se o fizer, ela vai murchar, perder as folhas e lentamente morrer.

Onde mora sua família? Seus amigos estão todos no Pará? A gente do Xingu, os índios, eles são sua família? Penso que o senhor pode dizer como Jesus: “minha mãe e meus irmãos são os que fazem a vontade de Deus”. Onde estão os “seus”, D.  Erwin?

Tenho minha família em dois níveis. A biológica, é claro, e a família que escolhi. Meus pais, Deus já os recebeu nos prados eternos. Morreram idosos, ambos no mesmo ano. Mamãe foi primeiro aos 91 anos em janeiro de 2004, papai seguiu aos 94 anos em maio daquele ano. Tenho irmãos e irmãs, sobrinhas, sobrinhos, cunhadas, cunhados e muitos primos e primas, inclusive no Brasil, já que meu tio, irmão da minha mãe, casou aqui. Somos uma família tradicional com muitas ramificações. A primeira informação sobre um antepassado com meu sobrenome e no lugar em que eu nasci, é do início do século XV.

Mas minha grande família que escolhi é o povo do Xingu. É minha gente. Esse povo me acolheu com muito carinho quando cheguei, com a idade de apenas 26 anos, Padre recém-ordenado, cheio de entusiasmo. Em todos esses anos senti sempre o carinho do povo do Xingu.

Quando fui ameaçado de morte por alguns mafiosos que não aceitaram o meu empenho intransigente em favor dos pobres, dos índios, os atingidos pela barragem, ou queriam vingar-se porque denunciei injustiças e violências e apontei ainda os criminosos que abusaram de meninas do colégio, o povo reagiu imediatamente e tomou partido em meu favor. Havia faixas dizendo: “Dom Erwin, nós te amamos!” Quantas “declarações de amor” recebi e continuo recebendo. Onde chego em visita a uma comunidade, o povo me abraça, beija, quer pousar comigo para fotos. A turma jovem bate  “selfies”.

E no final da visita, sempre a mesma pergunta: “Quando vem de novo?”. Quantas despedias com lágrimas! Alguém ainda dúvida, quem é minha família?

Sabe-se que o senhor é um homem de hábitos simples, que deu a vida pela causa que abraçou. É padre no melhor sentido do termo. O que não pode fazer, enquanto Bispo, que pretenda fazer agora?

Continuo bispo, só deixo de ser o titular da Prelazia do Xingu. Há coisas que há muito tempo queria fazer e não tive condições de fazê-lo. O arquivo da Prelazia precisa urgentemente de uma atenção especial. Acumularam-se muitos documentos e cartas. Sempre gostei de escrever, mas na maioria das vezes foi quase que “sob pressão”. Queria ter tempo para contar tantas histórias vividas ao longo desse meio século.

Belo monte foi a causa em que, recentemente, mais se engajou. O mundo inteiro ouviu sua voz, protestando contra a construção da usina. Menos, ao que parece, o ex-presidente Lula e a presidente Dilma. Belo Monte é agenda proibida com a Presidente? Quando soube que não poderia tratar desse tema, o senhor desistiu do encontro. O que vale a pena conversar com ela?

Belo Monte já é uma realidade. Lutamos por décadas contra esse projeto e não conseguimos evitar a sua realização. Estive duas vezes com Lula, em 19 de março e 22 de julho de 2009. Naquelas audiências tive ainda esperança de poder reverter o quadro. Na segunda audiência éramos dez pessoas: indígenas, ribeirinhos, procuradores da República, Dr. Célio Berman da USP e a mulher mais empenhada na luta em favor da Amazônia e de seus povos que conheci em minha vida, a minha comadre Antônia Melo. Foi naquela oportunidade que o Lula me segurou no braço e falou aquela frase que virou até manchete: “Não vamos empurrar esse projeto goela abaixo de quem quer que seja!”.

Falou ainda que Belo Monte, se for realizado seria totalmente diferente de outros empreendimentos deste tipo. Ele não pretendia repetir Balbina que chamou de “monumento à insanidade”. Lembrou ainda a grande dívida que o Brasil tem com os atingidos de outras barragens e finalizou dizendo que Belo Monte só será feito “se for do agrado de todos”. Naquela hora fiquei eufórico. Acreditei na sinceridade do presidente. Só mais tarde dei-me conta de que todas as palavras do presidente foram mera encenação. Falou o que o bispo queria ouvir.

Quando descobri que fui traído, fiquei com nojo! Como presidente do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) tentei ainda um contato com a Dilma. Mas soube que, se Belo Monte constasse da pauta de assuntos a serem tratados com a presidente, ela mandaria cortar imediatamente, pois Belo Monte é fato consumado. Quem se prontificou a receber-me em audiência foi o Ministro da Secretaria-geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho. Foi agendada a audiência. Mas poucos dias antes da data marcada, em um evento promovido pela Pastoral Social da CNBB, Gilberto Carvalho foi categórico em anunciar em alto e bom som que a construção de Belo Monte está decidida e essa decisão é irreversível. O que eu iria ainda fazer lá no gabinete desse homem? Pousar para uma foto ao lado de um sorridente ministro como prova do “diálogo” entre o governo e o bispo do Xingu? Não fui! Fui eu quem cancelou a audiência.

O ex-presidente Lula prometeu diálogo, respeito às pessoas e que a usina só sairia do papel se fosse do agrado de todos. Isso não aconteceu. Parece que tudo que ele prometeu foi para ser agradável ao senhor. Deve ter ficado uma grande mágoa por haver ser sido iludido por um presidente da República…

Soube depois da segunda audiência em 22 de julho de 2009 que a equipe que cerca o presidente já havia questionado a concessão de uma audiência ao bispo do Xingu, alegando tratar-se de “agenda negativa”. Mas Lula manteve o que prometeu em 19 de março. Garantiu efusivamente a continuação daquilo que ele chamou de diálogo.

Foi marcado um outro encontro para outubro do mesmo ano. Passei no final de outubro de 2009 uma semana em Brasília aguardando ser chamado para um novo “diálogo”. Cada dia recebi um telefonema do planalto dizendo que “hoje não dá, talvez amanhã”.

Na sexta-feira Gilberto Carvalho me telefonou às 21:30 avisando que “lamentavelmente” não daria desta feita eu ser recebido pelo presidente pois ele partiria para Venezuela para encontrar-se com Hugo Chávez. Na minha ingenuidade ainda acreditei no “diálogo” até que finalmente descobri que fui gentilmente convidado a cair fora.

Belo Monte já é uma luta perdida. Como o senhor se sente, depois de haver alertado o planeta para os desastres ambientais que a construção da usina provocaria e, sobretudo, para os dramas humanos? Como o senhor vê o quadro, agora irreversível, das pessoas que vivem na região da usina? As casas, pelo menos, oferecem condições dignas de moradia?

Muitas vezes me perguntam, se eu não estava tremendamente frustrado e decidido de pendurar as chuteiras de uma vez, já que não fui, ou melhor, já que não fomos vitoriosos em nossa luta. Primeiro não me entendo como derrotado, de jeito nenhum. Como bispo cumpri minha missão. Quem se deixa orientar pelo Evangelho não faz depender o seu engajamento em favor dos irmãos e irmãs da certeza da vitória, já previamente garantida. Aliás, a execução de Jesus na forma mais cruel que a antiguidade conhecia é aparentemente um atestado insofismável do fracasso total e absoluto de sua missão. De fato, os sumos sacerdotes e anciãos acharam que com a morte de Jesus toda a sua mensagem fosse varrida de uma vez da face da terra. No entanto, da cruz saiu a maior revolução de todos os tempos, a revolução do amor. É bem interessante também a palavra de Mahatma Gandhi: “A satisfação está no empenho, não no sucesso. Empenho total é sucesso total”

As casas construídas para as famílias compulsoriamente desalojadas e arrancadas de sua terra são bonitinhas por fora e apertadas por dentro. São planejadas nos gabinetes de Brasília e não levam em conta a índole do povo paraense e amazônida e as  peculiaridades climáticas da região. Mesmo que têm mais uns poucos metros quadrados inserem-se no estilo das gaiolas denominadas “Minha Casa – Minha Vida”. São uma agressão à cultura habitacional do paraense, do amazônida, pois não levam em conta os costumes do povo que vive aqui. A tradicional hospitalidade amazônida que sempre acha mais um lugar em casa para atar a rede para um familiar, parente ou amigo, é brutalmente massacrada. Imagine-se só um casal com talvez dois filhos diante do pai ou da mãe que vivem no interior e vem a Altamira para se tratar e logicamente se dirigem à casa de seu filho ou filha para hospedar-se. O filho, a filha terá que repetir a sentença do dono da pensão em Belém quando Maria e José procuraram abrigo: “Aqui não tem lugar!”.

O senhor consegue dimensionar o tamanho do prejuízo que os povos indígenas tiveram, histórica e continuamente, na Amazônia, desde que aqui chegou, em 1965, como padre recém-ordenado?

Lamento que os povos indígenas que até agora viviam na Volta Grande do Xingu não têm condições de sobreviver em suas terras. Não sei se vão sobreviver fisicamente. Culturalmente sei que não! Os grandes projetos governamentais são todos anti-indígenas. Não levam  em conta a presença, desde tempos imemoriais, destes povos. O  sujeito da história é o projeto, não um povo.

Mas vivi nas décadas passadas também uma experiência muito positiva e gratificante. Desde que cheguei à Amazônia nutri uma afeição especial pelos povos indígenas. Nunca me esqueço da ducha fria que levei quando como padre recém-chegado perguntei pelos Kayapó e um cidadão me respondeu que deveria “largar de mão esses caboclos” e ainda acrescentou: “Se Deus quiser, daqui a vinte anos não sobrará um deles!”

Naquela hora jurei comigo mesmo que no que depender de mim lutaria sem trégua em favor dos povos indígenas, pela sua sobrevivência, sua cultura e pelo direito às suas terras ancestrais.

Já em 1983 fui pela primeira vez eleito presidente nacional do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Exerci essa função por quatro mandatos. Uma das maiores vitórias que registro em minha vida foi a inscrição dos direitos indígenas na Constituição Federal de 1988. Foi fruto do empenho do Cimi e da Igreja Católica junto com os povos indígenas. Através de inúmeros encontros com os deputados constituintes, conversas e palestras, inclusive no Congresso, conseguimos finalmente uma votação favorável ao capítulo “Dos Índios” (Art. 231 e Art. 232). No dia 1º de junho de 1988, o plenário da Assembleia Nacional Constituinte aprovou a redação do capítulo específico sobre os direitos indígenas. No segundo e último turno de votação plenária, na sessão de 30 de agosto de 1988, de 453 votos, o capítulo sobre os índios obteve 437 votos favoráveis, 8 abstenções e 8 votos contrários.

Lastimo agora ter que constatar que através da PEC 215/2000 a poderosa bancada ruralista no Congresso declarou guerra às conquistas de 1988, querendo alterar os parâmetros constitucionais.

Quando aqui chegou, há exatos meio século, a Igreja era governado pelo, agora, beato Paulo VI, que cuidava de dar vida às decisões do concílio convocado por seu predecessor, o agora São João XXIII. O Concílio não mudaria apenas o rito da missa, mas muita coisa deveria ser alterada. O que, se dependesse de sua forma de ver a vida, poderia ser mudado nas relações da Igreja com o mundo e da Igreja com seus padres e freiras? A manutenção do celibato é tema proibido ou deve ser revisto pelo papa?

Não considero o tema “celibato” um tema proibido. É um fato que muitos bispos falam sobre o assunto e não apenas “à boca pequena”. Concordo que se trata de um tema delicado que dá margem para muitas interpretações, às vezes até bastante equivocadas. Quero, porém, colocar os pingos nos is. A decisão por uma vida celibatária é decisão de um homem ou de uma mulher que opta livremente por esse estado de vida. Ninguém tem direito de forçar alguém a tomar essa decisão como ninguém pode obrigar um homem ou uma mulher a se casar. O celibato tem um valor imenso quando é assumido voluntariamente “por causa do Reino” (Mt 19,12).

Pessoalmente não poderia imaginar-me fazer o que fiz ou expor-me do jeito como tive que me expor, enfrentar circunstâncias adversas como tive que enfrentar e suportar até ameaças à minha vida se tivesse mulher e filhos. Pelo menos na hora das ameaças teria que tomar a decisão de sair da conjuntura hostil e lembrar-me da primeira responsabilidade como esposo e pai de família. A família sempre teria que ser a prioridade número um.

O celibato se torna “problema” quando é acoplado à Eucaristia que, segundo as atuais leis e normas da Igreja, pode só e exclusivamente ser presidida por um homem celibatário. O Vaticano II (1962-65) afirmou que “nenhuma comunidade cristã se edifica sem ter a sua raiz e o seu centro na celebração da santíssima Eucaristia, a partir da qual, portanto, deve começar toda a educação do espírito comunitário” (PO 6). A Constituição Dogmática “Lumen gentium” do mesmo Concilio fala da Eucaristia como “fonte” e “ponto culminante de todas a vida cristã” (LG 11). É portanto urgente que a Igreja cria estruturas para que os 70% das comunidades da Amazônia que só tem acesso à Eucaristia duas ou três vezes ao ano possam ter acesso à celebração eucarística dominical.

O “problema” não é o celibato em si que é uma graça, mas a exclusão de milhões da celebração eucarística dominical por causa de estruturas perfeitamente modificáveis.

É verdade que o senhor pediu ao Papa permissão especial para ordenar homens casados, uma vez que há uma carência enorme de sacerdotes em sua Diocese, onde há 800 comunidades e apenas 27 padres. Qual foi a resposta da Santa Sé? Se é que houve resposta.

Nunca pedi ao Papa explicitamente uma “permissão especial para ordenar homens casados”. Que eu tivesse feito um pedido nestes termos foi uma interpretação que apareceu em alguns jornais. Na realidade falei na audiência particular que o Papa Francisco me concedeu em 4 de abril de 2014 sobre as “comunidades sem eucaristia”. O Papa falou então aquela frase que também virou manchete. Ele me disse que espera dos bispos “propostas corajosas”. Voltando ao Brasil relatei na Assembleia Geral de 2014 em Aparecida aos bispos reunidos o que o Papa me havia dito. Em seguida a Presidência da CNBB constituiu uma comissão que está estudando e elaborando propostas “corajosas” que oportunamente podem ser submetidas ao Papa Francisco. Espero apenas que isso aconteça o quanto antes.

Na sua opinião, como deveria ser a ação da Igreja, hoje, numa terra continental como a Amazônia, onde algumas denominações ditas “evangélicas” avançam rápida e (desculpe o termo) predatoriamente sobre a consciência católica?

Minha experiência é que, quando alguém participa e se engaja em sua comunidade e a comunidade está funcionando realmente na sua dimensão samaritana e profética, se entendendo como a família das famílias em que todas e todos tem vez e voz, e ainda tornando-se espaço para a meditação da Palavra de Deus e de oração e celebração é muito raro um membro se despedir e mudar para uma outra denominação.

Padres casados são uma solução paliativa um futuro inevitável para a Igreja?

Mais uma vez, não se trata de padres casados ou não. O cerne da questão é o acesso dos fiéis à Eucaristia.

O Papa Francisco tem conseguido fazer com que as pessoas pensem, pelo menos, na misericórdia de Deus para com as minorias, como os gays; ou para com mulheres que praticaram aborto. É a Igreja se abrindo ao mundo para acolher os que, até então, viviam à margem. O que o senhor pensa sobre isso? Como sua vivência entre povos indígenas e a gente simples do interior do Brasil, com poucos direitos à cidadania e à dignidade de vida,  fez o senhor pensar esses temas?

A história do Bom Samaritano que Jesus contou (Lc 10, 25-37) é para mim o paradigma para entender o que significam compaixão e misericórdia. Compaixão é um estado emotivo, um sentimento afetuoso do tipo: “Coitadinho!” “Dá dó ver o pobrezinho!”. Misericórdia é a compaixão traduzida em ação, em solidariedade, em amor que se doa sem nada esperar em troca.  O detalhe está no original grego do Evangelho de São Lucas, onde a pergunta de Jesus não é “quem foi o próximo” como erroneamente quase todas as edições da Bíblia traduzem. Jesus pergunta: “quem tornou-se próximo?”. Ser próximo é a constatação de alguém estar bem perto de outrem. Tornar-se próximo implica numa decisão conscientemente tomada de aproximar-se de outra pessoa, no caso da história do Evangelho, de quem foi assaltado e está necessitando de primeiros socorros. Não importa quem é, de onde vem, a que raça pertence, que religião professa. Basta que esteja sofrendo, basta que esteja precisando de nosso auxílio, de nosso apoio.

É essa vocação da Igreja, de cada cristão e cristã: tornar-se próximo. Em primeiro lugar nunca fica o julgamento ou uma possível condenação. A “aproximação” em termos de ajuda, carinho, compreensão tem sempre a primazia. Defendo a vida desde a concepção até o desenlace natural de uma pessoa. Mas defendo também que as mulheres em situações de risco sejam amparadas e tenham alternativas concretas para evitarem o pior, a morte provocada do neném debaixo de seu coração. Quando se fala em aborto, geralmente só se pensa na mulher. Tantas vezes fica sozinha no seu dilema, entregue à própria sorte. Cadê o homem que engravidou a mulher? Está palitando os dentes em qualquer esquina da rua como se nada tivesse acontecido! Existe ainda, e muito, essa desgraça de machismo.

Quanto aos indígenas, a misericórdia se traduz em defesa de seus direitos constitucionais e numa sensibilidade toda especial para com os primeiros habitantes desta terra. Atitudes ultrajantes e racistas continuam a existir e são muitas vezes cultivadas no seio da família. Se para os pais os índios são “caboclos” e “selvagens” quem vai evitar que os filhos tenham a mesma compreensão? Grande parte do material didático de nossas escolas tem que ser revisado.

São João Paulo II foi duro com o ex-presidente Sarney, quando disse que a reforma agrária no Brasil não poderia fracassar, porque era uma questão de direitos humanos. O que fez a Igreja para que esse processo não parasse de vez?

Fico intrigado como a questão da “reforma agrária” desapareceu da pauta do governo. Foi durante anos a bandeira prioritária do PT que inclusive ajudou o Lula ganhar a eleição. De repente nem é mais assunto de pauta nos Encontros Nacionais do PT. É uma das grandes decepções que carrego comigo: um partido que assumiu compromisso com as causas dos menos favorecidos no Brasil, especialmente os trabalhadores no campo e os operários debandou para o outro lado, fazendo alianças com o latifúndio e o agronegócio. Parece-me que para  garantir a governabilidade os políticos hoje estão prontos para fazer aliança até com o diabo.

Ainda bem que a Igreja Católica nunca abandonou essa causa. Sempre de novo a questão agrária estava na pauta de assuntos das Assembleias Gerais da CNBB. E a Pastoral de Terra (CPT) continua firme na defesa dos direitos dos agricultores e denuncia vigorosamente todo tipo de crimes no campo, desde a manutenção de empregados em regime de escravatura até os assassinatos brutais a mando do latifúndio. No caso da questão indígena o CIMI é hoje criminalizado por defender os direitos dos indígenas às suas terras ancestrais, ancorados na Constituição Federal em vigor. No Mato Grosso do Sul uma deputada estadual inventou uma CPI do CIMI que corre atualmente naquela Assembleia Estadual. Que inversão de valores!

O papa Francisco – cuja simplicidade, na casa Santa Marta, onde teve um  encontro privado com o Pontífice, que o deixou muito impressionado pela simplicidade – escreveu uma carta encíclica sobre ecologia. O senhor acha que ele continua pregando no deserto, como João Batista?

O encontro que tive com o Papa não ocorreu na Casa Santa Marta, mas na biblioteca do Palácio Apostólico. Passei quatro dias na Casa Santa Marta onde pude realmente apreciar a simplicidade do Papa Francisco. Vi como entrou à noite no refeitório e pegou o seu prato como qualquer hóspede para servir-se no buffet. Num outro dia vi-o chamar e aguardar o elevador, os guardas suíços em discreta distância.

Estou convicto de que a Encíclica Laudato Sí influenciou a 21ª Conferência do Clima (COP 21) realizada há poucas semanas em Paris. Aliás, esta encíclica também tornou-se um ponto alto em minha vida de bispo na Amazônia quando descobri que minhas sugestões a respeito da Amazônia e dos Povos Indígenas apresentadas naquela memorável audiência foram contempladas nos números 38 e 146.

Pode ser que o Papa é ainda uma voz no deserto, mas ninguém nega que ela repercute e  muito e não será mais calada.

O senhor ainda consegue acreditar num Brasil que não para de produzir notícias sobre a corrupção e a incompetência dos governos para agir em favor da vida dos que mais necessitam?

“A esperança é a última que morre” é um ditado popular. Continuamos a sonhar com um Brasil diferente. Aqui e acolá surgem fatos concretos. O “Lava-jato” já é um indicativo de mudança. Esses “cabra ruim” que lesaram o Brasil e os brasileiros hoje pelo menos são indiciados e quem nem em pesadelo sonhou com prisão está hoje vendo o sol quadrado. É pena que tudo anda tão devagar que às vezes se perde a confiança. Será que de novo tudo vai acabar em pizza? Como um presidente da Câmara de Deputados comprovadamente corrupto e mentiroso pode ser manter no poder? São perguntas que cada um de nós se faz.

Mas mesmo assim, mais uma vez:  “A esperança é a última que morre”

Agora que já não é mais responsável por uma Diocese, pensa em dispensar a proteção policial que o acompanha 24 horas por dia, até ir a um aniversário? Já se sente livre para ser livre ou a Amazônia, inclusive nesse sentido, continua a ser um lugar perigoso para pensa em Justiça Social como o senhor?

Não fui eu que pedi a proteção pessoal. Pelo contrário me opus e só aceitei diante da insistência de quem “sabia mais que eu” e me recomendou encarecidamente que aceitasse a decisão do governo. Assim cabe também à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República com seu programa de Proteção dos Defensores de Direitos Humanos a encerrar a proteção especial.

Não vejo atualmente nenhuma razão de manter a proteção. Mas, como um superintendente da polícia me falou: “Quando tudo parece tranquilo, mesmo assim nunca se sabe o que essa gente está tramando“

Para finalizar, D. Erwin: o senhor conheceu outras irmãs (ou irmãos) como trabalho e coragem semelhantes ao de  Dorothy Stang em sua caminhada como padre ou como Bispo, que corram os mesmos riscos da missionária assassinada em 2005?   

Conheci, sim, pessoalmente o Dema, Ademir Alfeu Federicci, casado com Maria da Penha e pai de quatro filhos assassinado na madrugada de 25 de agosto de 2001 em sua casa. Caiu morto aos pés de sua mulher. “Maria cuide de nossos filhos!” teriam sido suas últimas palavras. Morreu pela mesma causa que foi a razão do assassinato, uns anos mais tarde, de Irmã Dorothy Mae Stang.

Irmão Humberto Mattle foi morto no corredor da Casa da Prelazia em que moro. O motivo verdadeiro de seu assassinato à queima-roupa ninguém sabe até hoje.

Já em 28 de abril de 1985 Irmã Cleusa Rody Coelho foi barbaramente executada. Conheci-a do Cimi. Dedicou a sua vida aos Apurinã, na Prelazia de Lábrea, AM. A autópsia revelou que foi espancada até a morte. Todas as suas costelas estavam quebradas, seu crânio fraturado.

Diante dessas e outras mortes bárbaras sempre lembro a palavra que se encontra na Primeira Carta de São João: “Nisto conhecemos o amor que Ele deu sua vida por nós. Também nós devemos dar nossas vidas pelos irmãos e as irmãs” (1 Jo 3,16).

PARA LER MAIS:

  • 30/06/2015 – Dom Erwin Kräutler: “As palavras do papa incentivarão a defesa da Amazônia”
  • 15/04/2014 – Denúncia feita ao Papa: “Grupos político-econômicos buscam desconstruir os direitos territoriais dos povos indígenas”. Entrevista especial com Dom Erwin Kräutler
  • 13/02/2015 – 10 anos sem Dorothy Stang: para bispo muitos envolvidos não foram acusados
  • 18/09/2015 – Adeus, Arapujá
  • 23/04/2015 – “O descaso e até o escárnio do governo brasileiro com os direitos constitucionais dos povos indígenas é assustador”, diz bispo
  • 27/08/2014 – Recordando dom Hélder Câmara
  • 08/12/2010 – “Pedro Casaldáliga é um profeta. É mais incômodo do que Madre Teresa”
  • 03/04/2012 – O povo “à jusante” de Belo Monte. Artigo de D. Erwin Kräutler
  • 03/11/2015 – Indígenas do Xingu cobram direito à terra na etapa regional da Conferência de Política Indigenista
  • 05/06/2012 – Dom Erwin Kräutler: “Lula e Dilma passarão para a História como predadores da Amazônia”
  • 16/09/2015 – O dia em que a casa foi expulsa de casa
  • 10/09/2015 – O pesadelo da perda lenta do lar de Antonia Melo
  • 06/08/2015 – Sociedade enganada – um depoimento de Antonia Melo
  • 03/11/2015 – PEC 215: O extermínio dos Povos Indígenas e das populações tradicionais do Brasil
  • 23/10/2015 – Questão indígena no Brasil: “falta uma posição mais decidida do governo central”. Entrevista especial com Dom Roque Paloschi
  • 29/04/2014 – Acusamos o governo de violar a Constituição e tornar-se cúmplice dos crimes contra os índios´, Dom Erwin Kräutler
  • 15/05/2015 – “Temos uma dívida social imensa com os povos indígenas”. Entrevista com dom Edson Damian
  • 01/07/2015 – Belo Monte, uma usina de promessas
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  • 21/12/2015 – Usina de Belo monte: “O licenciamento ambiental no Brasil precisa ser levado a sério”. Entrevista especial com André Aroeira Pacheco

VEJA TAMBÉM:

  • O genocídio dos povos indígenas. A luta contra a invisibilidade, a indiferença e o aniquilamento. Revista IHU On-Line, Nº. 478
  • Além de Belo Monte e das outras barragens: o crescimentismo contra as populações indígenas. Cadernos IHU, Nº. 47

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Bravos Índios Livres.

22 de agosto de 2014 por Luiz Jacques

“Tal como as árvores carregadas pelo Envira, cujas sementes germinam novas plantas em outras margens, as aldeias ashaninka desfeitas por conta da relação conflituosa com os povos livres reflorestaram o povo em outros pontos do rio, mais longe dos locais de aparição dos bravos”, escreve Renato Santana, jornalista, em artigo publicado pelo Jornal Porantim, e reproduzido pelo portal do Cimi.

 

 

http://www.ihu.unisinos.br/noticias/534391-bravos-indios-livres

 

 

Eis o artigo.

O barulho do batelão reverbera no interior da floresta. Sobre o teto do barco, no horizonte de pálpebras cerradas pelo sol do meio-dia, a zoada mais parece uma revoada de pássaros com asas de ferro invisíveis. A estridência metálica, dentro da mata, espanta araras, macacos e demais bichos no sincopado tu-tu-tu-tu do motor, som reconhecido pelos indígenas em situação voluntária de isolamento na Amazônia como sinal aliterado da sociedade que os envolve.

É inverno nesta porção extrema do país. As águas correm abundantes e a embarcação singra, sem muitos percalços, as entrelinhas da lâmina de água, lidas atentamente pelo barqueiro que desvia de troncos, na maioria das vezes submersos, e evita trechos mais rasos ou de intenso rebojo.

No verão o rio seca e apenas cascos pequenos conseguem passagem entre as praias naturais, cujas areias oferecem aos isolados ovos de tracajá. O calor e a umidade perpassam as estações, assim como os piuns e carapanãs.

O batelão navega contra a corrente vazante, e sete dias depois da saída do porto movediço de Feijó (AC) chegamos àTerra Indígena Kampa/Isolados, demarcada no paralelo 10°S, Alto Rio Envira, já na fronteira do Brasil com o Peru, onde as águas tingidas pelos sedimentos e barro passam a dar vida ao Rio Xinane. Esse vasto mundo se reduz, a cada dia, para os isolados, ainda que tenha o mesmo tamanho.

A região é uma das últimas no mundo a ter grupos de povos livres. Com a Constituição de 1988 e mais protegidos pelas demarcações, todavia vulneráveis às invasões dos territórios, eles conseguiram resistir aos massacres e dobraram suas populações nas últimas décadas. Exercem o pleno direito de resistência às vontades integracionistas da “civilização” e preservam suas próprias instituições sob a memória de uma vida de correrias. Chamadas na região de bravos, essas populações se negam ao contato com as sociedades que as envolvem – sejam as indígenas ou mesmo as ribeirinhas, cujas origens naquelas matas estão em famílias de seringueiros instaladas por ali desde o final do século XIX e decorrer do XX pelas frentes de colonização.

Os ashaninka, tal como eles se autodenominam, dividem a Terra Indígena Kampa/Isolados com os bravos e os chamam de maxiriantsé, os valentes. A semântica oferece outro significado para o aparente tom pejorativo da palavra bravo, mas delimita a complexa noção de alteridade presente entre essas nações e seus convívios autodeterminados.

No entanto, em terras onde grupos indígenas insistem contra a capitulação de suas formas livres de vida e outros lutam diariamente pela sobrevivência em interface com a sociedade branca, ser bravo, no sentido dado pela língua ashaninka, tornou-se um traço marcante entre esses povos. As relações culturais críticas dessas experiências, no reforço das alteridades tanto dos isolados como dos demais povos, geram um dos contextos mais complexos entre isolados e índios contatados do Brasil.

Entre o final de junho e durante todo o mês de julho essa história ganhou mais um episódio. Um grupo de indígenas livres causou alvoroço ao entrar na aldeia Simpatia, onde vivem os últimos ashaninka antes da fronteira com o Peru. Durante o primeiro semestre deste ano, os ashaninka relataram acontecimentos similares, todos encaminhados ao Ministério Público Federal (MPF) e à Fundação Nacional do Índio (Funai) pelos indígenas por intermédio do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

Não se trata, portanto, de um contato inédito. Dessa vez, porém, a Funai decidiu agir e montou na aldeia, em parceria com o governo do Acre, a Operação Simpatia. Os indígenas ficaram impedidos de sair da comunidade. No dia 26 de junho, servidores do órgão indigenista e os ashaninka estabeleceram novo contato com alguns desses livres que, conforme a equipe de sertanistas, estavam com gripe. A Funai divulgou foto com três deles.

Durante o tratamento realizado por profissionais da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), os indigenistas identificaram que esses livres falam um idioma do tronco linguístico pano, o mesmo de outros povos do Acre e Peru. Os isolados então puderam ser entendidos, de forma precária, sobre os ataques que vêm sofrendo, possivelmente de madeireiros e narcotraficantes peruanos. Em seguida voltaram para o interior da floresta no caminho das malocas de seu povo. Desativada há pouco mais de três anos, a Base do Xinane da Frente de Proteção Etnoambiental do Rio Enviraretomará os trabalhos.

Frente da borracha… Frente Etnoambiental

Na Terra Indígena Kampa/Isolados está instalada também a Base do Xinane, a três horas de barco da aldeiaSimpatia no rumo da fronteira com o Peru. A estrutura foi abandonada depois de ataque de narcotraficantes, em junho de 2011.

Antes, porém, de entender essa história que impactou a vida tanto dos ashaninka quanto dos bravos nos últimos anos, além do povo madja, também presente naquelas terras, precisamos fazer uma retrospectiva que remonta a cerca de cem anos atrás. No início do século XX, sobretudo depois da Primeira Guerra Mundial, as mobilizações voltadas à ocupação territorial da região Norte do Brasil se acentuaram. Nas décadas de 1930 e 1940, com ênfase no governo de Getúlio Vargas e nos acordos firmados com os Estados Unidos ante os esforços da guerra travada na Europa, frentes de colonização foram organizadas e seguiram rumo aos confins da Amazônia. Se por um lado a exploração das seringas entraria em seus ciclos econômicos, por outro o Norte passaria a ser parcialmente povoado, e o “espaço vazio” brasileiro, assim considerado pelo governo central, preenchido. Todavia, aquelas florestas tinham dono. Não estavam vazias. Nelas viviam povos indígenas ainda sem contato, que também fugiam. Entrecortado por rios com nascentes nos Andes e correntes às águas do Amazonas, a grande serpente, o Acre foi um dos estados que teve suas seringas e nações indígenas rasgadas por inúmeras frentes de colonização da borracha.

As varações e os igarapés entre os principais rios do estado foram as principais rotas de fuga dos povos indígenas. Os mais velhos chamam esse período de “tempo das correrias”. As mortes eram hediondas aos indígenas que resistissem à escravidão e às vontades dos senhores no poder. Caçadores de índios em nada perdiam aos seus antepassados que ilustraram em tintas de terror a história da invasão europeia à Ameríndia.

No Rio Envira, onde, no Médio, viviam os huni kui e, no Alto, os madja, os grupos isolados, para fugir da violência das frentes de colonização, seguiram para mais perto da fronteira com o Peru e para além dela, numa área de circulação que lhes possibilitava resistir. Ao Envira, no entanto, as frentes de colonização não levaram apenas a própria sanha, mas também outros indígenas, que entre outros trabalhos atuavam como mateiros, além de intermediários ao contato agressivo com os povos livres. Afinal, se naquelas terras não viviam, ao menos circulavam. Os isolados, desde então, associam osashaninka ao tempo dos massacres, contatos violentos, mortes e fugas. Com o fim dos ciclos da borracha, tais frentes de colonização desfizeram-se. Aos ashaninka e povos livres restou a herança do trauma coletivo, que segue pautando as relações entre essas sociedades.

Nos últimos anos, com o retorno cada vez mais acentuado dos isolados a antigos territórios hoje ocupados pelosashaninka, as excursões de livres às aldeias têm sido constantes. Levam terçados, roupas, redes, utensílios domésticos, tudo o que se pode colher nas roças e até mesmo crianças. Os ashaninka aprenderam a lidar com tais “delitos” sem violência, mas temem que em algum momento algo de mais grave aconteça – como antigamente. Caciques e demais lideranças tramam os fios tênues dessa história, elásticos como uma linha de borracha.

“No Rio Envira, os ashaninka sempre andaram, mas nascer aqui só os mais novos. Os mais velhos foram trazidos de outros lugares pelo kairu (branco), de aldeias do Peru. Acontece que estamos aqui e enterramos nossos mortos, fazemos nosso ritual. Nossos filhos nasceram aqui. Nossas aldeias cresceram. Ashaninka não quer brigar com bravo, mas quem aguenta ter suas coisas levadas? Se eles matarem um ashaninka, como faremos?”, indaga Txate Ashaninka, que não sabe ao certo a própria idade, mas aparenta ter por volta de 75 anos. Os olhos vão de um lado a outro em movimentos curtos, num rosto magro, queimado de sol. O cuzmã, espécie de batina e vestimenta tradicional do povo, cobre do pescoço aos pés a baixa estatura de seu corpo de pássaro. As mãos ossudas de Txate alternam entre segurar o próprio queixo, numa postura de reflexão, e apontar a mata enquanto a cabeça mergulha nas memórias encravadas nas árvores que ladeiam o Envira. “Naquela ali eu subia com as outras crianças. Alta, né? Os macacos vinham para perto”, aponta da janela do barco. “Era aldeia antiga nossa. Mais para trás tem kamarambi(ayahuasca) e onde era a roça do meu tio. Saímos daqui por causa dos bravos, mas nunca ninguém morreu.Teve flechado, mas sem mortes”, recorda Txate.

Tal como as árvores carregadas pelo Envira, cujas sementes germinam novas plantas em outras margens, as aldeias ashaninka desfeitas por conta da relação conflituosa com os povos livres reflorestaram o povo em outros pontos do rio, mais longe dos locais de aparição dos bravos. Na década de 1980, a aldeia Xinane foi um desses casos. Bem próxima da fronteira com o Peru, era constantemente alvo dos isolados. Os ashaninka que nela viviam a desativaram e se espalharam em outras aldeias ou fundaram novas. A elas os isolados também chegavam, e assim outras aldeias foram descendo o rio até quase o Médio. Com o aumento das tensões, e já sob uma nova política com relação aos povos em situação de isolamento voluntário, que previa o direito desses grupos de ter uma vida preservada da indesejada companhia das demais sociedades, a Funai construiu uma baseno local da antiga aldeia Xinane. O objetivo era identificar quem eram esses livres, demarcar o território e impedir conflitos entre eles e os ashaninka. Mais tarde, a estrutura passou a integrar a Frente de Proteção Etnoambiental do Xinane.

“Sou o passado falando”

O sertanista José Carlos Meirelles fundou a base e nela viveu durante 22 anos, entre 1988 e 2010. Criou filhos, que com o tempo passaram a trabalhar em frentes de proteção, manteve uma família e a ela agregou os peões que sobre os pisos de madeira da pequena vila também moravam. As histórias de Meirelles são despudoradas quanto a finais felizes e tampouco o transformam em herói defensor dos povos indígenas. “Sou o passado falando”, diz. Prefere a prosa ao discurso e não se priva de relatar, com seu sotaque de homem do interior, episódios de que não se orgulha, como quando se viu diante de isolados e, para defender parentes, precisou atirar.O indígena atingido acabou morto. Ou quando foi atacado pelos isolados num igarapé próximo da base, enquanto pescava. Uma flecha atravessou seu rosto e ele precisou ser levado de helicóptero para um hospital de Rio Branco (AC). “Andávamos na mata, coisa hoje esquecida. Parece que hoje se monitora índio isolado e protege-se o território via notebook”, afirma. Não há indigenista atuante na temática dos isolados que não tenha ouvido as histórias de Meirelles, seja para criticá-lo ou para tê-lo como referência. Entender, porém, as problemáticas dos isolados do Envira e a política para os isolados da Funai passa necessariamente por um pouco de prosa com Meirelles.

Quando chegou ao Xinane, o sertanista trabalhava com a informação de que apenas um povo isolado vivia na região. “Localizamos. Depois descobrimos que havia outro nas cabeceiras do Riozinho. Localizamos. Depois descobrimos mais um em 2008, além dos mascho piro que andam pelo Envira sazonalmente e com mais frequência de 2006 para cá. E muito provavelmente um quinto grupo que anda nas cabeceiras do Rio Jordão, oriundo da reserva Murunaua, no Peru”, explicaMeirelles.

O tempo e a perseverança, conta o sertanista, fiaram a metodologia de trabalho. As informações inicialmente eram de outros indígenas do Envira ou de ribeirinhos, mateiros. Com a consolidação da Frente do Xinane aperfeiçoou-se a captação de informações, com longas estadias no meio da floresta e monitoramentos por sobrevoos. Descobriu-se então que alguns desses povos são caçadores e coletores, caso dos mascho, que circulam na fronteira do Brasil com o Peru, nômades, e outros agricultores, com possível associação ao tronco linguístico pano. “Quando chegamos, ocorriam muitos conflitos entre os ashaninka e huni kui e os isolados. Em 1989 sobrevoamos suas pequenas malocas, que hoje já devem ser o dobro”, lembra Meirelles. O sertanista observa que esses povos tiveram um aumento populacional nos últimos anos e isso também provoca mudanças no comportamento. No Brasil, existem 94 povos em isolamento voluntário.

Narcotraficantes atacam

Se por um lado desde os anos 1980 se registram conflitos entre isolados e os demais povos das margens do Envira, por outro, a partir de 2005, data Meirelles, as cabeceiras do Envira no Peru, até então desabitadas pelo homem branco, foram invadidas por madeireiras e depois pela coca. Os empreendimentos, no geral, são de mesmo dono e a madeira é usada para lavar a coca. O avanço das fronteiras do crime organizado internacional para cima do território gerou o episódio de junho de 2011, quando a Base do Xinane foi cercada por narcotraficantes e a equipe de servidores da Funai retirada do local por helicópteros da Polícia Federal. Meses antes, em março, o traficante português Joaquim Antônio Custódio Fadista, condenado por tráfico de drogas no Brasil, Luxemburgo e Peru, foi detido na Base do Xinane depois de aparecer no local sozinho, portando uma mala com drogas e dólares e pedindo passagem.

Levado para Rio Branco, foi extraditado para o Peru. Logo conseguiu liberdade e em junho regressou ao Xinane com capangas para se vingar de quem o havia detido e supostamente localizar a mochila recheada com drogas e dinheiro. Meses depois, em agosto, Fadista foi mais uma vez detido. Informados pelos ashaninka, a Polícia Federal e servidores da Funai chegaram ao Xinane para averiguar a circulação de supostos narcotraficantes. Durante a operação, a equipe localizou Fadista no meio da mata, nos arredores da Base do Xinane. O governo federal tem informações de queo narcotráfico, sediado do outro lado da fronteira, estuda a região com o intuito de utilizá-la.

A ação de madeireiras, portanto, estaria atrelada ao narcotráfico e a intensidade da ação delas na região está submetida ao avanço do negócio da droga no território compartilhado pelos ashaninka e pelos isolados. Sobrevoos realizados pela equipe do Xinane, do final dos anos 1980 até sua desativação em 2011 sob fogo cerrado dos traficantes, comprovam a ação de madeireiros. No entanto, tais investidas diminuíram depois da demarcação e da consequente proteção do território.

No lado brasileiro registra-se a incidência de pequenos madeireiros, além da utilização da área dos isolados “como supermercado de carne, peixe e madeira por parte dos brancos. Os ashaninka e os madja também pescam nessas áreas para vender em Feijó”, diz Meirelles. A tendência é de que a Funai retome os trabalhos da Base do Xinane, mas como impedir que o território deixe de ser acossado pelo narcotráfico?

No último dia 24 de março, a presidente do órgão indigenista, Maria Augusta Assirati, reuniu-se em Lima com representantes do Ministério da Cultura peruano para a formalização interinstitucional de protocolos para a proteção e promoção dos direitos dos povos isolados e de recente contato, que vivem nas regiões de fronteira entre os países. Aos indígenas, porém, fica a relação com os isolados.

“Sofreram muitas violências”

O cacique Ominá Madja tem uma pequena coleção de objetos dos isolados recolhidos na mata. Um de seus filhos aprendeu a tocar uma pequena flauta tingida de urucum e musgo. As janelas da casa do cacique miram a floresta chuvosa. Naquele mesmo dia pela manhã, um isolado foi avistado espreitando dependurado numa árvore. Por trás do manto de água nada se esconde. “Eles sofreram muitas violências. Como a gente também. Toda vida que índio morre por um pedacinho de terra, seja querendo ou defendendo ela. Só que os bravos não sabem tudo o que a gente sabe de vocês [brancos]”, analisa.

Cacique da aldeia Igarapé do Anjo, homônimo de um dos igarapés onde os isolados mantêm aldeias, o indígena afirma que a relação dos madja com os livres não é pautada pela violência, mas que alimentam desconfianças mútuas. “Tentamos falar com eles, apesar de a língua ser diferente. Como a gente não ataca, eles chegam perto cada vez mais. Achamos cerâmica deles, panelas, flechas e flautas. Estão perto da gente”, diz Ominá. O cacique aponta para a ação de madeireiros na região, o que justificaria a aproximação cada vez mais constante desses povos às aldeias madja. Como no decorrer do processo histórico os madja e os ashaninka passaram a casar entre si, algumas aldeias são compartilhadas. “Aqui a gente é madjaninka”, riem. Se por um lado as fronteiras impostas pelos Estados nacionais não existem para as populações em isolamento voluntário, que circulam entre alguns países num grande território ancestral, aos ashaninka e aos madja a demarcação da Terra Indígena Kampa/Isolados é apenas uma formalidade importante. A comunidade Igarapé do Anjo está dentro dessa terra indígena, assim como a aldeia Terra Nova, onde o caciqueIsanami Madja é casado com uma ashaninka.

Enquanto a esposa prepara caiçuma de mandioca, Isanami mostra a identidade puída. Levado junto com roupas e panelas, o documento foi encontrado tempos depois, num buraco, junto a outros objetos saqueados pelos isolados. Silenciosos e sem violência, os livres chegaram a levar o mosquiteiro de Isanami enquanto ele e a mulher dormiam. O episódio é lembrado com risos, mas nem sempre as histórias são irreverentes. Certa vez uma mulher madja estava na roça quando foi abordada por dois isolados. Primeiro tomaram o terçado das mãos da indígena e depois insistiram para que ela fosse embora com eles. Os homens da aldeia, tão logo ouviram os gritos da mulher, correram para a roça e lá chegando precisaram afugentar os livres.

Tanto a Funai quanto os madja sabem que poucos quilômetros separam as aldeias das malocas dos isolados. ConformeIsanami, tal aproximação tem se intensificado nos últimos cinco anos, mas de uns três anos para cá deixou de ser sazonal e ocorre todas as semanas. “Já os vi muitas vezes, perto da aldeia e no meio da mata. São cabeludos e têm o corpo pintado de urucum e jenipapo. Já vi caçando macaco. Olham a gente e correm. Não ficam, não”, conta Isanami. Para o cacique, o mais difícil é ter roupas e utensílios sempre levados pelos isolados. “Olha, vou te dizer meu pensamento: não que tem de amansar ou fazer violência contra eles, madeireiro é quem faz assim, mas imagina ter suas roupas levadas toda hora por outras pessoas; ou a sua roça? Perder tudo. Isso deixa a gente triste”, conclui.

Proposta diplomática

Enquanto esteve na Base do Xinane, Meirelles realizou algumas oficinas com os ashaninka e os madja para tratar da relação com os isolados. “Creio que os isolados, pela nossa atitude de respeito, durante anos, com aquele território só para eles, consideram sua área de ocupação aquele pedaço. E é. Os ashaninka chegaram ao Envira na década de 1940, os isolados já estavam lá. Então quem invadiu a terra de quem?”, questiona o sertanista.

A principal reclamação dos ashaninka é de que Meirelles não os deixava participar das ações da frente, e agora eles reivindicam mais protagonismo. Querem entender quem tem se movimentado pelo território além dos isolados. Pretendem desenvolver uma nova diplomacia. “Para a gente, tem peruano no meio e até outros indígenas do Peru juntos. Como vai dizer diferente? A gente quer ir ver mesmo, porque tem ashaninka no Peru que diz isso dos madeireiros e traficantes andando por aqui. Tanto os parentes bravos quanto nossas aldeias estão sem proteção”, conclui Txate Ashaninka.

Na Base do Xinane, Txate e os ashaninka encontram razão para o argumento: pegadas de pés descalços e botas se misturam riscando o limo que cobre a madeira quebradiça das pontes que ligam as casas da estrutura. Antigo funcionário da base, Francisco das Chagas recorda que Meirelles temia a presença dos ashaninka na base por conta do histórico de conflitos entre eles e os isolados.

“Seu Meirelles queria os bravos perto da base”, diz Chagas. O experiente mateiro lembra que muitos funcionários da frente foram alvo de flechadas, inclusive o próprio Meirelles, e que “só não morreram porque Deus foi camarada”. Osisolados costumavam andar perto das casas da base arremedando animais.

E confirma: “Não sei bem a razão, mas os bravos estão cada vez mais em cima dos ashaninka. É de uns três anos pra cá, daqui acolá [gesticula com os braços] a gente vê eles atravessando o rio. Na aldeia Simpatia [última aldeia ashaninka antes da base] não faltam”. Chagas também não confirma a presença de peruanos não indígenas, mas salienta movimentações diferentes de isolados na região. O mateiro está há quase duas décadas no Envira, onde casou com umaashaninka e hoje já cuida dos netos.

Crianças levadas pelos bravos

Outras histórias envolvendo os isolados dão conta de crianças levadas por eles. José Poshe e Bibiana Ashaninka nunca se esqueceram de uma festa ocorrida na aldeia há dezoito anos, quando a pequena Sawatxo foi carregada. Na época com 5 anos, a jovem dormia com os irmãos. Ao ouvir choros e gritos das crianças, Poshe correu para casa e, ao chegar, os mais velhos relataram que um bravo havia entrado na casa e levado Sawatxo. Foram muitos dias procurando pela menina na floresta. Em vão. “Deve estar grande. Já deve ter tido filhos. Ela deve ter se acostumado sem a gente. Todo mundo se acostuma a tudo”, diz Poshe olhando para o rio.

Dezenas de outras tentativas foram relatadas pelos ashaninka. Do lado peruano, uma das histórias terminou em massacre. Entre os ashaninka do Envira, o ocorrido na comunidade Doce Glória, Departamento de Ucayali, Peru, em 2003, próximo à cabeceira do Rio Juruá, mesmo que não tenha tido a participação de indígenas do Brasil, é um fantasma que assombra as florestas do território que compartilham com os isolados.

Enquanto preparava a comida para o marido e outros ashaninka que estavam pescando, uma mulher foi morta por um grupo de livres do povo mascho piro. Imediatamente os ashaninka arregimentaram um grupo e, na mata, deram o mesmo fim da mulher para cerca de trezentos isolados. O relato vem dos ashaninka do Envira, que têm parentes entre osashaninka do Peru. “Então eu não sei se, caso um parente bravo mate um ashaninka, isso não pode acontecer [um episódio semelhante ao de Doce Glória] no Envira. Eu, como mais velho, digo aos mais novos para não fazerem nada. Para não irem à mata quando se sabe que eles estão lá, mas a gente não controla tudo”, afirma Txate Ashaninka.

O fantasma dessa história, porém, tem razão de assombrar um povo tomado pelo mágico. Os indígenas afirmam que a movimentação dos mascho foi provocada pela ação de madeireiros ilegais vindos do Departamento de Madre de Dios, chegando às cabeceiras do Rio Juruá, perpassando territórios dos isolados, na Zona Reservada do Alto Rio Purus, uma unidade de conservação na Amazônia peruana criada ainda no governo Alberto Fujimori (1990-2000). “Eu penso que se não for retomado um trabalho aqui no Envira pode acontecer algo como lá no Peru. Isso dá mais medo em mim que as flechas dos parentes bravos. Mas a gente não quer que a Funai volte como era antes. Ashaninka e madja precisam estar juntos. Precisamos ser parte”, diz Txate.

No último mês, lideranças ashaninka relataram a aparição de isolados na aldeia Simpatia. Na mesma comunidade, um indígena caiu em uma armadilha dos livres, no interior da floresta, mas não se feriu. No Igarapé do Anjo, aldeia do povo madja, a inserção dos livres acontece toda semana.

A Base do Xinane, devorada pela fome úmida da floresta amazônica no paralelo 10°S, segue como símbolo do desafio da política indigenista aos isolados. Num paradoxo, como assegurar e garantir a liberdade desses povos? Enquanto isso, os livres exercem o direito de resistência e demonstram diplomaticamente que não irão aceitar as mortes de antigamente.

As histórias circulam, e eles seguem o caminho de volta entrecortado por trilhas de outros povos. Por essas picadas, os livres também seguem, onde muitos deles tiveram a carne morta devorada pela terra. Um jardim de ossos na paisagem da memória. Num mundo brevemente grande, que já teve seu apocalipse de fogo para esses povos, tais encontros ocorrem entre as ruínas de raízes que insistem em tecer novos convívios e relações.

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Avante caminhantes. Uma caminhada pela Ilha do Bananal.

28 de julho de 2014 por Luiz Jacques

“Partilho um pouco do que vi, senti, partilhei em 20 disa atravessando a pé os quase cem quilômetros da ilha do Bananal. São momentos que não se deixam aprisionar. Ficam gravados em nossa memória como acontecimentos, joias a serem preservadas. Quarenta e quatro caminhantes, cada qual levando tudo que precisa para viver no caminho: desde a alimentação até a rede ou barraca para o merecido descanso. Construímos uma interação solidária com a natureza e os povos Karajá e Jawaé. Firmamos um compromisso pela vida, contra todas as ameças que pesam sobre a rica socio e biodiversidade”, informam Egon Heck e Laila Menezes, do secretariado nacional do CIMI, ao enviar o artigo que publicamos a seguir.

 

 

http://www.ihu.unisinos.br/noticias/533596-avante-caminhantes

Eis o artigo. 

Na energia do universo, no caminho da alma, no espírito dos ancestrais, na sagrada terra indígena da ilha do Bananal!

Ao iniciar o mês de julho adentramos  às terras, águas flores e animais da ilha, com a benção dos índios Jawaé. Seguimos nos caminhos de muita vida, em partilha, reciprocidade e troca de saberes com os povos indígenas.

Nos despedimos, depois de 20 dias, na aldeia Karajá de Santa Izabel do Morro. Atravessamos o Araguaia para um encontro muito especial, em São Felix do Araguaia, com D. Pedro Casaldáliga. Com sua ternura radical e testemunho profético nos conclamou para a causa indígena e nos abençoou como ancião, poeta e irmão maior na fé. No momento da foto sorridente comentou “é proibido usar em campanha eleitoral.

Vinte dias de travessia e partilha. Quase  100 km de troca de passos, espaços e saberes. Uma caminhada memorável atravessando os medos e as belezas da maior ilha fluvial do planeta. Fomos os primeiros a fazer a travessia a pé. Muitas recomendações e temores: cuidado com as onças, os jacarés, as piranhas. Atravessamos ilesos todos esses medos e apreensões.

Os Jawaé, Karajá e Avá Canoeiro, povos guerreiros e resistentes, nos acolhem com alegria e sabedoria. Tudo no seu tempo e significado. As redes atadas na beira do rio ou da estrada, as barracas embaixo de frondosas mangueiras ou vegetação do cerrado. Tudo acontecendo a contento e a seu tempo.

Quarenta e quatro caminhantes, pé na estrada, mochila nas costas e o coração aberto para o diferente. Fomos sendo surpreendidos pelos bandos de biguá, garças, socó boi e uma infinidade de pássaros. Até os enormes Tuiuiu, em seus ninhos no alto das árvores, vigilantes com seus filhotes deram os ares de sua graça

Quando as bolhas, calos começaram aparecer, era a hora da solidariedade e as paradas para refazer as energias e tratar as feridas no corpo e na alma com os óleos naturais e os cuidados necessários

A ilha do Bananal: belezas, impactos e ameaças

A ilha do Bananal é berço natural de povos indígenas como os Jawaé e Karajá. Há mais de dois séculos se iniciou um processo de contatos e invasões por parte dos interesses nos recursos naturais e belezas da ilha. Porém a invasão maior se deu a partir de meados do século vinte, com a marcha para o Brasil Central.

A partir de então interesses turísticos e da expansão  pecuária se estabeleceram na ilha. Apesar de ser declarada Parque Nacional e a partir da década de 80, dois terços serem declarados Terra Indígena, as invasões estimuladas por políticos e o latifúndio, dez com que mais de 20 mil pessoas ocupassem a ilha,  chegando a ter  mais de 100 mil cabeças de gado.

No governo de Juscelino Kubitschek, foi construído um grande hotel, próximo à aldeia Kararjá de Santa Izabel, com o intuito de desenvolver ali um polo turístico. Serviu como local de férias e safari para os militares durante a ditadura. Foi repassado parar o governo de Goias no iíncio da década de 80, para  utilização para o turismo na ilha. Felizmente o projeto não se consolidou. Os índios se livraram do pesadelo ateando fogo no lendário Hotel JK. Hoje restam apenas as ruinas entre árvores e as casas de palha de babaçu.

Outra grande ameaça foi o início da construção da estrada Transaraguaia, em 1983. Houve uma grande reação nacional, pois se considerava essa como “estrada da morte”, da insensatez, da ignomínia. Um absurdo. Teriam que ser feitos mais de 80 km de aterro de 3 a 6 metros. O impacto sobre o ecossistema da ilha seria fatal.

Depois de iniciadas as obras os índios Jawaé interromperam os trabalhos e obrigaram a retirada das máquinas. Porém até hoje continuam as pressões dos políticos e do agronegócio para a construção dessa estrada.

Ainda no ano passado o governador do Tocantins, Siqueira Campos esteve com os Karajá tentando mostrar as vantagens da estrada, fazendo promessas e doando objetos agrícolas. Uma liderança Jawaé, solicitou aos caminhantes que os apoiássemos na luta contra a construção dessa estrada. Nos comprometemos com essa luta pelo bem da vida e da mãe terra. Vimos, sentimos e nos sintonizamos com o direito amplo de todas as formas de vida existentes na ilha do Bananal.

D. Pedro comentou que há mais de quatro décadas, quando aí chegou, a ilha era um espetáculo pela exuberância de vida. Infelizmente já foi bastante impactada pelas sucessivas e variadas formas de invasão, principalmente pela pecuária e turismo.

Nos unimos, no caminho da resistência, afirmação de direitos e da vida, a todos os que lutam para que a ilha do Bananalcontinue sendo não apenas a maior ilha fluvial do mundo, mas também um exemplo de preservação sócio-ambiental.

Caminhantes da vida na “troca de saberes”, não apenas vivenciamos uma experiência admirável desse grande Brasil desconhecido, mas construímos e assumimos um compromisso com os povos indígenas e a ameaçada biodiversidade dessa região.

Avante caminhantes, o caminho se faz caminhando, com lutas concretas, sonhos e utopias.

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A culpa do genocídio de povos indígenas no Brasil é do direito fundamental às suas terras tradicionais?

8 de julho de 2014 por Luiz Jacques

“É a efetivação do direito fundamental às suas terras tradicionais que suplantará o quadro de genocídio de povos indígenas no Brasil”. O comentário é de Cleber César Buzatto, Secretário Executivo do Conselho Indigenista Missionário – Cimi, em artigo publicado pelo portal do Cimi, 19-06-2014.

 

 

http://www.ihu.unisinos.br/noticias/532529-a-culpa-do-genocidio-de-povos-indigenas-no-brasil-e-do-direito-fundamental-as-suas-terras-tradicionais

 

 

Eis o artigo.

O sub-procurador da República, Dr. Eugênio Aragão, ao participar da  audiência da Comissão Especial da Câmara dos Deputados que trata acerca da Proposta de Emenda Constitucional 215/00, no último dia 11 de junho,  questionou o paradigma demarcatório de terras indígenas, vigente no  Brasil, e defendeu a tese segundo a qual “o modelo atual, a toda evidência, está apresentando sinais claros de esgotamento”.

Defendeu a referida tese com o argumento de que “mesmo quando o Poder Executivo, depois de longuíssimas tramitações, consegue promover a demarcação de uma área indígena, a reação imediata é a judicialização do respectivo ato administrativo, o que leva a um impasse em que não se vai nem pra frente nem pra trás”. Um argumento evidentemente falacioso, haja vista a existência de diversos procedimentos administrativos de demarcação de terras indígenas paralisados sem que exista qualquer impedimento judicial para tanto. Ou seja, o motivo da paralisação, no caso, é político e causado pela opção governamental e pela “pressão” de atores políticos e econômicos bem conhecidos de todos, dentre os quais os representantes do latifúndio, a bancada ruralista, para quem Aragão discursava.

Para além da falácia, no entanto, o sub-procurador avançou na argumentação, por um caminho que, julgamos, malicioso, desrespeitoso e ultra ideológico. Segundo ele o genocídio contemporâneo dos povos indígenas tem sua raiz motivacional no direito fundamental dos povos às suas terras tradicionais, conforme assegurado pelo texto constitucional de 1988. Isso porque, segundo ele, fazendo eco aos argumentos ruralistas  “o processo concebido na Constituição, no artigo 231, é um processo unilateral. É um processo em que a administração pública, ex-ofício, identifica e demarca as áreas, olhando sobretudo apenas em uma direção, a direção do bem estar do indígena.

O problema é que ao longo dos anos foi-se percebendo que essa visão unilateral, de só se olhar para a população indígena, esquecendo as circunstâncias, levaram, na verdade, eu posso dizer com a  maior tranquilidade, a uma política genocida. Porque na medida em que a gente olha só para um lado do problema, todos os outros que estão excluídos da atenção do poder público produzem ressentimento. E o ressentimento acaba levando à estigmatização e a estigmatização, por sua vez, acaba levando ao genocídio”.

Ora, além de incompatível com o arcabouço jurídico que envolve o procedimento de demarcação, uma vez que o elemento do contraditório é amplamente respeitado, tanto no campo administrativo, quanto no campo do Poder Judiciário, o argumento defendido pelo Dr. Eugênio, ideológica e maliciosamente, esconde os verdadeiros sujeitos político-econômicos responsáveis pelo atual quadro de genocídio dos povos indígenas no país. Como fica evidente no argumento, Aragãoadmite a existência de genocídio de povos indígenas no país, mas, além de esconder os sujeitos responsáveis pelo genocídio, o mesmo, desrespeitosamente, o legitima uma vez que seria, como que natural, que o “ressentimento” produzido pelo arguido unilateralismo produzisse a “estigmatização” e que, consequentemente, levasse ao genocídio.

O argumento em questão causa-nos, como não poderia deixar de ser, profunda indignação, e se enquadra na típica estratégia da culpabilização da vítima. Segundo ele, os povos indígenas seriam vítimas do genocídio porque ousaram lutar e conseguiram assegurar o reconhecimento do direito às suas terras tradicionais no texto Constitucional do Estado brasileiro.

O que defendemos é exatamente o contrário da opinião do sub-procurador. É a efetivação do direito fundamental às suas terras tradicionais que suplantará o quadro de genocídio de povos indígenas no Brasil. O genocídio de povos indígenas no Brasil precede o texto Constitucional vigente em nosso país. O genocídio de povos indígenas não se justifica e não se legitima sob qualquer hipótese. O genocídio de povos indígenas no Brasil é efetivado por sujeitos político-econômicos bem conhecidos, tais como, dentre outros, latifundiários, usineiros, empreiteiras, mineradoras. Em cada região e período histórico de nosso país, atuaram e atuam com avareza na perspectiva de se apossar e explorar as terras tradicionalmente ocupadas pelos povos.

Os povos indígenas têm o direito à vida e o direito à vida precede o direito de propriedade.  Os não-índios, ocupantes de terras indígenas, além de receberem pelas benfeitorias construídas sobre essas terras, têm direito à justa indenização dos títulos de propriedade de boa fé, por parte dos entes federados responsáveis pela sua emissão. Além disso, a legislação vigente no Brasil estabelece ainda o direito ao devido reassentamento aos ocupantes. O reassentamento, por sua vez, deve ser feito com a desapropriação dos latifúndios, que, infelizmente, se perpetuam em favor de poucos e devido aos genocídios provocados, aos privilégios históricos e à super-representação do setor no Congresso Nacional e noutros espaços de poder do Estado brasileiro.

Ao atacar o direito fundamental dos povos indígenas às suas terras tradicionais com os argumentos acima destacados, ataca-se também o direito dos não-indígenas ao devido reassentamento. Dessa maneira, faz-se a dupla defesa do latifúndio e da concentração fundiária cada vez maior em nosso país, objetivo central da estratégia ruralista ao defender a aprovação da PEC 215/00. Talvez seja este o motivo pelo qual Aragão, em momento algum de sua explanação, tenha feito referência à nota técnica produzida pela 6ª. Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, órgão setorial da Procuradoria Geral da República que trata de temáticas indígenas. Leia aqui a nota, que explicita a inconstitucionalidade da referida Proposta de Emenda Constitucional.

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Madeireiros ameaçam índios na Amazônia.

3 de julho de 2014 por Luiz Jacques

Os Ka’por, da Terra Indígena Alto Turiaçu, no Maranhão, denunciam a agressão e a invasão de seu território por madeireiros e alertam para um conflito iminente entre eles. A situação se agravou na semana passada, depois que um grupo de cerca de 90 indígenas realizou uma operação de monitoramento na floresta e apreendeu armas, motosserras, motocicletas, caminhões e tratores.

 

 

http://www.greenpeace.org/brasil/pt/Blog/madeireiros-ameaam-ndios-na-amaznia/blog/49767/

 

 

A reportagem é de Luana Lila, publicada pelo Greenpeace, 01-07-2014.


Extração de madeira no Pará (© Greenpeace/Marizilda Cruppe)

Desde o ano passado, os Ka’por têm realizado de forma autônoma atividades de monitoramento territorial e ambiental de sua área. Porém, essas ações estão resultando em represálias, ameaças e perseguições por parte dos madeireiros.

“Em função dessa mobilização do povo de garantir o mínimo de controle do seu território, tem havido um processo de retaliação por parte dos madeireiros e políticos da região que querem continuar no território”, disse Cléber Buzatto, secretário-executivo do Cimi (Conselho Indigenista Missionário).

Cléber explica que foram feitas denúncias frequentes para que os órgãos competentes tomem iniciativas que coloquem um fim nesse problema. Porém, segundo ele, ações esporádicas e pontuais não resolvem a questão. “Os órgãos fazem a operação e vão embora. Quando eles saem, os agressores retornam com mais violência”, disse ele.

Atualmente, os indígenas afirmam que têm controle apenas sobre 70% de seu território, enquanto os outros 30% seguem invadidos pelos madeireiros. Várias lideranças estão perseguidas e não podem sair de suas aldeias. Uma determinação judicial que vence no fim do mês afirma que a Funai deveria criar postos de fiscalização e vigilância com a anuência e participação dos indígenas, porém, nada foi feito ainda.

Essa semana, índios Assurinis também denunciaram à Funai a extração ilegal de madeira em sua aldeia próxima aTucuruí, no Pará. Troncos de madeira de lei abandonados na estrada foram encontrados. A representação da Funai na região protocolou a denúncia no Ministério Público Federal e aguarda um posicionamento do órgão.

“Além da impunidade, o que alimenta invasões como essas é a certeza de que a madeira roubada pode ser lavada muito facilmente e vendida livremente no mercado. Como o Greenpeace tem denunciado, a indústria madeireira está fora de controle e papéis oficiais são utilizados para acobertar crimes como estes. Além de destruir a floresta, a extração predatória e ilegal de madeira ainda pode contribuir para graves conflitos sociais como os citados acima” disse Marina Lacôrte, da campanha da Amazônia do Greenpeace.

Os Ka’por afirmam que a maioria das licenças ou planos de manejo concedidos aos madeireiros são falsos, já que, na região, somente as terras indígenas possuem florestas. De fato, uma das principais fraudes apontadas pelo Greenpeace é a aprovação de planos de manejo em áreas que já foram desmatadas. O objetivo é utilizar os créditos gerados para esses planos de manejo para lavar madeira retirada de áreas protegidas, como unidades de conservação e terras indígenas.

Crimes ambientais ajudam a financiar conflitos, afirma ONU

Um estudo da ONU divulgado na semana passada mostrou que o crime ambiental global movimenta cerca de 213 bilhões de dólares por ano e, além de ajudar a financiar conflitos armados, prejudica o crescimento econômico.

O relatório, divulgado durante uma reunião da ONU com ministros de Meio Ambiente em Nairóbi, pediu ações mais severas para prevenir crimes e atividades ilegais de desmatamento, pesca, mineração, despejo de lixo tóxico e comércio de animais e plantas raros.

De acordo o estudo, a retirada ilegal de madeira pode chegar a 30% do mercado global. Em alguns países, até 90% da madeira produzida tem origem suspeita. No Brasil, por exemplo, só no estado do Pará, segundo dados do Imazon, entre agosto de 2011 e julho de 2012, 78% das áreas com atividades madeireiras não tinham autorização de exploração.

PARA LER MAIS:

  • 06/06/2014 – Brasil é exemplo de sucesso na redução do desmatamento, diz relatório
  • 28/05/2014 – Mata Atlântica registra seu maior desmatamento desde 2008
  • 27/05/2014 – Alertas de desmatamento na Amazônia verificados pelo DETER somam 338 km2 em três meses
  • 23/05/2014 – Imazon: Em abril foram detectados 101 quilômetros quadrados de desmatamento na Amazônia
  • 21/05/2014 – Desmatamento agravou crise da água em São Paulo

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O amargo do Caraguatá: a realidade dos Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul.

8 de junho de 2014 por Luiz Jacques

Dois acampamentos às margens da BR-463, no entorno de Dourados (MS), ilustram a precariedade dos Guarani-Kaiowá quando as demarcações de terra não caminham.

 

 

http://www.ihu.unisinos.br/noticias/531986-o-amargo-do-caraguata-a-realidade-dos-guarani-kaiowa-no-mato-grosso-do-sul

 

 

A reportagem é de Bruno M. Morais, advogado indigenista, em artigo publicado no Repórter Brasil, 03-06-2014.

Toda semana seu Bonifácio monta em sua bicicleta preta de aro circular e vem, uma pedalada por vez, até a casa do Conselho Indigenista Missionário, em Dourados, tomar um mate gelado. Em uma dessas visitas, em março deste ano, arrancou da bolsa uma intimação judicial em um processo de reintegração de posse: os herdeiros de Albino Torraca pediam à Justiça Federal que despejasse os indígenas invasores de uma área de reserva  legal na fazenda São José, à margem direita da BR-463, na saída a Ponta Porã. Seu Bonifácio chama essa área de Tekoharã Pacurity.

Não mais do que 15 barracos de lona se espalham ao largo de um canal de água, espremidos entre uma lavoura e a boca do mato. Brotando entre o milho plantado à máquina, se veem aqui e acolá uns pés de feijão, abóbora e purungo, uma cabaça com a qual os Guarani fabricam ombaraká, o chocalho ritual. Armados com esses objetos, os Kaiowá ainda tentam pôr, com reza, alguma ordem no que sobrou deste mundo.

Pacurity, a terra em transe

O acampamento Pacurity é parte de uma antiga rede de comunidades que os indígenas chamam de Tekoha Guasu. Em uma folha de papel riscado à mão, os Guarani me mostram o mapa: o Pacurity abrange cinco tekoha –territórios –, cada qual associado a uma família específica. Ao fundo da fazenda São José, havia uma casa de reza. “Meu tio e meu pai”, me conta seu Bonifácio, “rezavam muito, rezavam ali”.

Às margens da BR-453

Hoje o tio e o pai estão mais adiante, na ponta oposta do mato, repousando no cemitério que os indígenas também fazem questão de marcar no mapa. Do lado que ocupa a comunidade agora, assinalam a casinha de sapé da nhandesy, a rezadora, que o fazendeiro mandou queimar.

Em 2005, o Ministério Público Federal abriu inquérito para investigar Atílio Torraca pelo incêndio criminoso das casas dos indígenas, mas o caso não avançou. No final do ano passado, a equipe técnica do mesmo Ministério Público registrou que um trator destruiu um cemitério tradicional que os índios mantinham cercado, e as sepulturas foram revolvidas por um arado.

Em janeiro deste ano, a Polícia Rodoviária acionou a Fundação Nacional do Índio (Funai) e acusou os índios de estarem atirando pedras nos carros que passavam na rodovia. Era verdade: os Guarani de fato estavam atirando pedras nos carros, mas porque um funcionário da fazenda havia atropelado uma criança com um trator. Consta do memorando do funcionário que atendeu a ocorrência: no desespero, o pai da criança tentava fazer com que um dos motoristas que passavam pela estrada parasse para levar a criança ao hospital.

“Recente?”, seu Bonifácio questiona. “Nasci no tekoha Pacurity e só saí quando não teve mais jeito!” Aos 17 anos, arrancaram seu Bonifácio do Pacurity e o mandaram em um carro militar para Minas Gerais. Ele conta que, entre 1967 e 1970, esteve no Reformatório Agrícola Krenak, uma espécie de campo de concentração no município de Resplendorem que se mantinha em regime de trabalho forçado indígenas de todo o país.No processo que pede a reintegração de posse, os índios são acusados de ameaça, roubo de animais e danos na propriedade da fazenda. Os proprietários alegam que os funcionários têm medo e que o trabalho na lavoura só pode ser realizado sob escolta. E argumentam que o despejo é justo porque a ocupação é recente.

Quase todos os registros dessas prisões, que estão emergindo agora no processo da Comissão Nacional da Verdade, são de indígenas que se recusavam a deixar suas terras. Há casos registrados entre os Pataxó, no sul da Bahia, e osMaxakali, em Minas Gerais. Além disso, há sobreviventes desse presídio espalhados em todo o Centro-Sul. Bonifácio é um sobrevivente, mas não tiveram a mesma sorte seus irmãos, também levados para lá – o Pacurity, esvaziado nas décadas de 1960 e 1970, era uma terra liberada para o “progresso”.

Apyka’i, o front surreal

Nos anos 1960, Dourados serviu como cidade-front para a política agrária da ditadura militar, baseada na integração entre a indústria e o campo. Linhas de financiamento a juros baixos garantiram que o sul do Mato Grosso fosse rasgado primeiramente pelas plantações de soja e trigo e, posteriormente, pelos canaviais que servem de sustento à usinagem de açúcar e álcool. Na região da fronteira, a introdução da braquiária – uma espécie mais resistente, nutritiva e agressiva de capim – garantiu a abertura das pastagens e o desenvolvimento da pecuária.

O dinheiro público preenchia as fazendas, e ia expulsando as poucas famílias Guarani e Kaiowá que haviam resistido às remoções patrocinadas, respectivamente, pela criação das reservas pelo Serviço de Proteção ao Índio, na segunda década do século 20, e pela colonização agrícola da Era Vargas.

Dona Damiana lembra quando seus parentes chegaram à Reserva de Dourados, vindo expulsos do tekohaApyka’i, onde ela mesma havia nascido. O Apyka’i – que, na língua Guarani, refere-se ao banco sagrado de madeira relacionado à iniciação política masculina – é também uma área reivindicada como de ocupação tradicional indígena também às margens da BR-463, a mesma que corta o Pacurity de seu Bonifácio.

Quando visitei o acampamento em setembro do ano passado, dona Damiana abria com um machete algum espaço na cana para semear duas latas de milho saboró que ela havia ganhado de seus parentes. A cena era surreal. Era a quarta vez que ela ocupava a área que reivindica como de ocupação tradicional de sua família, na orelha direita do córrego Curral de Arame. A primeira ocupação, em 1999, foi comandada por Ilário Ascário, seu marido, e foi despejada violentamente pelo proprietário das terras. As famílias se espalharam entre as reservas indígenas da região, até que em meados de 2001 foram novamente se juntando às margens da rodovia. No ano seguinte, o Sr. Ilário Ascário foi atropelado.

Dona Damiana preparou o sepulcro de seu marido no tekoha, mas funcionários da fazenda impediram o enterro, montaram os índios em um caminhão e abandonaram dona Damiana e o corpo de Ilário na aldeia Tey’iKue, no município de Caarapó. Lá, ela sepultou seu marido e voltou para as margens da rodovia.

Daí em diante, a história do Apyka’i é uma série de ocupações, atropelamentos e despejos forçados. A comunidade já enfrentou pelo menos três ataques de homens armados, e em um deles um indígena de 62 anos foi baleado. Os Guarani dizem que mais um foi morto, e que desapareceram com o corpo. Os barracos da comunidade já foram incendiados três vezes.

Em vez de ingressar com uma nova ação na Justiça, argumentando contra a nova ocupação, Ricardo Tecchio pediu a execução judicial da sentença de despejo dada no processo anterior, contra a ocupação de 2007. Nessa sentença, o juiz dá razão ao proprietário dizendo que o reconhecimento da posse indígena exigiria “a habitação permanente ou posse efetiva”, e que “no caso, os réus não trouxeram aos autos prova concreta quanto ao cumprimento desses pressupostos”. Os autores, isto é, Ricardo Tecchio e os arrendatários, teriam, eles sim, provado “a propriedade e a posse mansa e pacífica”.

Da primeira retomada até o ano passado, seis indígenas já haviam morrido em atropelamentos suspeitos – em nenhum dos casos o motorista parou para prestar socorro. Quando seu neto de 4 anos foi atingido por um caminhão carregado de bagaço de cana, dona Damiana juntou forças e ocupou uma vez mais uma área da Fazenda Serrana, propriedade deRicardo Bonilha Tecchio. Hoje a comunidade está em uma área de menos de 3 hectares junto à mata da reserva legal. É dessa área que agora eles têm de sair, uma vez mais, por ordem judicial.

Quando Spensy Pimentel e Joana Moncau escreveram, em 2010, sobre o genocídio surreal Guarani-Kaiowá, não imaginei que o apelo fosse tão literal. O Apyka’i, no entanto, é a experiência do absurdo: espoliada, violentada, expulsa de suas terras, e desde 1999 tentando recuperá-las, dona Damiana só teria direito de permanecer na pequena parte que ocupa do território que reivindica como seu se tivesse mantido contínua e pacificamente sua posse. Tremendo paradoxo.

Dourados-Peguá

Qual é a linha que liga o Pacurity, de seu Bonifácio, e o Apyka’i de dona Damiana? As margens da BR-463, que é onde vão fincar acampamento as comunidades, caso os despejos aconteçam.

Os recursos propostos pela Funai contra a reintegração de posse do Apyka’i foram todos negados no Tribunal Regional Federal, sempre pelo mesmo motivo: não há indícios, segundo os desembargadores, de que a terra seja de ocupação tradicional indígena. A terra não está identificada, não está declarada, e não passou pela canetada de homologação da Presidência da República. As reivindicações e sucessivas ocupações e despejos de dona Damiana simplesmente não são “juridicamente relevantes”.

No que o tribunal e os índios parecem concordar é que a solução única e definitiva para os conflitos de terras no estado é a demarcação. O que a Justiça diz, no entanto, é que os índios têm de esperar.

A Constituição de 1988 deu a ordem ao governo federal de demarcar todas as terras indígenas no país no prazo de cinco anos. Nos 20 anos seguintes, no Mato Grosso do Sul muito pouco se fez em prol das demarcações, para além de regularizar as reservas já criadas nos anos 19120 pelo Serviço de Proteção ao Índio. Como remédio à situação, em 2007 a Funai firmou com o Ministério Público Federal um Compromisso de Ajustamento de Conduta no qual há um novo prazo de três anos para a conclusão dos estudos de identificação e delimitação das Terras Indígenas Guarani e Kaiowá, sob pena de multa.

As reivindicações de terra foram então sistematizadas e agrupadas por bacia hidrográfica. Pacurity e Apyka’i – ou Jukeri’y, que é o nome que consta nos documentos oficiais – estariam contemplados pelos estudos de identificação e delimitação da bacia dos rios Dourados e Brilhante, junto a outras 16 reivindicações de terra. E, pelo menos desde 2010, os estudos já deveriam estar concluídos, os relatórios publicados, e a área delimitada pela Funai.

Mas não foram concluídos, os relatórios não foram publicados, e as áreas do Pacurity e Apyka’i seguem sem identificação e delimitação como terra indígena. A Funai inadvertidamente suspendeu o Grupo de Trabalho constituído para os estudos, e o relatório sequer foi elaborado. Na contraparte, o Ministério da Justiça insiste que o problema da demarcação no estado não é morosidade, e sim a judicialização, e aposta nas “mesas de diálogo” entre fazendeiros e indígenas para encontrar uma saída para as demarcações.

Caraguatá

Nesse “diálogo” com os donos da cana plantada por sobre a sua terra, o que dona Damiana teria a dizer? Pergunto, e ela responde sempre que no Apyka’i estão enterrados o seu pai, sua tia, seus dois filhos, e seu neto. E que, se for preciso, o ministro terá de enterrar ela mesma. “Diz pra ele trazer o trator e cavar uma cova grande, pra caber  toda a comunidade”,dona Damiana repete a toda visita, desde que recebeu a notificação da reintegração de posse.

Mais adiante, seu Bonifácio está em uma situação mais confortável. A Justiça Federal recentemente negou a liminar desalojo para o Pacurity, mas, enquanto as terras não estiverem demarcadas, nada garante que a comunidade não vá ser despejada. A ele, perguntei por que o levaram ao presídio Krenak: “Porque eu não desisto de visitar meu pai”, me disse, “duas três vezes no ano eu vou lá com meu mbaraká, rezo pra ele”.

E completa: “Também porque eu gostava demais de caraguatá, a dona da fazenda me castigou”. Caraguatá é um coquinho amargo de uma bromélia que brota nas beiras dos córregos, cada vez mais rara por conta dos desmatamentos. Entre os túmulos e mbarakás do Apyka’i e do Pacurity, cortados pela BR-463, está bem claro quem, há tanto tempo, tem arcado com o lado amargo dos conflitos de terra no Mato Grosso do Sul.

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