A VINGANÇA DE GAIA, por James Lovelock (24/1/2006)

James Lovelock diz que efeito estufa chegou a um ponto sem retorno e que "bilhões" morrerão neste século

     JAMES LOVELOCK ESPECIAL PARA O "INDEPENDENT


Imagine uma jovem policial que se sente totalmente realizada na sua vocação. Então, imagine-a agora ter de dizer a uma família cujo filho estava desaparecido que ele foi encontrado morto, assassinado, num bosque vizinho. Ou pense num jovem médico que tem de dizer ao doente que sua biópsia revelou um tumor agressivo em metástase.

Médicos e policiais sabem que muitos aceitam a verdade simples e
horrenda com dignidade, mas muitos tentam em vão negá-la.  Nós livramos os juízes da terrível responsabilidade de aplicar a pena de morte, mas ao menos eles tinham algum conforto em suas freqüentes justificativas morais. Médicos e policiais não têm como escapar de seu dever.

 

Este artigo é o mais difícil que eu já escrevi, e pelas mesmas razões.
Minha teoria de Gaia diz que Terra se comporta como se estivesse viva, e qualquer coisa viva pode gozar de boa saúde ou adoecer.  Gaia me tornou um médico planetário e eu levo minha profissão a sério. Agora, também devo trazer as más notícias.

Boa parte das terras tropicais se tornará caatinga e deserto, e não
servirá mais para regulação do clima; isso se soma aos 40% da superfície terrestre que nós já devastamos para produzir nosso alimento.

Curiosamente, a poluição por aerossóis no hemisfério Norte reduz o
aquecimento global ao refletir a radiação solar de volta ao espaço.  Esse
“apagamento global" é transitório e pode desaparecer em poucos dias junto com a fumaça que o carrega, deixando-nos expostos ao calor da estufa global. Estamos num clima de loucos, resfriado acidentalmente pela fumaça, e antes do fim deste século bilhões de nós morreremos e os poucos casais férteis que sobreviverão estarão no Ártico, onde o clima continuará tolerável.

Tarefa impossível

Ao não perceber que a Terra regula seu clima e sua composição, nós
cometemos a trapalhada de tentar fazê-lo nós mesmos, agindo como se
estivéssemos no comando. Ao fazer isso, condenamos a nós mesmos ao pior estado de escravidão.  Se escolhermos ser os guardiões da Terra, somos os responsáveis por manter a atmosfera, os oceanos e a superfície terrestre aptos para a vida.  Uma tarefa que logo acharíamos impossível – e algo que, antes de termos tratado Gaia tão mal, ela fazia para nós.

Para entender o quão impossível é a tarefa, pense sobre como você
regularia a sua temperatura e a composição do seu próprio sangue. Quem tem problemas renais conhece a dificuldade diária inesgotável de ajustar sua ingestão de água, sal e proteínas.  A muleta tecnológica da diálise ajuda, mas não é substituto para rins saudáveis.

Meu novo livro, "A Vingança de Gaia", expande essas idéias, mas você
ainda pode perguntar por que a ciência demorou tanto para reconhecer a verdadeira natureza da Terra.  Eu acho que é porque a visão de Darwin foi tão boa e tão clara que demorou até agora para que ela fosse digerida. No tempo dele, pouco se sabia sobre a química da atmosfera e dos oceanos, e teria havido pouca razão para que ele imaginasse que os organismos modificavam seu ambiente além de se adaptarem a ele.  Se fosse sabido à época que a vida e o ambiente estão tão conjugados, Darwin teria visto que a evolução não envolve apenas os organismos, mas toda a superfície do planeta.

Nós então poderíamos ter enxergado a Terra como um sistema vivo,
teríamos sabido que não podemos poluir o ar ou usar a pele da Terra -seus oceanos e sistemas florestais – como uma mera fonte de produtos para nos alimentar e mobiliar nossas casas. Teríamos sentido instintivamente que esses ecossistemas devem ser deixados intocados porque eles são parte da Terra viva.

Então, o que fazer?  Primeiro, precisamos ter em mente a velocidade
espantosa da mudança e nos dar conta do quão pouco tempo resta para agir. Então, cada comunidade e nação precisarão usar da melhor forma os recursos que têm para sustentar a civilização o máximo que puderem. A civilização usa energia intensamente, e não podemos desligá-la de forma abrupta; é preciso ter a segurança de um pouso motorizado.

Aqui, nas ilhas britânicas, nós estamos acostumados a pensar em toda a
humanidade e não apenas em nós; a mudança ambiental é global, mas precisamos lidar com as conseqüências dela aqui. Infelizmente nossa nação é tão urbanizada que se parece mais com uma grande cidade, e temos apenas uma área pequena de agricultura e florestas. Dependemos do mundo do comércio para o nosso sustento; e a mudança climática nos negará suprimentos constantes de
comida e combustível do exterior.

Nós poderíamos produzir comida o bastante para nos alimentar na dieta
da 2ª Guerra, mas a noção de que há terras sobrando para plantar
biocombustíveis ou para abrigar usinas eólicas é ridícula.  Nós faremos o
possível para sobreviver, mas infelizmente eu não consigo ver os EUA ou as economias emergentes da China e da Índia voltando no tempo – e eles são as maiores fontes de emissões. O pior vai acontecer, e os sobreviventes terão de se adaptar a um clima infernal.

Talvez o mais triste seja que Gaia perderá tanto quanto ou mais do que
nós. Não só a vida selvagem e ecossistemas inteiros serão extintos, mas na civilização humana o planeta tem um recurso precioso. Não somos meramente uma doença; somos, por meio da nossa inteligência e comunicação, o sistema nervoso do planeta. Através de nós, Gaia se viu do espaço e começa a descobrir seu lugar no Universo.

Nós deveríamos ser o coração e a mente da Terra, não sua moléstia.
Então, sejamos corajosos e paremos de pensar somente nos direitos e
necessidades da humanidade, e enxerguemos que nós ferimos a Terra e
precisamos fazer as pazes com Gaia. Precisamos fazer isso enquanto somos fortes o bastante para negociar, e não uma turba esfacelada liderada por senhores da guerra brutais. Acima de tudo, precisamos lembrar que somos parte dela e que ela é de fato nosso lar.

James Lovelock lançou em 1979, a hipótese Gaia, de que o planeta se
comporta como um organismo vivo.  Seu novo livro, "A Vingança de Gaia", saiu em fevereiro no Reino Unido

 (www.ecodebate.com.br) artigo originalmente reproduzido na Folha de
São Paulo, 22/01/2006.