MUITO ALÉM DO ORGÂNICO
Michael Colby
“Food and Water Journal”
primavera (dos USA) de l998
Rejeição das normas norte-americanas da agricultura orgânica
e convocação para novo movimento ligado à alimentação. O Ministério da Agricultura dos USA (nt.: USDA/US.Department of Agriculture) imiscui-se
impropriamente no mundo da agricultura orgânica ao tornar público, em
dezembro último (l997), os seus “Padrões Nacionais da Agricultura Orgânica”.
É uma publicação lúgubre e maçuda de, mais ou menos, 600 páginas. Ela
tem um único propósito: a promoção de uma visão industrialista da agricultura
orgânica. Esta atitude prepotente do USDA fez surgir um sem número de
entraves tanto à produção de alimentos sadios como com as comunidades
agrícolas sustentáveis que, infelizmente, ficaram mobilizadas quase que
exclusivamente em como modificar rapidamente as partes das normas que
são totalmente comprometidas. Perdidos no meio do apuro de “ações” demandando
que todos nós, “política e implacavelmente”, implorássemos que o USDA
fizesse as coisas um pouquinho melhor, surpreendentemente observou-se
que muitos participantes do “movimento” orgânico foram cooptados tanto
pelas forças do mercado tradicional como se reduziram totalmente a um
outro tipo de negócio na estreiteza da perseguição do lucro fácil.
Desde o início, começando com o projeto original do senador
Patrick Leahy sobre padrões nacionais da agricultura orgânica no ano de
1990, nós do “Food and Water” temos feito oposição implacável contra a
adoção destes padrões. Avaliamos que esta agricultura é o tipo de atividade
da sociedade que, desde muito tempo, celebra suas raízes na descentralização
local e regional. Tentar enquadrá-la numa bitola única através de uma
padronização é absurdo e desconcertante para um método de agricultura
que se empenha em ser sensível às condições locais tanto sociais como
ecológicas. Em razão de estes novos padrões terem a característica básica
de serem fundados em esforços das corporações de nacionalizar, globalizar
e centralizar a produção orgânica de alimentos, eles não poderão ser “permanentes”
como muitas pessoas e organizações estão se convencendo a si mesmas equivocadamente.
Nós precisamos assim nos apropriar destas oportunidade
e energia que isto gerou para rejeitarmos, de todo o coração, estes padrões,
perniciosos e truncados, do USDA. Ao mesmo tempo, estimular para que nos
apercebamos de que teremos que criar um novo movimento ligado à alimentação
que inclua ideais sociais e ecológicos que sempre são incompreensíveis
para os burocracias federais. Aqui chegam os federais. Para entender o quão ridícula está sendo a intromissão do
USDA nas questões da agricultura orgânica, é só enfrentar a maciça publicação
destes regulamentos. Ou melhor ainda, é só escutar
o que disse o secretário Dan Glickman do USDA para um ansioso grupo de
jornalistas, pouco antes da divulgação destes novos padrões: “Quero deixar
bem claro que estas normas (da agricultura orgânica) não foram elaboradas
para se criar um método de agricultura que se entenda como mais seguro
do que outros.” Nada deixa mais explícito do que esta declaração. São óbvias as razões que fazem este órgão federal ter uma
atitude de desdém à agricultura orgânica e ter motivos sub-reptícios para
estas novas normas quando finca suas garras neste processo agrícola ao
mesmo tempo em que assegura padrões bem abaixo do tolerável. Pretende
pavimentar o caminho para uma autêntica mercantilização e concentração
da produção orgânica. Face as transnacionais do “agribusiness” estarem
procurando intensamente romper brechas para entrarem no crescente mercado
orgânico, necessitam muito, sem dúvida nenhuma, de cobertura legal, especialmente
quando defendem a idéia de “transformar o produto orgânico em um produto
global”. Muitos dos que estão na crista da onda iludem-se com a crença
de que tal crescimento, tanto na produção como no consumo de produtos
orgânicos, é um dado positivo. Parecem estar indiferentes quanto aos resultados
que este crescimento pode significar quando se compara com a mesma forma
de industrialização e concentração que foram tão injustas,
social e ecologicamente, além de profundamente destrutivas das comunidades
rurais e suas culturas. O “Food and Water” não acha nada animador
o fato da multinacional H.J.Heinz ter abocanhado
a Earth’s Best Baby Foods (nt.: Melhores alimentos
da Terra para bebês) assim como a transnacional M&M-Marz ter se
adonado da Seeds of Change (nt.:Sementes da Mudança)
e mesmo a Whole Foods (nt.:Alimentos Integrais) estar se isolando do próspero movimento cooperativista.
Se a questão é se podem ou não as corporações H.J.Heinz, M&M-Mars e Whole Foods utilizar agrotóxicos,
a resposta logicamente é “não”. Elas não podem. E se tivéssemos um governo
realmente federal e uma democracia que refletisse verdadeiramente a vontade
popular, já teríamos políticas adequadas de interdição do uso destes insidiosos
venenos. Mas nós precisamos ir mais fundo na questão. Se tivermos
como meta a perseguição de sistemas sadios e sustentáveis de produção
de alimentos, precisamos levar em conta fatores que vão
muito além de uma simples listagem de agrotóxicos permissíveis
ou não para todos os estados da nação. Além do banimento de venenos tóxicos,
precisamos exigir que o nosso fornecimento de alimentos não se transforme
numa outra bomba utilizada para beneficiar as corporações multinacionais
em detrimento dos melhores interesses individuais e coletivos, dos cidadãos,
das comunidades, da terra e do ambiente. Fatos como escala de produção,
concentração econômica, meios de transporte,
conservação de recursos, bem-estar animal, justiça aos produtores e trabalhadores
rurais e até mesmo a gestão ambiental, assim como a ênfase às verdadeiras
necessidades locais da produção e do consumo, necessitam ser o cerne de
um movimento, verdadeiro e politizado, de produção de alimentos. Desafortunadamente, a triste verdade é que a agricultura
orgânica e o enfraquecido movimento que a envolve perderam muito do radicalismo
de suas raízes originais em favor de uma visão mais mercantilista. Uma
publicação conservadora da área de negócios, “The Packer”, forneceu a
melhor análise destes novos padrões. “É a agricultura orgânica, um movimento ou um negócio?”
Perguntou o editorialista, Larry Waterfield, logo após o anúncio desta
norma do USDA. “Na verdade era tido somente como um movimento favorável
à produção de alimentos ecológicos. No entanto agora, passou a ser um
negócio”. E é esta faceta mercantilista da agricultura orgânica que
parece estar encantada com as propagandas de uma Fanta ou uma Pepsi orgânica.
E por mais que isto possa gerar um poderoso crescimento, permanece sendo
uma competição. E isto é a fixação na ideologia desenvolvimentista que
é intrinsecamente destrutiva. A industrialização dos produtos orgânicos sob estes padrões
do USDA promove o anonimato do consumo, - sem a identidade ou mesmo o
cuidado - de quem os produziu ou de onde vieram. E é este tipo de posicionamento
que tem se imiscuído na maioria das indústrias de alimentos orgânicos.
Dê só uma olhada nos brilhantes luminosos de néon dos supermercados dos
arrabaldes apresentando os “alimentos sadios”. Reforçam a velha máxima
de que a felicidade é somente realizar a próxima compra, o próximo consumo. Agora, qual o local onde o alimento foi produzido, de como
os trabalhadores rurais foram tratados, sobre os enormes volumes de energia
fóssil despendidos tanto para produzir como para transportar as grandes
quantidades de alimentos, bem como quaisquer interações ou reconhecimento
do esforço dos agricultores, somos induzidos a não nos conectarmos com
isto. Deus nos livre que a feliz vivência de um prazeroso consumo orgânico
seja contaminado com um sutil toque de realidade. Mordendo o rabo (de
novo). Talvez
o aspecto mais penoso quanto aos padrões orgânicos do USDA, é a patética
reação que permeia a comunidade dos ativistas. Quase sem exceção, os grupos
entraram num frenesi e montaram uma ação via
um chamamento para que se tomasse uma das atitudes mais frágeis e precárias
do ativismo político: telefonar ou escrever para o USDA, solicitando-lhes
que fizessem isto aí, só que de uma forma um pouquinho melhor. E o pior
ainda foi que muitas destas recomendações orientavam de que as pessoas
se lembrassem de ser “polidos e não emocionais” quando se dirigissem ao
USDA. Aparentemente não foi o suficiente estarem sob o tacão do USDA,
pareciam não só estar contentes, mas também de acordo com tudo isto que
está aí. A
maioria destes chamamentos enviados pelos grupos ativistas centrava-se
em torno da possível inclusão da irradiação nuclear dos alimentos, do
emprego de lodo de esgoto como fonte de matéria orgânica e da engenharia
genética, pelo USDA, nos padrões propostos. Assim ficar perdido na discussão
se deve-se incluir ou não estes parâmetros é
deixar-se dominar por aspectos que nem deveriam ser cogitados e com isto
sermos distraídos do conceito fundamentalmente destruidor de termos “padrões
nacionais de agricultura orgânica”. Isto coloca-nos numa posição subalterna
para solicitarmos alterações insignificantes quanto a alguma coisa que
nós não geramos. A
reação inicial do Food and Water em relação a esta novidade de embutir
a irradiação dentro dos padrões orgânicos foi a
reflexão, não muito brincalhona, que “eles se merecem”. Na compreensão peculiar do USDA, faz sentido
a irradiação poder ser incluída em qualquer perspectiva de industrialização
dos orgânicos. Colocar a agricultura orgânica em um caminho bem azeitado
de crescimento irrestrito e concentração corporativo,
inevitavelmente significa que a indústria orgânica tornar-se-á maior, e, como um resultado, mais suja e menos
responsável. Mas com as usinas de reciclagem de lixo nuclear para irradiação
esperando no final da linha pela produção em massa de produtos orgânicos
- “presto”! - o problema dos orgânicos sujos será “resolvido”. Infelizmente,
esta é a grande “visão” que Glickman e o USDA têm para o futuro da agricultura
orgânica. Por esta razão, em nada ajuda contatar o USDA para lhes
dizer que se “mandam” dos produtos orgânicos. Eles não entendem esta linguagem.
O USDA é uma burocracia que se mantém em razão destes programas. A convite
dos agricultores orgânicos do estado nortista de Vermont, em fevereiro
deste ano de 1998, os funcionários do USDA ouviram centenas de críticas
exigindo que o USDA “se mande” dos orgânicos. Um dos presentes era Grace
Gershuny, autora da primeira minuta destes padrões, que arrogantemente
respondeu num artigo de um jornal de que “não houve praticamente nenhuma
crítica aproveitável” uma vez que “a maioria delas destacava de que ‘nós
não queremos isto ou nos livrem daquilo’, não havendo nada de substantivo
sobre o quê acrescentar”. Criando um novo movimento. O USDA está aí para se apropriar dos orgânicos. Parece,
em nossa perspectiva, que estamos nos defrontando com duas possibilidades:
implorar e chorar para que os padrões sejam um pouquinho
melhores ou avançar num trabalho necessário de construção de um
processo seguro e real de produção de alimentos. Parece óbvio que quando os ideais deste nosso movimento
transformaram-se em pastagem para a burocracia federal, já é o tempo de
nós nos mandarmos. Quando a assim chamada revolução da alimentação, antigamente
conhecida como agricultura orgânica, transformou-se exatamente em uma
outra oportunidade de expansão econômica deslocada de suas raízes políticas
originais, deixou de ser uma revolução. Assim como foi com o termo “natural”,
agora tão profundamente desqualificado e transformando em algo tão inexpressivo,
o mesmo está acontecendo com a expressão “orgânico” que vai pelo mesmo
caminho. Para atacar adequadamente a visão do industrialismo na agricultura
orgânica, precisamos começar a ter uma nova intuição sobre o “próximo
movimento da alimentação”. Abandonar primeiro a noção que qualquer coisa
que tenha substância intrínseca possa ser fortalecida via ações excessivamente
simplistas. Contatar nossos legisladores, remeter cartas às nossas agências
federais e termos encontros com nossos representantes podem fazer com
que alguns de nós passem a se sentir envolventes e envolvidos com as idéias
da democracia. No entanto, em longo prazo, estas atitudes poderão simplesmente
atribuir credibilidade à corrupção. Ações simplistas encaminham inevitavelmente a falsas soluções.
Isto fica evidenciado pelas décadas de morosidades e de ações velhacas
do Congresso para direcionar a problemática de emprego descabido de agrotóxicos
em nossas fontes de alimentos. É claro que a parceria
dos industriais com os congressistas pode gerar leis com nomes
pomposos como a “Lei de proteção da qualidade dos alimentos”. Entretanto
o que eles estão fazendo além de nos distrair a todos nós é darem aos
barões corporativos todo o tempo do mundo para retomarem seu dinheiro
e fugirem? Nós precisamos desafiar a pretensão básica de um sistema
de alimentos baseado puramente no mercado por ser incapaz de compreender
todas as suas tendências destrutivas. Uma cenoura orgânica barata embarcada
na América do Sul poderá fazer com que um(a)
consumidor(a) de Vermont, no norte dos USA, possa se sentir muito bem em relação à sua saúde,
mas o que se sabe sobre os fatos relativos às questões da escala de produção,
aos meios de transporte e mesmo à conservação dos recursos ? E, se estamos
seriamente determinados à “viabilização da pequena propriedade”, não deveríamos
começar enraizando nossa dieta alimentar em produtos gerados localmente? Ultimamente, combater a visão industrialista no suprimento
alimentar - seja orgânico ou não - é ir contra tanto o anonimato do consumo,
como contra a noção destrutiva que subentende que não estaríamos atentos
sobre a origem dos produtos ou quem os produz da mesma forma como avaliamos
se é barato e acessível. Quanto mais batalharmos para encurtar a distância
entre nós e nossas fontes de alimentos, menos anônimo se transforma nosso
consumo e mais responsabilidade direta há entre o produtor e o consumidor. O último estágio da certificação quanto à maneira que os
produtos alimentares são produzidos não pode ficar sob o controle monolítico
das estruturas federais. Deve, ao contrário, ser resultado de uma confiança
e celebração mútua das relações entre o produtor e o consumidor, a comunidade,
ou em última análise de uma certificação local ou regional fundamentada
no entendimento das necessidades centradas social, ecológica e economicamente.
Ou em outras palavras o que nós precisamos nos esforçar é gerar a garantia
pela convivência, pela familiaridade, pela proximidade. Não, estas não são ações “simplistas” que tu tomes. Produzires
teu próprio alimento, valorizares o “conhecer” teu agricultor parceiro,
freqüentares feiras de agricultores, estares ativamente envolvido em cooperativas
de consumo ou mesmo seres diligente em afastares fontes monopolizadas
de alimentos, certamente não é nada fácil. Mas isto é necessário se o
nosso objetivo não é basicamente só trocarmos um sistema alimentar muito
destrutivo, mas sim a cultura subjacente que torna tudo isto possível. Estejas convencido de que não verás o Food and Water disputando na areia movediça do ataque
buscando alterar a regulamentação dos Padrões Nacionais Orgânicos feitos
pelo USDA. Por que agora é o momento de irradiar uma tal percepção de
que se deve iniciar um processo para novos objetivos e despertar no
público o espírito de parceria nesta intenção. E isto tudo deve começar
pela compreensão de que aquilo que se pensou que era o “movimento” orgânico,
agora está morto. Ele foi, infelizmente, cooptado tanto pelas ditas
forças do mercado como pela burocracia federal e por uma cultura insidiosa
fundada em falsas convicções. M&M-Mars
compra Seeds of Change (Sementes da Mudança) Em nenhuma situação está mais clara a inclinação favorável
ao industrialismo dos produtos orgânicos do que no alvoroço da recente
fusão corporativa feita pelos gigantes tradicionais de alimentos em cima
das pequenas corporações orgânicas. Tome-se, por exemplo, a recente aquisição
feita pela M&M-Mars, numa só tacada, da idealística
Seeds of Change. A firma Seeds of Change foi fundada pelo eco-empreendedor
Kenny Ausubel. Começou suas atividades, em meados dos anos oitenta, com
a nobre meta de “restaurar a biodiversidade e revolucionar o caminho que
nós almejamos para o nosso alimento”. De acordo com as palavras escritas
por seu fundador no prefácio do livro Seeds of Change, a nova companhia
vinha tanto com um “valor intrínseco” como com “a intenção de preservar
e dispersar a diversidade de sementes orgânicas através das mãos, corajosas
e cuidadosas, dos pequenos agricultores em suas hortas vivas”.
No entanto quando as dificuldades começaram a apertar, sua
principal colheita rapidamente transformou-se em dinheiro. Ausubel e sua
equipe da Seeds of Change em vez de negociar pelas mãos corajosas dos
agricultores caíram nas mãos capciosas do povo da multinacional M&M-Mars numa liquidação sem precedentes quanto a seus
“valores” originais. “A aquisição da Seeds of Change feita pela M&M-Mars deu-nos os recursos necessários para sairmos do
sufoco”, explanou o vice-presidente Steve French em uma entrevista para
o Food and Water. Defendendo o indefensável, French começa a confirmar
as nossas suspeitas de que, na verdade, os ideais da companhia (e do senso
comum) cederam tanto aos lucros como ao discurso ambíguo da multinacional.
Avaliemos este detalhe das ponderações feitas por French:
“Puxa! Honestamente, eu não acho que tenha uma real diferença entre a
Seeds of Change e a Mars. Eu acho que existe atualmente algo bem em comum
... . E sem dúvida se temos um produto seja da Mars ou da Seeds
of Change, os benefícios serão muito, mas muito similares se estivermos
enfocando aqui os aspectos nutritivos.” Isto tudo é demais para uma proposta de revolução alimentar .... ESTE TEXTO CHEGOU ÀS MÃOS DO TRADUTOR ATRAVÉS
DE JOSÉ LUTZENBERGER. ENTREGOU-LHE EM 1998, QUANDO SE DISCUTIA, NESTA
ÉPOCA NO BRASIL, A QUESTÃO DA CERTIFICAÇÃO E DA LEGISLAÇÃO SOBRE ORGÂNICOS.
RESSALTO QUE LUTZ ERA TOTALMENTE CONTRA
QUAISQUER FORMAS DE CONTROLE QUE SAÍSSE DAS MÃOS DOS CONSUMIDORES E AGRICULTORES,
UNIDOS. E EU ENDOSSO COMPLETAMENTE. Tradução livre de Luiz Jacques Saldanha, novembro de 1998, revisada em outubro de 2005. |